Diário Liberdade - Motta, de uma forma bem panorâmica, como você avalia a situação política do país?
Luiz Eduardo Motta - O panorama em que vivemos na atual conjuntura não é nada positivo: tivemos uma alteração de governos e com uma franca ascensão da direita; contudo, essa direita não é homogênea e o governo Temer que expressa uma fração dessa direita, a despeito de ter a maioria no Congresso, motiva muito pouco os setores da direita que emergiram nas ruas em 2013. Mas, por outro lado, o Governo Temer fez em um ano toda a agenda neoliberal que vinha se constituindo desde 1990 com o governo Collor e depois no governo FHC. Esses governos, apesar de adotarem claramente a agenda neoliberal, não romperam totalmente com a herança Vargas, a exemplo das leis trabalhistas. O próprio governo PT que adequou parte dessa agenda só a materializou parcialmente já que incorporava em seu programa, na sua agenda, políticas públicas de caráter distributivo, a exemplo do Bolsa Família, Mais Médicos, REUNI, ampliação dos concursos públicos (que já vinham ocorrendo no governo FHC em vários setores), expansão das universidades públicas no interior do Brasil, etc. Mesmo assim fez duas reformas da previdência, e não fizeram uma auditoria pública do pagamento da dívida interna. Já em um ano, a agenda do governo Temer congelou os concursos públicos, congelou o salário dos agentes públicos, criou uma Reforma da Previdência e das Leis Trabalhistas. Temer, com efeito, não aposta em sua reeleição, e mesmo a despeito de não ter uma base de apoio popular, vide o alto índice de rejeição do seu governo pela população, e na manutenção da estrutura de corrupção pelo grande capital, conta com o apoio da maioria parlamentar e da mídia, e desse modo está conseguindo imprimir a agenda neoliberal. Em um ano esse governo conseguiu não somente desmontar os 13 anos de governo PT, mas decênios de conquistas e de direitos da classe trabalhadora. A indústria nacional - que já vinha num descenso - está descendo por ladeira abaixo. O mesmo no tocante a soberania nacional: a agenda do Brasil saiu dos Brics e se afinou com a agenda estadunidense. O quadro que podemos ter nos próximos anos será uma réplica do governo Menem (Argentina) cuja classe média orgulhosa parou literalmente na rua como sem tetos. Para reverter esse quadro somente uma Frente Ampla progressista que reverta essa agenda neoliberal com as eleições de 2018.
Diário Liberdade - A mudança de comando no governo central deve ser visto como uma ruptura na forma de governo/Estado? Ou seria mais preciso falar de continuidade/aprofundamento de algumas características?
L. E. Motta - Como disse acima não houve uma ruptura, mas sim o abandono completo de uma tradição varguista na qual as leis sociais e trabalhistas ainda se mantiveram em 1988 e nos governos seguintes, mas aprofundou e ampliou sim elementos que já vinham sendo incorporados desde os anos 1990. De fato, não podemos confundir Governo com Estado. Houve sim um deslocamento nas redes do poder estatal com o fortalecimento político e de poder do Judiciário e do MPF. Se o Executivo ainda é o poder central, o Legislativo cada vez mais tem se tornado uma correia de transmissão dos sucessivos governos (sobretudo de FHC para cá); mas o descenso do Legislativo e a paralisia e as contradições do Executivo acabaram ampliando a ação do Judiciário e do MPF que hoje interferem na agenda pública. A chamada politização do judiciário e dos operadores do direito estatal (particularmente o MPF) que fora saudada por muitos especialistas como um “avanço democrático”, ou que expressavam a defesa dos princípios republicanos, a meu ver, não mais se sustenta. Tornaram-se cada vez mais uma casta de alto poder do aparato estatal, e com uma forte tendência contramajoritária. O efeito dessa onda tem sido perverso haja vista o desmonte da indústria nacional e a saída do Brasil do cenário internacional como uma potência emergente. O modelo que inspirou essas ações do Judiciário e do MPF como a Operação Mãos Limpas levaram a Itália para um buraco. Hoje que temos na Itália como resultado disso são figuras como Berlusconi e a emergência de partidos conservadores, segregacionistas e neofascistas, e a perda da inserção italiana no cenário internacional, e sem dúvida uma das principais expressões da crise europeia no lado ocidental. Ademais, voltando ao cenário brasileiro, a justiça tem se mostrado notadamente seletiva ao acobertar os escândalos que tem envolvido políticos ligados ao PSDB. Corrupção sempre houve, e o mérito do governo PT foi ter criado dispositivos legais que ampliaram o poder de investigação. No entanto, isso se voltou duramente contra os governos do PT, e em alguns políticos do PMDB, mas deixaram de lado outras representações políticas que fizeram ao longo desses dez anos uma intensa oposição ao governo PT. E também sabemos que a corrupção ainda se manterá já que o sistema que a retroalimenta continuará em vigor seja com qual for o governo.
