A apropriação da água no contexto global
Resoluções das Nações Unidas reconhecem que a água e o esgotamento sanitário são direitos fundamentais. Não há vida sem água e ela é bem comum que deve ser compartilhado entre toda a humanidade e os demais seres vivos.
A natureza se recria e a água é continuamente renovada em ciclos hidrológicos. Mas nosso planeta sofre uma intensa destruição pelas ações e atividades humanas. O sistema econômico global é extremamente predatório, produzindo uma sinergia e cumulatividade de impactos ao meio ambiente, o que provoca alterações climáticas, poluição e a destruição dos ecossistemas essenciais para a renovação da água.
As iniciativas da sociedade brasileira têm sido incipientes como prática preventiva para proteger a água. Continuam desguarnecidos os elementos vitais para manutenção dos ciclos naturais, como a proteção das florestas para a transposição continental da umidade (rios voadores), imprescindível para a regularidade das chuvas; a falta de gestão adequada do uso e ocupação do solo nas bacias hidrográficas visando proteger os mananciais (nascentes, rios, reservatórios); a manutenção e restauração da vegetação nativa; e o respeito às Áreas de Preservação Permanente e Unidades de Conservação.
O ritmo civilizatório é desumano: a má distribuição e a escassez são agravadas diante da apropriação da água para fins comerciais. Grandes corporações promovem um processo de mercantilização da água nos moldes usuais do mercado global: lucrar e distribuir dividendos a um reduzido grupo de investidores. Isso é inaceitável! Não se pode comprar chuva, não se pode comprar sol... É um contrassenso tornar a água mera mercadoria e isso levará o mundo a um futuro ainda mais injusto e perigoso.
É injusto porque representa o domínio de poucos sobre o direito de todos. A organização Oxfam denunciou, em 2016, que apenas 8 pessoas no mundo detêm a mesma riqueza que a metade do planeta, ou seja as 3,5 bilhões de pessoas mais pobres. Essa desigualdade também está presente na posse da água. Corporações como Nestlé, Evian, Cola-Cola, Pepsi-Co, Suez e Veolia dominam fontes de água em todo o mundo e intervêm diretamente na soberania dos países que possuem essa riqueza.
Empresas transnacionais que usam água como base de produção exercem grande influência nas decisões sobre esse bem nos países em que atuam e na própria ONU. Bancos de Wall Street (EUA) e de outros lugares do mundo, além de multibilionários, estão comprando terras onde há reservas de água em todo o planeta, demonstrando que existe grande interesse financeiro por essas áreas estratégicas. Com os processos de privatização, esses investimentos vêm sendo altamente lucrativos.
O capitalismo também leva à perda do controle social, democrático e comunitário sobre os recursos naturais, convertendo direitos em mercadorias e limitando o acesso dos povos aos bens e serviços necessários à sobrevivência.
A história tem demonstrado que a gestão ética não é uma virtude das corporações econômicas, que chegam ao extremo de estimular crises políticas e econômicas, a financiar golpes de Estado e a impor estados de exceção. Há inúmeros registros de estratégias para privilegiar interesses econômicos, como fraudes em licitações, chantagem, suborno, cooptação, superfaturamento e corrupção. Por outro lado, a história também tem revelado a luta dos povos diante das contradições e conflitos cada vez mais numerosos e intensos pelo uso da água, visando a construção de um modelo de desenvolvimento com sustentabilidade (ecológica, social, espacial, cultural, econômico-financeira etc.) para países e até continentes, como a América do Sul e a África.
A concentração em poucas mãos da terra rural e urbana; o uso inapropriado do solo e das águas por meio do desmatamento, impermeabilização do solo, lançamento de resíduos líquidos e sólidos; a construção excessiva e sem o devido controle de projetos de infraestrutura hídrica, a exemplo de barragens; além da contaminação do solo, do ar e da água pelo uso de agrotóxicos, são a expressão de um modelo predador, que espolia não só o trabalho, mas também o patrimônio ambiental e sociocultural. Há destruição e exclusão, enquanto deveria haver sustentabilidade e proteção do meio ambiente e da vida, para as atuais e futuras gerações.
