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Quarta, 15 Fevereiro 2017 01:49

Os caminhos da crise III: A Insegurança Jurídica

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País: Brasil / Batalha de ideias / Fonte: Sustentabilidade e Democracia

Poderá haver Direito injusto ou falho, mas nunca inseguro, poia a ausência

de segurança nega a essência mesma do jurídico

(Luís Recaséns Siches, 1959)

por Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado no Rio Grande do Sul, mestre em ciências sociais, responsável pelo Blog Sustentabilidade e Democracia.

A crise democrática que afeta o Brasil desde o golpe de estado de 2016 não está apenas nos campos da política, da ética e da economia. Ela afeta vários ambientes de relacionamento social, incluindo o mundo do direito. Aliás, esta é uma crise grave e antiga, podendo ser considerada, inclusive, uma das gêneses dos conflitos enfrentados nos outros campos.

A ação penal 470, do famoso caso do “mensalão”, é um exemplo crasso da crise institucional que afeta o mundo jurídico. O julgamento realizado com forte aparato de cobertura midiática ficou marcado pelo famoso paradoxo da Ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal – STF: “não existe prova cabal, mas vou condená-lo porque a literatura me permite”. Trata-se de uma séria degradação de valores constitucionais, que ataca diretamente os princípios da presunção da inocência e da verdade real, em razão de uma leitura invertida da teoria do “domínio do fato”, criticada, inclusive, por seu criador, o jurista alemão Claus Roxin.

Esta onda de desconstituição do nosso ordenamento jurídico acabou culminando na indicação de carregada de parcialidade do Ministro da Justiça de Temer, Alexandre de Moraes, para a cadeira vazia no STF, após a trágica morte do processualista gaúcho Teori Zavascki.

Mas a condução da AP 470 não é o único problema do direito brasileiro. Hoje um dos maiores exemplos da crise institucional e moral que afeta o nosso sistema jurídico é a violação continua de direitos fundamentais por membros do próprio judiciário, que se consolida na orgia de prisões cautelares. Novamente o cenário se repete. Em face da pressão dos grandes meios de comunicação, alguns setores do Poder Judiciário respondem com menos justiça, menos direito e mais abuso de poder.

Diga-se de passagem, o uso indiscriminado de prisões cautelares sempre foi um problema no direito brasileiro, que se apresenta de forma mais evidente na lotação dos presídios por pessoas que sequer foram julgados.

É evidente que faltam pernas ao judiciário, assim como para as defensorias públicas. Mas nada justifica que a prisão cautelar vire a regra e que pessoas que podem ser inocentes ou tenham praticados crimes com menor potencial ofensivo sejam vítimas da violação dos seus direitos, quando não objeto da violência do crime organizado (vejam o exemplo dos massacres em vários presídios do país no mês de janeiro de 2017).

Mas, se antes, a prisão cautelar batia na porta das comunidades mais pobres e era “invisibilizada” pela mídia, hoje é impossível escondê-la, pois este tipo de ação, com o perdão da ironia, “se democratizou”, chegando ao setor empresarial e aos grupos detentores do capital.

Ora, chegar aos detentores do capital não serve para legitimar abusos. Ao contrário, é uma prova de que a falta de controle social sobre condutas reprováveis do estado, com traços protofascistas, tende a não perdoar ninguém. Assim como a condução de judeus capitalistas para os campos de concentração nazistas não significou justiça, da mesma forma, o uso indiscriminado das prisões cautelares contra empresários apenas investigados por corrupção ativa, não tornam este instrumento legítimo.

Alguns juristas afirmam que setores do judiciário estão tentando resolver as fragilidades do nosso sistema processual penal, derivado da omissão do Legislativo, por meio da fundamentação jurídica. Com a devida vêniadois erros não justificam um acerto. “Injustiça e abuso de poder são, sempre, injustiça e abuso de poder”! Aliás, como pode um órgão que utilizou a independência dos poderes como argumento para se omitir do “golpe de estado”, ilegal, inconstitucional e ilegítimo, implementado pelo Congresso em 2016, utilizar-se invadir a esfera de poder do legislativo para promover um “justiçamento moral no país”? Há uma contradição gigantesca nesta argumentação, que ofende as bases do regime democrático.

Deve ser notado que, nos últimos anos, a prisão cautelar ganhou uma nova aliada no Brasil que é a “delação premiada”. Criada pelo sistema penal americano na época da “Lei Seca”, tal medida extrema, a delação, ganhou força nas nossas atividades jurídicas para a realização de outra combinação abusiva, a prisão cautelar como mecanismo de pressão para forçar a delação premiada.

Aliás, não há nada menos seguro do direito do que provas produzidas por meio da “compra de vantagens”. A delação premiada é exatamente isto, a compra de vantagens jurídicas para delatar “supostos crimes”. Que dá validade a estas delações? Quem é o pior criminoso, o réu confesso delator ou o delatado que tem contra si um depoimento derivado de acordo para reduzir penas como prova material? A prisão para forçar a delação não seria uma espécie de tortura moral? É uma discussão ética urgente, e que não vem sendo enfrentada adequadamente.

Uma prova desta constante onda de absurdos é que ainda em 2016 o STF, nos autos das ADCs 43 e 44, decidiu que a ausência do trânsito em julgado dos processos penais não pode impedir a execução de penas proferidas em segunda instância pelos Tribunais. Novamente temos um conflito constitucional grave, que ofende direitos e garantias fundamentais, não só a presunção de inocência, mas o devido processo legal. O duplo grau de jurisdição é uma “garantia mínima” para o réu e não para o órgão julgador. Logo, a execução de uma pena que não tramitou em julgado pode, sim, resultar na prisão de inocentes, e não tão raros os exemplos nesse sentido.

Na verdade, quando o Estado passa a presumir a culpa, fixando condenações sem observância de direitos e garantias fundamentais, temos prova evidente de que a crise ética enfrentada pelo país é muito mais profunda, e que precisamos de uma forte reflexão sobre o legado que pretendemos deixar para o nosso futuro e o das gerações que estão por vir…

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