Diário Liberdade - A entrada do Brasil na crise fez surgir mais cruamente a política e o ethos da austeridade. O parlamento, o governo, se tornaram basicamente os gestores do "possível" indicado pelo orçamento - obviamente auxiliados pela mídia. O economicismo se tornou a tônica do discurso estatal, uma espécie de ditadura fiscal. Por outro lado, e concomitantemente, sobretudo através da Operação Lava Jato, o moralismo, o punitivismo e um forte apelo à ideologia jurídica ampliou sua influência política. Como você enxerga esses dois traços? Seriam complementares?
L. E. Motta - Como disse na resposta anterior, o Judiciário e o MPF ampliaram e muito o seu poder, o que podemos perceber um deslocamento de poder no Estado, embora o poder Executivo não tenha sido completamente esvaziado. Não vejo uma ligação estreita desse aumento de poder dos operadores do direito com esse discurso economicista e tecnicista que vem vigorando desde os anos 1990. O MARE criado por FHC e Bresser Pereira já advogavam pela “crise fiscal do Estado”, e daí a criação das agências reguladoras, OS, e privatizações nos anos 1990. E, sem dúvida, o governo Temer levou a ferro e fogo essa bandeira. Entretanto, nenhum governo, inclusive os do PT, não tocaram no X da questão: uma auditoria pública sobre a dívida interna! Ora, quase 50% do orçamento é destinado a pagar os juros da dívida para os bancos, criando assim na fração burguesa do capital financeiro e rentista uma soma de lucros fabulosos, e abrindo assim uma enorme diferenciação social. Quem paga “pato” pelo rombo ocasionado pela transferência desse dinheiro para o capital financeiro é o trabalhador público e privado. Não há como criar uma meta de desenvolvimento econômico e social com o montante dessa dívida interminável, e que nenhum governo teve interesse em se defrontar. E obviamente os meios de comunicação omitem essa causalidade e só se atém aos efeitos e transferem esse problema para os trabalhadores, aposentados e os beneficiados pelas políticas sociais, já que interessa a essa mídia esse conjunto de reformas neoliberais. E a classe média conservadora, orgulhosa de seu desconhecimento sobre essas causas, e facilmente aderente a esse discurso da crise fiscal derivada pelos “enormes salários públicos” tem dado apoio a essas medidas. Interessante que uma classe média similar como a nossa, a da Argentina, e que apoiou o governo Menem, foi diretamente atingida por essas reformas e mudou de posição no início do século devido as grandes perdas que sofreu. E vejo essa ideologia jurídica moralizante bem mais além do que o projeto da reforma fiscal: ela atinge diretamente a legitimidade dos políticos e dos partidos políticos, lembrando que os partidos políticos tiveram uma forte penetração na sociedade civil brasileira no combate à ditadura e na ampliação dos direitos formais nos anos 1980. Com a crise política que estamos vivendo nos últimos anos, e somada a crise econômica, os operadores do direito estatal emergiram como os “salvadores da pátria e da República”, ganhando um destaque até então de dimensões inéditas. O juiz Sergio Moro ganhou uma notoriedade nacional via mídia em curtíssimo espaço de tempo. No RJ tínhamos o juiz Siro Darlan da vara da Infância e da Juventude com grande penetração midiática, como também o Rodrigo Terra do MPE do Consumidor. Mas nenhum deles teve tal projeção (inclusive como objeto de livro biográfico vendido em bancas de jornais): tratavam de temas coletivos e difusos, e muitas vezes atingindo interesses de grandes empresas (como no caso do consumidor), ou da omissão de governos sobre políticas públicas voltadas para a infância e juventude, mas não encarnavam os “justiceiros republicanos” que punem os governos por serem sinônimos de corrupção e de desvios republicanos, sobretudo dos últimos governos que apesar de seus limites tiveram como marca a incorporação de amplos setores no emprego, na educação e com um aumento considerável no consumo.
Diário Liberdade - Continuando a falar sobre a Operação Lava Jato, como vê a relação desta com a ideologia das camadas médias brasileiras? A toga, o uniforme da PF, os slides do MP, seriam uma espécie de vanguarda/partido destes setores?
