A publicação do primeiro número eletrônico da revista de teoria e política marxista Ideias de Esquerda não poderia vir em momento mais oportuno. No ano do centenário da revolução russa, de transformações profundas no cenário internacional e nacional, um novo elemento de importância estratégica emerge em meio à crise que assola nosso país. A entrada em cena da classe trabalhadora, que pela primeira vez em vários anos protagonizou as importantes paralisações nacionais do dia 15 de março, e a ainda maior no dia 28 de abril de 2017 contra as reformas do governo golpista de Temer, é um sinal de alento. Decerto, a vitória desse movimento ainda é algo que está por ver-se, e para que isso ocorra é preciso que se adote uma estratégia independente, capaz de levar sua potencialidade até o final, que não virá da burocracia sindical.
A entrada em cena da classe trabalhadora, com seus métodos, pode significar uma grande inflexão na situação nacional. Inserem-se numa situação marcada por uma profunda crise política, econômica e social, que pode ser bem descrita com o que Antonio Gramsci nomeou como uma “crise orgânica”, que perpassa hoje o nosso país. Algo que é parte da etapa aberta pelas manifestações de junho de 2013, mas que poderia elevá-la na medida em que naquele então os trabalhadores atuaram diluídos.
Até agora, as disputas “nas alturas” se davam em torno de variantes dos partidos dominantes da degradada democracia brasileira, seja com a “casta” política que domina a política nacional, seja com as intervenções do Judiciário e a operação Lava-Jato, caminhos que cada vez mais evidenciam que o que está em jogo é qual fração burguesa dominará o sistema político. Por isso a importância das mobilizações que vêm ocorrendo, e questionando os projetos em curso de um governo fruto de um golpe institucional.
É no marco desse contexto e para lançar luzes sobre os imensos desafios e possibilidades postas em nosso país e no mundo que a revista teórico-política marxista Ideias de Esquerda se propõe a partir do resgate da teoria revolucionária, e empreende um esforço de elaboração de novas respostas. Esse esforço está dedicado a contribuir para que partamos das lições e reflexões necessárias sobre as experiências do movimento dos trabalhadores, debates entre a esquerda e debates intelectuais, para traçar a reconstituição da estratégia revolucionaria em nosso país. Trata-se, portanto, de um projeto militante. Mas também de um novo espaço para o debate de ideias, que busca estabelecer um diálogo crítico com distintas posições e interpretações dos temas mais candentes da atualidade.
Assim, nessa primeira edição apresentamos um dossiê de “Balanço Histórico do PT”, que reúne artigos que analisam criticamente as origens, formação e trajetória desse partido, que enfrentou a mais importante crise no último período. Ainda não se pode dizer ao certo qual será o destino do Partido dos Trabalhadores e de sua principal referência, Lula. Mas com o dossiê buscamos dar fundamentos sobre as raízes presentes em sua trajetória que levaram à crise atual.
Após ser deposto num golpe institucional pela direita, cujo caminho ao poder o próprio PT fora o grande responsável por pavimentar, e tendo em vista o sentido reacionário dos ataques de Temer, e a crescente percepção de que a Lava Jato não é uma instância neutra, mas, em verdade, todo o oposto, o partido de Lula retomou a posição de opositor de um dos governos mais ilegítimos e impopulares da história do país. Não está descartado, dessa forma, que tenha uma sobrevida, como subproduto desse conjunto de elementos que compõe a situação atual. Nesse sentido, um balanço estratégico de sua atuação nos momentos chave que integram a história nacional recente e seu papel na crise do regime forjado em 1988 que estamos presenciando é fundamental.
Partindo do desafio da reflexão atual, trazemos na revista o artigo de Leandro Lanfredi, “Os trabalhadores entram em cena em meio à crise do regime de 88”, no qual se examina as raízes e a dinâmica da importante crise orgânica que atravessa o país, que colocou em xeque o regime pactuado na saída da ditadura, e a entrada em cena da classe trabalhadora – uma análise da atual realidade brasileira.
Ligadas à análise do país hoje, o primeiro número da revista Ideias de Esquerda traz também entrevistas inéditas de expoentes do pensamento social brasileiro. Ricardo Antunes, um dos maiores nomes da sociologia do trabalho na atualidade, fala sobre a situação nacional após o golpe, os ataques do governo Temer, o passado e as perspectivas do PT.
Mas não é apenas nacionalmente que as indagações sobre o porvir e o rumo dos acontecimentos nos obrigam a encarar reflexões estratégicas. No plano internacional isso se colocou drasticamente com as eleições que levaram o empresário Donald Trump a ocupar o posto político de maior relevância mundial. A vitória de Trump foi o ponto culminante de uma campanha marcada pelos discursos carregados de xenofobia, machismo e nacionalismo. Os elementos que operam por detrás desse acontecimento pouco previsto por analistas políticos e intelectuais têm suas raízes em transformações profundas, que abarcam as dimensões econômica, política e social dos Estados Unidos. Trata-se do resultado de uma crise orgânica, e do esgotamento das bases de acumulação forjadas durante o auge da globalização, que se aprofundam como consequência da crise capitalista internacional aberta em 2008.