Se historicamente este tem sido um processo injusto, agora se tornou perigoso. O Papa Francisco, por meio da encíclica Laudato Si, afirma: "É previsível que, frente ao esgotamento de alguns recursos, seja criado gradualmente um cenário favorável para novas guerras, disfarçadas de reivindicações nobres(...). Enquanto a qualidade da água disponível está em constante deterioração, há uma tendência crescente em alguns lugares de privatizar este recurso limitado (...). Espera-se que o controle da água por grandes empresas globais torne-se uma das principais fontes de conflito neste século".
Diante disso, todos devem reagir e defender-se de um modelo econômico que considera água e natureza como mero ativo de mercado, impondo um modelo ineficaz para prover acesso à água e ao saneamento para o conjunto da humanidade. Gerir bens comuns não é adequado ao perfil de empresas que visam lucro, portanto jamais será a base de uma economia sustentável, solidária e democrática, pois ameaça as espécies vivas, destrói os ecossistemas da Terra e a convivência pacífica entre os seres humanos.
A água como bem comum
A água é um bem comum. Isso nos leva a compreender também que sua gestão precisa considerar os interesses das comunidades locais, em especial os excluídos ou silenciados frente à forte voz do mercado, por meio de um processo democrático de debate e decisão sobre projetos que interferem no uso da água e da terra, especialmente no caso de empreendimentos de infraestrutura hídrica.
É preciso construir uma nova cultura da água, sustentada em valores éticos, ecológicos e culturais que garantam a inclusão e a justiça socioambiental, prezando pela transparência e participação popular ampla e representativa dos diferentes setores da sociedade.
É fundamental a compreensão de que a água é um bem comum que não pode ser gerido por interesses privados e que, mesmo uma gestão do Estado, que em teoria deveria prezar pelo bem comum, sem controle social e participação democrática, poderá priorizar o atendimento aos grandes interesses privados, como ocorre em casos de concessões de uso de fontes para exploração mineral, parcerias público-privadas dos serviços de saneamento público, entre outros.
O descaso que mata
A água contaminada mata mais de meio milhão de pessoas por ano e contribui para a disseminação de enfermidades. Em 80% dos países, o investimento para o abastecimento de água, o esgotamento sanitário e a higiene são insuficientes para alcançar as metas de salubridade pretendidas.
Segundo a ONU, cerca de 663 milhões de pessoas no mundo não têm acesso a fontes adequadas de água, 946 milhões praticam a defecação ao ar livre e a "água poluída é mortal para crianças severamente desnutridas, assim como falta de comida".
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) alerta que mais de 800 crianças, com menos de 5 anos, morrem todos os dias de diarreia associada à falta de água e de higiene. Aproximadamente 27 milhões de pessoas não têm acesso à água potável em países que enfrentam ou estão em risco de fome - como Iêmen, Nigéria, Somália e Sudão do Sul.
Gênero e acesso à água
A desigualdade de gênero também sofre o impacto da falta de acesso à água. A escassez e má distribuição leva mulheres a percorrerem longas e íngremes distâncias para obter água.
A UNICEF alerta que, globalmente, mulheres e meninas gastam 200 milhões de horas coletando água todos os dias. Sacrificam-se pelo bem dos seus, pela natureza ao redor, pela agricultura familiar e pelos animais que criam. E a feminização da pobreza é crescente. Conforme dados da ONU, 70% das pessoas que vivem em situação de pobreza no mundo são mulheres, atingindo em especial as negras, latinas, indígenas e imigrantes.
As mulheres são as principais responsáveis pelos cuidados familiares e da casa, portanto possuem necessidade premente de acesso à água potável e ao esgotamento sanitário, o que é impedido pela lógica da mercantilização e pela omissão dos poderes públicos.
A gestão da água no Brasil
O esgotamento sanitário guarda profunda relação com a saúde pública, sobretudo com as doenças de veiculação hídrica. É fato que quanto mais se investe, menos se onera o sistema de saúde, promovendo a saúde coletiva.
No entanto, o relatório “Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgoto” de 2015, elaborado pelo Ministério das Cidades, registra que, no Brasil, os níveis para atendimento de água por meio da rede pública eram de 83,3% e os níveis de coleta de esgoto total de 50,3%. Apenas 42,7% do total de esgoto gerado era, naquele ano, efetivamente tratado. As periferias, as áreas de ocupação irregular, os quilombos, as aldeias indígenas e as comunidades tradicionais concentram os excluídos do acesso ao saneamento básico no País.
