Com discurso "empoderado" e voz marcante, a MC Brisa De La Cordillera, que adotou o nome artístico Brisa Flow, compõe e canta a luta pelos direitos das mulheres em seus raps para "bater de frente" com o machismo, como deixa claro em uma de suas rimas da música As de Cem: "Nós sempre correndo atrás do prejuízo/ Vendo vocês em seus tronos de reis/ Ma-ma-mãe faz a ma-ma-mãe fez/ Nós dando conta das contas do mês/ Dupla jornada desde os dezesseis".
MC há 10 anos, Brisa inovou ao incluir em sua arte plural a raiz latino-americana em seu primeiro disco, lançado no final de 2016, Newen, que significa "força" na língua mapudungun, idioma dos Mapuches, povo indígena que habita o centro-sul do Chile e o sudoeste da Argentina. Em nove faixas, o álbum traz sua história de vida e a perspectiva de uma mulher sendo livre em diversos aspectos.
Nascida em Belo Horizonte, a rapper é filha de chilenos que fugiram da ditadura de seu país e encontraram refúgio em Minas Gerais. Com a resistência herdada dos pais, Brisa é uma das rappers que, de forma ácida e áspera, confronta o machismo estrutural da cena do rap nacional. "Jogo ainda não virou, mas vai virar", alerta, em seu verso, sobre os privilégios masculinos entre os artistas do gênero.
Para ela, a mudança só acontecerá através união das mulheres da cultura hip-hop. "Quando a gente se apoiar e criar uma rede de apoio profissional para fazer outras mulheres trabalharem juntas... é uma forma de a gente se fortalecer para não depender de espaços criados por homens", disse, em entrevista à RBA.
A rapper chama atenção para a invisibilidade das obras do estilo feitas por mulheres. Brisa acredita que os MC’s têm medo de perder o protagonismo, além de falta aos homens do rap desenvolver empatia pelas lutas femininas. "Eles também não querem ouvir a gente porque falamos uma verdade que eles se esquivam o dia inteiro. Você acha que vão ouvir meu som, que fala um monte de verdade, para eles se desconstruírem?”, questiona.
Leia a entrevista:
Como surgiu o interesse em cantar rap, que é uma cultura dominada por homens?
Eu acredito no rap como uma música de "tráfico de informação". É uma forma de musicalizar a poesia de maneira mais bonita e melódica. Como é um gênero que permite você ser mais independente, eu pude cantar minha música sem depender de macho nenhum.
Atualmente, o rap tem conquistado mais espaço no cenário musical. Entretanto, há mais ascensão de rappers homens do que mulheres.
Isso não é um problema de agora, sempre existiu. Se você olhar aquele documentário Stretch & Bobbito (disponível no serviço de streaming de filmes Netflix), que conta a história de uma rádio americana que ajudou no crescimento do rap, você percebe que não tem mulher. Aí fica a dúvida: será que o documentário não colocou mulher ou a rádio nunca convidou uma para participar? Então, tudo mostra que, desde a construção do hip-hop, as mulheres nunca foram cogitadas a participarem.
Como quem não é visto não é lembrado, se a mulheres não eram convidadas na época das rádios, elas não eram conhecidas. Hoje, acontece o mesmo na internet e nos outros meios de comunicação. Isso porque o poder está concentrado entre os homens, as mulheres não vão ser divulgadas. Eles são mais apresentados que nós.
As mulheres estão trabalhando muito no rap. No ano passado saíram discos maravilhosos, com muita qualidade, então não tem desculpa (pela não divulgação). E outra, o público prefere ouvir a voz do macho no ouvido, não gosta de apreciar o trabalho da mulher. Isso só mostra o pensamento do homem na sociedade, é achar que a gente é inferior, que não fazemos um trabalho de qualidade.
Aliás, eles também não querem ouvir a gente porque falamos uma verdade que eles se esquivam o dia inteiro. Você acha que vão ouvir meu som, que fala um monte de verdade, para eles se desconstruírem?
A falta de protagonismo das mulheres é culpa dos MCs ou do público?
Não existe a falta de protagonismo, mas tem a invisibilidade e isso é causada pelos homens. Por exemplo, o contratante, na maioria das vezes, é um cara, então se ele não for desconstruído e sempre for um homem cuidando disso, a gente não vai ter espaço e a invisibilidade continuará.
Eu acredito no empoderamento, na gente criar nossas coisas e não depender deles para divulgar nosso trabalho, ou chamar para evento, porque isso não vai acontecer. Eu tenho dez anos de rap e nunca vi isso acontecer. Por mais que a gente se empodere e bote a cara, vai continuar não acontecendo.
A luta pelo protagonismo já existe, falar que não tem é a mesma desculpa que dizer que não tem mulher no rap.
Como você vê a recepção do público de rap em relação ao discurso feminista?
Eu acredito que a gente falar de "discurso feminista" é querer tornar nossa música uma coisa só. Minha música tem esse discurso porque eu sou feminista e ela reflete o que eu sou. Mas ela é plural e trata de vários assuntos, o que faz chegar em muitas pessoas.
Eu lancei meu disco ano passado e algumas plataformas anunciaram como o melhor disco do ano. Até caras curtiram, porque é rap, é música boa, não é só um discurso feminista. Eu estou nisso, antes de tudo, por causa da música, o discurso feminista só está na música porque eu sou. Eu acredito no "poder da cura" através da música, tanto pessoal quanto de quem escuta.
O silenciamento das mulheres tem relação com o fato de elas participarem menos de refrões das músicas dos homens e trabalharem em seus próprios versos?
Eu nunca fiz refrão para ninguém, nunca curti a parada de fazer só refrão. Mas eu entendo as mulheres que querem participar, cada uma sabe o que faz. Entretanto, o fato de ser chamada só para o refrão é uma forma de silenciar o rap das minas, sim.
Eu já fui chamada só para isso e o cara sabia que eu rimava. Isso é o medo de perder destaque na própria música porque a mina pode estourar mais que ele. Os caras não querem perder destaque para uma mulher, porque é considerado "ruim" já que, na visão deles, nós somos inferiores.
Hoje em dia não chamam a gente nem mais para o refrão, porque só em cinco linhas elas já roubam a cena. A Drika Barbosa já fez isso só cantando essa parte.
Os caras estão se fechando, vê o tanto de crew de homem no rap e não tem uma mina. Tem evento com 30 caras, aí chamam três mulheres para dividirem dez minutos. Os homens se amam e vão continuar se amando.
Mas eu acredito que eles não têm que fazer nada por nós, não quero nada deles, a gente tem que ter a consciência de que é "nós por nós", porque tem muita mina boa fazendo evento, mixando músicas. A minha esperança é essa, não em desconstrução de macho.
Então, união das mulheres é o que pode mudar esse cenário de invisibilidade?
Sim. Tudo em que pudermos escolher uma mulher profissional para fazer os trabalhos, como por exemplo clipes ou mixagem, é importante. Como estamos em menos lugares e invisibilizadas, é difícil conseguir uma equipe só feminina, principalmente na música.
É uma coisa que depende de vários aspectos. A mulher tem que ter tempo para fazer o trampo dela, ter grana pra poder investir. Mas quando a gente se apoiar e criar uma rede de apoio profissional para fazer outras mulheres trabalharem juntas, é uma forma de fortalecer para não depender de espaços criados por homens
O coletivo Soul di Rua fez o mapeamento de mulheres que trabalham na cultura. É algo que pode fortalecer isso.
Elas estão fazendo uma movimentação muito legal. Esse mapeamento das mulheres do Brasil inteiro é importante para nós.