Para analisar esse tema, de complexidade e importância igualmente profundas, apresentamos o artigo “O que significa a ascensão de Donald Trump”, de Simone Ishibashi, que traz um breve balanço desses primeiros cem dias de governo. Também se insere nessa discussão as transformações estruturais do esgotamento do neoliberalismo do qual a eleição de Trump é uma resultante, que são uma expressão da grande inflexão que se iniciou com a crise econômica internacional e vai ganhando novos contornos na atualidade, pontos dos quais a análise está condensada na elaboração “Uma nova etapa do capitalismo internacional?” de Iuri Tonelo.
E para seguir a reflexão internacional e nacional apresentamos a entrevista com Theotônio dos Santos, presidente do Reggen e professor da UERJ, um dos responsáveis pela elaboração da teoria da dependência e da teoria do sistema-mundo no país, e analisa a decadência da hegemonia norte-americana, e sua trajetória política e teórica.
Para o debate teórico sobre os clássicos, André Augusto traça um resgate sobre a tática de frente-única operária, a importância da palavra de ordem de Assembleia Constituinte no legado de Leon Trotsky, durante os anos 1930, demonstrando toda a vitalidade da elaboração do dirigente da revolução russa e fundador da IV Internacional para responder aos desafios postos para os trabalhadores na atualidade.
Por sua vez, em uma situação em que a luta dos setores oprimidos, com destaque para a luta das mulheres, se faz sentir com toda força, tanto no plano nacional, quanto internacional, a necessidade de debater a estratégia sobre a qual essa deve se dotar está na ordem do dia. Para lançar luzes sobre esse debate, trazemos o artigo “A urgência de encarar a luta das mulheres como parte da luta contra o capitalismo”, de Maíra Machado.
A revista também trará em cada número uma reflexão sobre a cultura e a arte, entendendo que são temas fundamentais a se debruçar no interior de uma perspectiva marxista, mas também entendendo que é fundamental abrir espaço para a reflexão de artistas, críticos de arte e personalidades da cultura que estejam ligadas a dar uma visão alternativa a da indústria cultural, buscando resgatar esse debate no interior da esquerda. Nesse sentido, trazemos a entrevista com um dos novos nomes do cinema pernambucano, Pedro Severien, que trata um pouco da cena cinematográfica nacional, mas também comenta a política do país e a relação dos artistas com a política.
Por fim, para completar o primeiro número da revista, e sendo um dos seus pontos principais, trazemos um dossiê de Balanço histórico do PT. Abre o dossiê o artigo de Thiago Rodrigues, intitulado “A rebelião operária contra a ditadura e as origens do PT”, que debate a complexa relação entre o ascenso operário e a origem do partido, tendo em vista os elementos contraditórios e passíveis de críticas ao núcleo fundador do partido já nesse momento. Trazemos também um artigo de Daniel Matos sobre o “Ascenso negro dos anos 1970-80 e a tradição petista”, que estabelece uma breve história do ascenso negro e o movimento negro unificado, e as importantes lacunas na tradição do PT com relação a questão negra.
Particularmente nos anos 1980, novamente Thiago Rodrigues aborda a tradição pactuada no regime político brasileiro, especialmente lançando luzes sobre o processo das Diretas Já, observando todos os seus limites dentro de uma análise marxista e o papel que o PT cumpriu no processo, com o artigo: “A campanha das Diretas Já como mecanismo da transição conservadora”. Edison Urbano e Daniel Afonso escrevem sobre o processo da constituinte, desvelando o caráter pactuado, conservador e elitista que a constituinte assume, recorrendo, para tal, das análises de Florestan Fernandes, célebre personalidade intelectual do país e deputado constituinte durante o processo – que permitem aprofundar o que havia de retrógrado nesse processo.
Já sobre anos 1990, temos o artigo de Leandro Lanfredi, que aborda a emblemática greve dos petroleiros de 1995, o lugar de Lula e do PT nesse processo e a forma como se abriu caminho para o avanço brutal do neoliberalismo no Brasil.
Por fim, mas não menos importante, apresentamos nesse dossiê o artigo “Notas para um balanço histórico do PT” de Edison Urbano, que perpassa a trajetória do partido entre os anos 1990 e 2000, descrevendo os caminhos da adaptação total do partido à democracia degradada brasileira, passando pelo fenômeno do lulismo e chegando, por fim, na enorme crise política que o partido vive na atualidade.
Com essas elaborações, a revista Ideias de Esquerda, impulsionada pelo Movimento Revolucionário de Trabalhadores, busca ser um instrumento de reflexão, mas acima de tudo de desafio da ordem capitalista vigente, como parte da batalha para a ruptura com o capitalismo e a instauração de um governo dos trabalhadores, na perspectiva do comunismo. A crítica teórica já desde muito tempo deve vir acompanhada da luta por uma saída de emancipação dos trabalhadores, e, com essa, de toda a humanidade. Desmistificar a pretensa dominação eterna do capitalismo, que mesmo em crise e em clara decadência é defendida nas cátedras mundo afora como última forma de organização social humana, e recobrar a consciência do que a classe trabalhadora e, junto a ela, todos os oprimidos são capazes de fazer, buscando resgatar a tradição do movimento operário brasileiro, tirar todas as lições e auxiliar no caminho da vitória. Essa é a tarefa apaixonante que nos damos com essa elaboração. Convidamos nossos leitores que queiram colocar seus pontos de vista acerca dessa perspectiva, cada vez mais urgente, a encarar junto conosco esse desafio.