No Brasil, as companhias estaduais e as autarquias municipais detêm notória expertise sobre o tema de saneamento básico, especialmente na água e no esgotamento sanitário. Mas a “terceirização” dos serviços, em especial nas atividades de operação e manutenção desses sistemas, apresenta resultados com baixa qualidade, afetando funcionários com a alta rotatividade e a redução ou perdas dos benefícios previstos na legislação trabalhista. Além disso, verificam-se os problemas comuns encontrados na gestão privada da água, como a falta de investimento em infraestrutura, o aumento de tarifas e dos danos ambientais.
A universalização do acesso com qualidade e integralidade só será possível com o fortalecimento do papel do Estado, com investimentos públicos suficientes e com transparência e controle social.
A experiência internacional tem revelado que a matriz pública da prestação dos serviços é mais adequada. A onda de privatização dos anos 1990-2000, estimulada pelas instituições financeiras internacionais e por gigantes operadoras do hidronegócio, que atingiu algumas cidades, principalmente da Europa, agora vem sendo revertida pela retomada dos serviços pelas municipalidades.
Nos últimos 15 anos, há notícia de, pelo menos, 180 casos de remunicipalização dos serviços de saneamento em 35 países, tanto do hemisfério Norte como do Sul. Dos 180 casos, 136 ocorreram em cidades como, Atlanta e Indianápolis (EUA), Accra (Ghana), Berlim (Alemanha), Buenos Aires (Argentina), Budapest (Hungria), Kuala Lumpur (Malásia), La Paz (Bolívia), Maputo (Moçambique) e Paris (França).
A desmercantilização dos serviços públicos de saneamento, especialmente dos que envolvem água e esgotamento sanitário, é uma tarefa para a geração atual, especialmente em países aonde persiste a dominação colonialista como o Brasil, que conviveu com a espoliação de seu patrimônio natural durante séculos, e onde o aumento de passivos ambientais e a falta de investimento para sustentabilidade e segurança hídrica são históricos. Esse cenário aponta, no médio prazo, para a impossibilidade de correção dos efeitos nocivos provocados pelo modelo atual, o que poderá condenar a sociedade a um futuro inseguro.
CHAMAMENTO AOS POVOS PARA O FÓRUM ALTERNATIVO MUNDIAL DA ÁGUA
Coletivamente rejeitamos o controle das empresas privadas sobre o patrimônio natural que é a água. Como cidadãos, sindicatos, organizações humanitárias e de defesa do meio ambiente, entendemos ser nosso dever e obrigação protestar contra a apropriação do mercado sobre um direito humano fundamental. Assim, deliberamos por conclamar a humanidade à realização do FÓRUM ALTERNATIVO MUNDIAL DA ÁGUA - FAMA 2018.
Essa iniciativa é imprescindível, pois em março de 2018, o Brasil sediará a 8ª edição do Fórum Mundial da Água (FMA), evento organizado pelo Conselho Mundial da Água a cada três anos desde 1997, que conta com orçamento milionário que serve para atrair dezenas de milhares de participantes e validar as políticas de privatizações dos governos e funciona como balcão de negócio das grandes empresas do setor de água. As discussões preparatórias a este evento, apontam para o objetivo, mesmo que não totalmente explicitado, de direcionar e Influenciar tomadas de decisão dos governos e influenciar a opinião pública para uma visão e gestão privatista dos recursos hídricos.
Apesar de ser a 8a Edição este Fórum não possui a legitimidade que pretende ter para representar os anseios colocados pela maioria dos povos do planeta em relação ao acesso à água. Muito pelo contrário, este Fórum de empresas representa realmente um perigo.
O Fórum e o Conselho são vinculados às grandes corporações multinacionais, que têm como meta impulsionar a mercantilização da água; a intensificação das práticas de transposição de bacias hidrográficas, que privilegiam o atendimento das demandas do agronegócio intensivo e da indústria pesada, a qualquer preço, em detrimento da sua gestão democrática para o bem comum; a construção de barragens que afetam populações ribeirinhas sem considerar impactos sociais e culturais; a apropriação e controle dos aquíferos subterrâneos; entre outros.
