Tentando encontrar, tal qual a leitura materialista de Lênin[i], o “núcleo racional” dessa visão com fortes cores hegelianas, achamos um motivo bastante coerente para essa sobreposição quase linear – fora seu efeito sobretudo retórico. Rejeitando a causalidade “completamente endógena” nas análises de processos político-sociais, o autor se propõe “perceber como se dá nosso modo de integração aos movimentos globais”. Tal postura se mostra útil, diz o autor, tanto teórica, para explicar os “três fins” brasileiros (Nova República, lulismo e esquerda), quanto politicamente, já que ela nos impede de reanimar corpos políticos (para usar sua terminologia) há muito esgotados.
Não obstante seja uma intervenção no debate político nacional, mais propriamente uma interlocução com a esquerda, Safatle pretende se desviar da clássica pergunta “que fazer?”. Sua pretensão é pensar “como decisões devem ser tomadas”; reativar a imaginação e a paixão política pela qual as estratégias e programas da esquerda serão acionados. Ora, esse passo atrás nesse aspecto do paradigma leninista perpassa outros pensadores com quem o autor dialoga. Zizek e sua inversão da décima primeira tese sobre Feuerbach; Badiou e seu “nossos problemas são muito mais os problemas de Marx do que os problemas de Lênin”[ii]. De certa forma, cada um a sua maneira, reafirmam uma profunda crise do pensamento revolucionário, e uma imperativa retomada de reformulação teórica.
Desenvolveremos aqui algumas impressões sobre os ensaios do livro, focando nas suas inconsistências e incoerentes. Não como o fez João Pereira Coutinho na Folha[iii]. Pretende-se aqui esboçar uma (bastante limitada) crítica imanente. A polêmica parte do ponto de concordância com Safatle de que:
“O esgotamento da esquerda brasileira depois do colapso do lulismo é algo a ser encarado diretamente. Ele pode parecer como um momento privilegiado para uma inflexão a práticas políticas mais condizentes com o tamanho das lutas e desafios que temos pela frente. Em um cenário mundial no qual as ilusões das conciliações da democracia liberal foram desfeitas e onde a política tende a ir para os extremos, cabe à esquerda não temer recuperar sua radicalidade”. (p. 121)
Ou seja, na concordância de que crise teórica e política são oportunidades ímpares. Um pouco como Althusser, que no final dos anos 1970, ousou exclamar: “Enfim, a crise do marxismo!”[iv].
Além disso, é importante reforçar, Safatle foi um intelectual que, “quando as ruas queimavam”[v] em 2013, não temeu a rebelião popular, nem tentou blindar o PT que caia no abismo cavado pelos seus próprios pés. Postura diferente de outros colegas seus – nos lembremos da uspiana Marilena Chauí indo à PMERJ[vi] para ensinar (e não aprender) sobre fascismo, que supostamente surgia sob os rostos cobertos em meio a vidraças quebradas de bancos. Suas contribuições sobre as dinâmicas psicossociais que estão nas bases dos movimentos políticos contemporâneos também merecem destaque.
A posição política do filósofo, no entanto, é fugaz, esparsa, “antipredicativa”, o que dificulta a crítica imanente. Ele, na prática, destitui o leitor “da força de enunciação de regimes visibilidades possíveis” (p. 105). Muitas vezes, no livro, ou nas suas diversas intervenções públicas, vemos afirmações ou propostas contraditórias e que escapam às definições ou posições pré-estabelecidas. Nega um olhar pragmático, por exemplo, para, logo em seguida, expor um protótipo de plano de governo. A nosso ver, há nisso uma pitada de jogo tático (ou de uma economia discursiva), assim como ocorre por inconsistência e fragilidade mesmo – e sobre aqui tentaremos incidir.
O recalque da economia: um problema de diagnóstico e prognóstico
Logo no início do livro, se Safatle consegue sustentar, no terreno da análise política e eleitoral, as justificativas de porque a “esquerda” ter sido vitoriosa nas eleições da América Latina apenas no dobrar do século – e aqui ele não adentra de forma consequente nas diferenças entre reformismo, social democracia etc. -, não podemos dizer o mesmo no terreno econômico. Recorrendo a uma analogia da psicanálise, este elemento parece estar recalcado na maior parte de sua argumentação.
