Os fazendeiros, que seguem expandido as fronteiras agrícolas, no melhor estilo da acumulação primitiva – ou seja, à custa da expulsão dos pequenos agricultores e também dos indígenas – não querem saber de terras protegidas, florestas resguardadas, águas abrigadas da poluição, e muito menos de gente disposta a cuidar de tudo isso. Seu negócio é esgotar o solo com a monocultura ou com a exploração de minérios. Para essa gente, os povos originários são um atrapalho que precisa ser eliminado, de vez.
Não é sem razão que as comunidades indígenas vêm enfrentando toda essa violência. Desde que o movimento dos originários decidiu assomar em rebeldia, realizando as retomadas, a guerra está declarada. E o que são as retomadas? É a ocupação das terras originárias pelas comunidades que são as verdadeiras donas do lugar. Espaços como o Mato Grosso do Sul, por exemplo, onde os povos indígenas estão acampados em estradas, passaram a ser focos de intensa luta. As etnias originárias decidiram dar um basta aos ladrões de terra e foram tomar o que é seu. Nesse processo, enfrentam toda a fúria da jagunçagem, essa forma de banditismo tão comum no Brasil rural. Na verdade, povo pobre explorado duplamente pelos fazendeiros, que além de expulsá-los das terras, tornando-os sem terra, os transformam em criminosos.
Outros estados como o Pará, a Bahia, o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás, enfim, cada lugar onde tem povo indígena, vive seu drama. E, como não poderia deixar de ser, os fazendeiros tem o apoio da mídia comercial que os mostra como os “produtivos”, os que geram a riqueza do Brasil: “o agro é tech, o agro é pop”. Mentiras e mais mentiras. O agronegócio não é pop, ele é assassino. O agro não é produtivo, ele aposta na monocultura, no geral para fornecer matéria prima de forragem animal. Quem produz a comida que nos chega à mesa é o pequeno produtor.
O agronegócio quer as terras indígenas. Essa é a realidade. Os fazendeiros querem se apossar de todos os territórios que já estão demarcados e os que estão para serem entregues aos povos originários. Eles não querem que os indígenas protejam seus espaços sagrados, suas terras ancestrais. Não querem que os indígenas mostrem que é possível viver sua cultura e também avançar rumo a uma sociedade justa, equitativa, solidária e distributiva.
Os fazendeiros querem as terras indígenas e estão dispostos a eliminar cada um e cada uma, se preciso for. Por isso instauram o terror nos espaços conflagrados. E o que é pior, fazem isso sem que o poder público tome qualquer atitude. Eles correm soltos pelos pastos, arma na mão, boca babando. Muitas vezes atacam os indígenas acompanhados pelos soldados da força pública, protegidos pelo estado.
E os indígenas que nada mais tem de seu a não ser o corpo em luta, não se entregam. Enfrentam no peito aberto os jagunços, os bandidos, a polícia. Não abrem mão de seus territórios. Porque para um povo indígena a terra não é coisa que existe para vender ou para especular. Não. Terra é lugar dos deuses, da vida, da construção coletiva da vida. O território é o cenário vivo da sua cultura, o coração pulsante de sua realidade. Sem ele não há razão para viver.
Faz tempo demais que os ladrões de terra querem acabar com os indígenas. Começaram a agir em 1500 quando aportaram na Bahia. Tentaram de toda forma exterminar as culturas, o modo de vida, as pessoas mesmo. Não deu certo. Nos anos 60 do século passado, os ladrões de terra conseguiram fazer com que existissem apenas 180 mil almas indígenas nesse chão de tantos milhões de hectares. Quase colocaram fim em tudo.
Mas, com a força de Tupã, Ñanderu, Kuaray, as gentes originárias renasceram das cinzas. Saíram da tutela, do torpor, do medo. Já não havia mais nada a perder. Então foram se organizando e se levantando. Muitas etnias já conquistaram seus territórios, mas estão em vias de perder, com a proposta da PEC 215, a menina dos olhos dos fazendeiros. Eles querem poder para desfazer as demarcações. Mas, enquanto eles tramam nas salas acarpetadas, os povos indígenas se organizam e lutam. Fazem retomadas, resistem.
Na semana do 17 a 21, os povos indígenas estiveram em Brasília, no acampamento anual. Momento em que procuram estabelecer diálogo com os congressistas e com a população. E ocuparam a frente do Congresso com suas cores, duas danças, suas vozes, suas demandas. Mas, em vez do respeito e do encontro fraterno o que receberam? Balas, gás, paulada, desfeita. Na mídia, de novo a distorção. Um indígena com um arco diante do prédio aparecendo mais perigoso do que toda a tropa de choque da polícia militar. O mundo inteiro gritou diante disso. E no Brasil, quase ninguém. A população já domesticada pela ideia de que os índios são bárbaros e não merecem viver. Tão 1500.
Agora, com esse horror no Maranhão, quando pessoas tiveram suas mãos decepadas, observa-se certo choque. Como se a barbárie tivesse acontecido apenas ontem, com esse ato cruel. Mas, o que aconteceu no Maranhão acontece todos os dias nos cantos do Brasil, no interior da floresta, no incessante ataque do latifúndio sobre as terras indígenas e sobre os povos que lutam. Há cinco séculos os fazendeiros, protegidos pelo estado, vêm decepando membros e vidas.
Nesse contexto de terror cada dia mais exacerbado contra os povos indígenas só há um caminho. Entender definitivamente que os indígenas têm direitos e frear o latifúndio. Esse deboche cotidiano dos grandes ladrões de terra precisa acabar. E isso só acaba quando a sociedade se levanta em uníssono, em cada cidade, cada canto, cada rua, cada casa. É preciso que o clamor chegue aos que governam e que isso impulsione mudanças.
Sem uma luta massiva de toda a população, cada um de nós será também responsável pelas mãos decepadas, pelo suicídio de jovens, pela violação de mulheres, pela morte de crianças, pela fome de povos inteiros.
É tempo de retribuir os povos originários pela sua generosidade. Eles acolheram os homens brancos com os braços abertos, com risos e carinhos. Receberam a violência e foram roubados. O encontro ainda não se deu. Só o saque. É hora de o encontro verdadeiramente acontecer. Que se garantam as terras, que se garantam os direitos, que se deixem os indígenas viverem em paz. Só assim poderemos começar de novo.
Se não for assim, cada indígena que cai, tomba por nossa mão.
Elaine Tavares - jornalista e integrante do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA/UFSC).