Na realidade, imposto pelo FMA, há um avanço e predominância do protagonismo do mercado global. O FMA se tornou um espaço para alavancar a oportunidade de negócios. Ao contrário do que prega, não é democrático e inclusivo – e cabe a sociedade contemporânea desmistificar seu discurso, que se apresenta como neutro e universal, quando na verdade privilegia velhas fórmulas para viabilizar interesses econômicos.
Para se contrapor a esta visão mercantilista e entendendo que a água é um direito e não mercadoria, bem comum da humanidade e de todos os seres vivos, dezenas de entidades da sociedade civil, de defesa do meio ambiente, de representação sindical de trabalhadores, movimentos sociais e populares, do Brasil e do exterior, decidiram realizar o FÓRUM ALTERNATIVO MUNDIAL DA ÁGUA – FAMA 2018, a exemplo do que ocorreu em outros países nas reuniões anteriores. Para organizar os primeiros passos, ocorreram reuniões em São Paulo a partir de fevereiro de 2017.
Nossa iniciativa questiona a legitimidade do Fórum Mundial da Água como espaço político para promoção da discussão sobre os problemas relacionados ao tema em escala global, envolvendo governos e sociedade civil. Dizemos NÃO ao Fórum Mundial da Água, apontando a falta de independência, representatividade e legitimidade do conselho organizador, por estar comprometido com empresas que têm como objetivo a mercantilização da água. Isso significa um conflito intransponível entre interesses econômicos e o direito fundamental e inalienável à água, bem comum da humanidade e de todos os seres vivos.
Objetivos do Fórum Alternativo Mundial da Água - FAMA
São objetivos principais do FAMA:
1. Ser um evento democrático, transparente, participativo, descentralizado e acessível, cuja realização ocorrerá simultaneamente e em contestação ao Fórum Mundial da Água. Terá a função de discutir problemas relacionados à água e ao saneamento, como direito fundamental, nas suas mais variadas interfaces, em busca de soluções que representem sustentabilidade e segurança hídrica para os seres humanos e a manutenção da vida na Terra.
2. Sensibilizar e mobilizar a população sobre o tema e a problemática da água e do saneamento, empreendendo amplo debate público em todo o País por meio de seminários, aulas públicas, oficinas, atividades culturais, atos ecumênicos etc.
3. Desenvolver um processo de sensibilização/mobilização que deverá servir à construção e realização do FAMA, visando ainda colocar o debate de forma permanente na agenda da sociedade em nível mundial.
4. Denunciar a ilegitimidade do 8º FMA e responsabilizar governos pelo uso de recursos públicos na promoção de interesses privados.
5. Propor e cobrar ações para os governos, visando políticas públicas de pleno acesso à água e ao saneamento, como direito fundamental e com amplo reconhecimento das Nações Unidas.
6. Reforçar a luta contra a mercantilização da Água.
7. Utilizar o lema “ÁGUA É DIREITO E NÃO MERCADORIA”, visando popularizar o tema, intensificar ações e unificar os esforços de cidadãos, coletivos e entidades que atuam nas mais variadas áreas ligadas à água, como abastecimento, saneamento básico, direitos humanos, atingidos por barragens, combate aos agrotóxicos, agricultura, meio ambiente, moradia etc.
8. Tornar estas ações um processo permanente, na perspectiva inicial de criação de espaços públicos de discussão, como comitês populares, para a construção do Fórum Alternativo Mundial da Água em todos os Estados brasileiros e, em segundo momento, promover a organização permanente onde os comitês populares formados para a construção do Fórum venham a se transformar em comitês de mobilização em defesa da água e do saneamento.
9. Viabilizar esses objetivos com ampla articulação e apoio da cidadania e de organizações, que possam integrar-se ao processo e colaborar com recursos financeiros, materiais e humanos.
Finalmente, o FAMA deve retratar e promover a tomada de consciência política da sociedade para que ela se apodere dos destinos do uso da água em cada lugar no mundo. Deve trazer à luz o que de melhor a humanidade pode almejar, dentro do exercício da ética em relação à vida e seus elementos essenciais de sustentação. Neste sentido, chamamos os povos à preservação ética do ciclo da água para a proteção da vida e dos ecossistemas, em que todas as espécies crescem e se reproduzem. Água deve estar a serviço dos povos de forma soberana, com distribuição da riqueza e sob controle social legítimo, popular, democrático, comunitário, isento de conflitos de interesses econômicos, garantindo assim justiça e paz para a humanidade.