Há, por exemplo, mais um desenvolvimento da ideia de “neoliberalismo como discurso moral” do que como “fase” do capitalismo. No mesmo sentido, a análise da ascensão e queda do PT, assim como das características do lulismo, simplesmente não considera fatores e eventos econômicos (sobretudo externos), como o boom das commodities, suas causas e consequências[vii]. Em um trecho, lemos: “foi esse bloqueio político (da conciliatória Nova República) que paralisou as possibilidades sociais e econômicas brasileiras” (p. 67). Noutro, a queda do PT é tributária de uma “crise popular de frustração” (p. 87), se referindo ao conceito “frustração relativa” de Tocqueville. A economia aparece apenas como política econômica, manuseável pelos agentes políticos, quase sem dinâmica própria (que puxa até a burguesia e seu Estado), ou mesmo relação com cenário internacional – e fica a impressão de que, no fundo, tudo poderia ter sido resolvido com uma reforma tributária, uma abertura para participação política direta da população ou coisa que o valha. Como se a politização da economia proposta pelo autor já existisse para controlar os impulsos de acumulação do capital (considerando que isso seja possível).
Só com isso ele cai em duas posturas que rejeita veementemente: 1- a análise por causalidade endógena (não incluindo o país nas mutações da divisão internacional do trabalho e cadeias de valor, ao longo dos últimos anos, além das configurações geopolíticas); 2- o déficit e/ou abandono de uma crítica estrutural por parte da esquerda contemporânea, cujas demandas de amparo a diferenças nunca tocam nas “exigências globais de transformação dos modos de reprodução material da vida” (p. 38) e são “uma espécie de compensação à inexistência de um discurso econômico de esquerda com clara força de transformação e com capacidade de implicar as classes empobrecidas” (p. 36).
Essa espécie de recalque do econômico volta como sintoma não só em Safatle, mas no pensamento crítico contemporâneo como um todo. Goran Therborn, em seu livro Do marxismo ao pós-marxismo, percebe que a filosofia acabou se tornando um dos campos mais privilegiados da reflexão (pós-)marxista após um recuo em outras ciências sociais, dada também a queda dos movimentos políticos revolucionários ao longo do século XX. Da mesma forma, a descentralização do trabalho e dos trabalhadores como sujeito político por excelência, fora uma posição mais pessimista em relação ao progresso e à modernidade, conduziram a teoria crítica para outros fundamentos que não o econômico.
Assim, a utilização de conceitos e autores econômicos liberais acaba por se fazer, seja pelo descuido epistemológico, ou pela necessidade, dado o vazio teórico no qual nos encontramos. Um preço a ser pago. O epistemológico e o político aqui se enlaçam. Aprendemos isso com Marx: sem a crítica da economia política não se consegue fugir aos problemas práticos embutidos na mesma; sem autonomia teórica, não há autonomia política das classes dominadas[viii]. “Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário”.
O uso constante de economistas como Piketty (um neoclássico, como lembra Harvey[ix]), de forma não problematizada, desliza-se facilmente para o uso e a repetição de suas propostas políticas que estão bem longe de serem “anti-capitalistas”. Como o francês normalmente fala, o socialismo deu errado, é antigo e ultrapassado... Ora, e qual documento político inspira Piketty em sua maior obra e na sua luta para a “democracia controlar o capitalismo”? A Declaração dos Direitos do Homem, de 1789!
Pois bem, Safatle é filho de seu tempo, e está imerso nesses limites até os fios de seu cavanhaque. Não que ele não tenha nenhuma consciência dessa contradição. Em outra oportunidade[x], chegou a falar explicitamente do risco de a esquerda mimetizar práticas e pensamentos da direita, dado um déficit teórico. Todavia, nesse livro, ao falar do auxílio estatal para criação de monopólios no período petista, o autor se expressa sobre a JBS da seguinte forma: “serviços de péssima qualidade, carnes com papelão, ausência de concorrência e baixos índices de inovação” (p. 92). Poderia ser o seu opositor Coutinho falando.