L. E. Motta - Quando a judicialização emergiu como tema acadêmico, muitos pesquisadores otimistas viam nesses magistrados e procuradores uma “vanguarda” para o avanço da democracia e da cidadania. Com o passar dos anos vemos, ao contrário, essa representação funcional ser legitimada pelos setores mais conservadores da classe média, a mesma fração que tem expressado ideologias racistas, machistas, homofóbicas e anticomunistas e antissocialistas. É difícil afirmarmos que se trata de um “partido”: a magistratura tal como a procuradoria envolve contradições internas e há oposição a esses setores conservadores por outras frações desses operadores do direito estatal, embora o grupo conservador tenha tomado as rédeas, ou mesmo a hegemonia nessas instituições. Mas certamente ainda veremos conflitos internos nessas instituições nos próximos anos: elas refletem dentro de si as várias das contradições da sociedade. O que é temeroso é a ampliação desse setor conservador por meio do recrutamento dos concursos públicos, lembrando que a grande maioria é oriunda da classe média urbana e não sabemos até onde essa maré conservadora irá influenciar essa nova geração, que distintamente dos funcionários do executivo que têm um plano rigoroso de carreira, já iniciam a carreira com altos salários, demarcando desse modo uma zona de privilegiados no aparato estatal.
Diário Liberdade - A extrema-direita no Brasil tem ganhado espaço. Como em outros países, figuras bizarras se fortaleceram, como é o caso de Bolsonaro aqui. Quais os principais fatores que explicam essa situação?
L. E. Motta - Tem havido, com efeito, na Europa e na América a emergência de neofascistas (vide Le Pen e o falecido Jorg Haider), de populistas de direita (Trump), e dos “apolíticos” tecnicistas como Macri e Dória. Bolsanaro sem dúvida expressa a tendência neofascista, e não consegue unificar em torno dele a bandeira da direita, pois muitos dos neoliberais não se identificam nele e optam por uma versão mais “suavizada” da direita como o Dória. Um dos problemas que eu percebo é que a direita atingiu uma parcela considerável da juventude que cresceu durante o governo PT e foi seduzida pelo discurso do individualismo, do empreendedorismo, da moralidade cristã, do patriotismo pseudonacionalista, onde ser nacionalistas é vestir a camisa da CBF, cantar o hino nacional e agredir os imigrantes, mas não em defesa do desenvolvimento nacional já que defendem um alinhamento automático com os interesses estadunidenses. É aquela máxima: a direita ama o seu país, mas odeia o seu povo! Além disso, constituiu-se nesse grupo de jovens (boa parte nerds que ficam o dia inteiro vinculados ao mundo virtual) uma defesa das Forças Armadas e de notórios torturadores como o famigerado Ustra. O PT e a esquerda em geral constituíram-se no “outro” a ser combatido pois representam a oposição aos EUA e a todos esses valores moralistas conservadores, e associam de forma grotesca o nazifascismo com a esquerda, e assim rasgam de forma absurda o histórico combate entre os comunistas (e a esquerda em geral) e o fascismo (a extrema-direita). Também estão arraigados os valores religiosos, e nesse aspecto foi fundamental o papel de muitos pastores e igrejas conservadoras que tem um forte espaço midiático, com direito inclusive a um canal de TV, ou alugam horários nas TVs abertas.
Diário Liberdade - Recente pesquisa da Fundação Perseu Abramo mostrou que, na periferia de São Paulo, trabalhadores informais e precarizados assumem uma ideologia empreendedora. Há pouco reconhecimento de classe. Acha que os atuais ataques do governo e do capital mudarão esse cenário? Ou terão um efeito paradoxal, de cada um se aferrar ainda mais em sua trajetória individual? E, afinal: no que a esquerda tem pecado?