De qualquer forma, várias analogias bem instigantes entre Piketty (um dos poucos economistas citados pelo filósofo, fora alguns petistas) e Safatle podem ser feitas. Crítica ao capitalismo patrimonialista contemporâneo, defesa da regulamentação econômica, reforma tributária... além da defesa da democracia, no primeiro para controlar o capitalismo, no segundo para se chocar contra ele[xi]. A utilização de filósofos políticos liberais por Safatle em sua defesa da soberania popular também pode ser incluída aqui, mesmo com seus arroubos jacobinos.
Às vezes, as neuroses nos colocam para trabalhar para mestres invisíveis.
Reforma-revolução: a esfinge da esquerda
Isso nos leva à pergunta: mas Safatle e seus pares realmente pretendem essa autonomia e radicalidade? É uma questão séria e escorregadia. É famosa sua crítica à pobreza da pergunta “reforma ou revolução?”, e à ausência de uma teoria de governo da esquerda. Ao mesmo tempo que fala de retomada da radicalidade, e do nefasto mergulho à gestão capitalista “normal” como fez o PT. Como dissemos, essa ambiguidade está bastante presente no livro. Há um Safatle-Jano que se volta aos argumentos liberais e parece dizer “vocês não sabem gerir, a esquerda faria melhor”. Façamos um novo esforço! Sua outra face destina uma dura autocrítica à esquerda e parece dizer “não fizemos nada mais do que a ‘repetição compulsiva de nossos impasses'” e aí cita Lênin e Marx. Façamos um esforço novo! Mas foquemos onde Safatle se torna, mais uma vez, em um Ouroboro.
Logo no início, ao analisar a existência do Estado de Bem-Estar Social do norte no pós-guerra, o autor confessa que se tratava de uma “coexistência pacífica”: “um sistema de acordos e equilíbrios entre setores sociais antagônicos e vitoriosos ao final da guerra” (p. 19). Fala-se, obviamente, do socialismo vitorioso em vários países e suas ramificações comunistas que derrotaram o fascismo e impuseram um recuo ao mundo do capital. As regulações econômicas e demais reformas “democráticas” existiram sob essa gravidade política. Quem reforça bem isso é um colega de Safatle, Paulo Arantes, que fala de uma “trégua do imediato pós-guerra” (O novo tempo do mundo).
Mais à frente, Safatle reconhece que a esquerda ter abandonado a revolução foi o primeiro passo para também abandonar a reforma (p. 35): eis o gatilho para o surgimento de um “horizonte mundial de capitulação” e de “governos de esquerda” executores das políticas neoliberais. Incluindo aí até mesmo a menina dos olhos (e desilusão mor) do “pós-marxismo”: o Syriza[xii].
Parece contraintuitivo, mas se se quer minimamente retomar um capitalismo menos bárbaro, a história ensina que há de se retomar a posição revolucionária. É o próprio Safatle que o diz, mas com vários passos atrás.
Alguns com razão. De fato, é preciso separar essa afirmação de qualquer elogio ao esquerdismo, um desprezo à tática, ou coisa que o valha. Mas isso só reforça o retorno do debate reforma-revolução. Vejamos, longamente, como Rosa[xiii], antes mesmo do Estado de Bem-Estar e do posterior “horizonte mundial de capitulação”, advertia o risco do abandono da posição revolucionária (não idêntica ao esquerdismo) até para as reformas:
“É suficiente reconhecer que o liberalismo burguês vendeu a alma, assustado pela evolução do movimento operário; concluir-se-á que o movimento operário socialista é, atualmente, o único sustentáculo da democracia, não existindo nenhum outro. Verificar-se-á, então, que não é a sorte do movimento socialista que está ligada à democracia burguesa, mas, pelo contrário, é a democracia que se encontra ligada ao movimento socialista. Verificar-se-á que as oportunidades da democracia não se ligam à renúncia da classe operária à luta pela sua emancipação, mas, pelo contrário, ao fato de o movimento socialista ser suficientemente forte para combater as consequências reacionárias da política mundial e da traição da burguesia.”
“Quem desejar o reforço da democracia desejará o reforço e não o enfraquecimento do movimento socialista; renunciar à luta pelo socialismo é renunciar simultâneamente ao movimento operário e à própria democracia.”
[...]