L. E. Motta - Essa afirmativa da pesquisa da FPA não nos traz nenhuma novidade. O Flávio Pierucci publicou nos anos 1980 uma pesquisa na qual apontava que os eleitores do Maluf e do Jânio Quadros grosso modo moravam na região da periferia de São Paulo, i.e., nos bairros da classe trabalhadora. Nesse contexto prevalecia o discurso paternalista. Na atual conjuntura a direita conseguiu reproduzir via mídia, intelectuais “fast thinkers” que tem espaço na TV e nos blogs, e também nas igrejas essa concepção de individualismo e de empreendedorismo. O individuo é culpado de seus fracassos, de suas derrotas se por ventura não conseguir uma ascensão social é sua culpa exclusiva. Não há explicação sobre as causalidades da pobreza e das diferenças sociais: tudo é naturalizado de acordo com a vontade e capacidade do indivíduo. A mídia encampou cada vez mais esse discurso e não cede espaço a intelectuais que contestam esse discurso, e quando surgem casualmente numa entrevista não retornam mais. Essa individualização faz parte do discurso burguês, do discurso conservador, e isso um autor como o Nicos Poulantzas já chamava atenção nos anos 1970: essa individualização volatiza por completo as classes sociais e as lutas entre elas. E os governos do PT tiveram uma culpa parcial nisso. Primeiramente esvaziaram o discurso político da classe trabalhadora que era a sua marca nos anos 1980, e não politizaram de forma alguma as políticas sociais que implementaram. Parecia que era apenas um efeito de pagamento de impostos (afinal de contas, “nada é de graça” como tem sido capitaneada essa máxima pela direita); em segundo não quiseram se defrontar com a mídia conservadora quando implementaram o PNDH 3. O Plano inicial além de conter regras mais rigorosas na regulação, também abria espaço para outros grupos deterem canais de TV. E essa foi uma oportunidade que o PT deixou de lado e de abrir espaço midiático para segmentos da esquerda. Afinal de contas não estamos numa sociedade “plural” como defende essa nova direita? Brizola inclusive fez uma dura crítica ao Lula sobre isso naquele contexto. A direita é quem controla a mídia, haja vista que é uma meia dúzia de famílias que controlam os meios de comunicação, e tem como sócios algumas lideranças políticas locais (recordemos de ACM com a Globo). Por outro lado, parte de uma esquerda não petista não se mostrou apta em ocupar o vazio deixado pelo PT, a exemplo do PSOL que tem se caracterizado pelo discurso e pautas identitárias que têm apelo a uma fração da classe média urbana, mas um completo esvaziamento de uma pauta classista que atinja os trabalhadores urbanos e rurais. Ademais, uma de suas lideranças, Luciana Genro, tem ressuscitado o discurso udenista de teor moralista ao apoiar a Lava Jato, sem falar em críticas de teor anticomunista sobre as experiências socialistas que ocorreram no século XX. O PDT busca no Ciro uma liderança nesse partido que desde o falecimento do Brizola se encontrou num vazio completo. O PCdoB que foi o partido mais fiel ao governo PT, e não recebeu por parte do PT a mesma fidelidade, vide o não apoio a seu candidato que venceu para governador do Maranhão, Flávio Dino. O PCdoB ainda não conseguiu romper totalmente o seu vínculo ao PT a despeito de seu crescimento. Já o PCB é um partido muito pequeno composto por intelectuais e estudantes e sem trabalhadores. E tal qual o seu primo PCdoB, está muito atrelado a outro partido que vem a ser o PSOL. PSTU sofreu vários rachas recentemente e creio que terá um grande esvaziamento no decorrer do tempo. Há sim uma falta de uma liderança central no campo da esquerda. Até hoje o espaço do Lula não foi ocupado por nenhuma nova liderança da esquerda. O PT de fato não é mais o protagonista da esquerda brasileira, mas é difícil pensar num alternativa em 2018 sem o seu apoio, vide que as suas bases são bem amplas, e ainda representa o maior segmento eleitoral da esquerda. Talvez se faça necessário a formação de uma Frente Ampla Progressista e antifascista e antineoliberal que componha os diversos segmentos da esquerda a curto e médio prazo. Mas isso sendo otimista na ação, já que temos de ser céticos na razão (como dizia Gramsci) visto que a esquerda brasileira nunca conseguiu construir uma unidade de fato a exemplo de 1989 em que tivemos uma grande chance de construir. O PT optou ao longo do tempo em seguir uma trajetória solitária, desconstruindo a história pretérita da esquerda (especialmente ao PCB e a do PTB), e quando ascendeu ao governo por meio de um presidencialismo de coalizão com segmentos da direita, e representando frações do capital empresarial. Mesmo com as conquistas sociais deixou de lado as ruas (contrariamente o que o peronismo de esquerda dos Kirchners fez), e com a crise desencadeada em 2013 onde a direita ocupou cada vez mais as ruas, o PT não soube reagir à altura. Só nos resta ver o quadro que se configurará a curto e médio prazo com as perdas dos direitos da classe trabalhadora e de grande parte da classe média que bateu panelas em 2016. Por enquanto a incerteza ainda predomina.