“Lutas sindicais, lutas pelas reformas sociais e pela democratização das instituições, constituem também o conteúdo formal da atividade do partido social-democrata. A diferença não reside no quê, mas no como. No atual estado de coisas, a luta sindical e a luta parlamentar são encaradas como meios de dirigir e educar pouco a pouco o proletariado para a conquista do poder político. Segundo a teoria revisionista, que considera como inútil ou impossível a conquista do poder, a luta sindical e a luta parlamentar devem unicamente ser praticadas para alcançar objetivos imediatos que visem melhorar a situação material dos operários e procurem a redução progressiva da exploração capitalista e a extensão do controlo social.”
Em alguns trechos do livro, quando da análise do PT, o filósofo ainda vê de forma cristalina como este elevou a lógica sindical-corporativista ao centro do poder. Não produziu um novo sujeito político, mas integrou, “capitalizou”, os dominados. O “flerte com a conservação”, fala Safatle estava presente desde os primórdios da CUT, o que passa despercebido por aqueles que choram a saga do PT perdido – como o próprio Löwy, que faz o prefácio do livro. Ora, eis o que acontece quando as reformas não têm claras indicações estratégicas, ou quando o objetivo da organização só se resume a democratizar este Estado / redistribuir essa riqueza, com finalidade de tornar “menos pior” a vida da massa. Isso é o proletariado (mais concretamente, sua “aristocracia”) agindo sob a posição/ideologia inimiga, de conservação, apenas como “capital variável” buscando se valorizar, coisa que acontece quando não se tem uma posição revolucionária suficientemente desenvolvida para se contrapor[xiv] – e ainda mais quando esse inimigo te paga cursos sobre sindicalismo nos EUA...
Àqueles que insistem na redução dessa postura trazida por Rosa ao utopismo e à nostalgia, mesmo diante da barbárie contemporânea e retorno do fascismo mundo à fora, lembremos o que Zizek[xv] diz, de forma surpreendente, de Piketty:
“Le Capital au XXIe siècle é um livro essencialmente utópico. Por quê? Por conta de sua modéstia. Thomas Piketty percebe a tendência inerente do capitalismo à desigualdade social, de tal forma que a ameaça à democracia parte do interior da própria dinâmica capitalista. Até aí tudo bem, estamos de acordo. Ele vê o único ponto luminoso da história do capitalismo entre as décadas de 30 e de 60, quando essa tendência à desigualdade era controlada, com um Estado mais forte, Welfare State etc. Mas reconhece ainda que as condições para isso foram – e eis a trágica lição do livro – Holocausto, Segunda Guerra Mundial e crise. É como se estivesse implicitamente sugerindo que nossa única solução viria com uma nova guerra mundial, ou algo assim!”
Ao direcionarmos hoje os adjetivos “utópico” e “nostálgico” ao “modesto”, a que Safatle contraditoriamente parece se filiar por vezes, começamos a lançar bases para que a radicalidade proposta por ele tome outras bases, mais consequentes. O “eleitoralismo” da visão do filósofo identifica forçosamente teoria de governo, manuseio tático, com governar o Estado capitalista / redistribuir riqueza. Implicitamente se crê que a revolução é um Evento por excelência, inorganizável, inaudito, e que até lá temos o dever de casa da política mais ou menos arrojada (mesmo afirmando, como acima, que por si só isso leva ao fracasso). E aqui entramos no último tensionamento: não haveria necessidade de uma “teoria de governo” para outras estruturas de poder não-estatais, nas quais a esquerda está falhando miseravelmente? Nas “organizações de base”, na “linha de massas”, na “mobilização popular” ou qual nome se queira colocar para isso?
Gerar ainda mais desamparo? Ou a organização como pátria proletária
O eixo de mobilização e distintivo da esquerda contemporânea, diz Safatle, estão nas políticas da diferença. Se sua a crítica à fraqueza de uma política das particularidades, sustentada por traços identitários excludentes, da qual só se produz feudos de consumo personalizado e autoexpressão, mostra-se bem pertinente, acompanhando Zizek, Badiou e outros, é sua proposta alternativa que se mostra problemática.
Safatle propõe substituir o particularismo por uma política da indiferença; as identidades pelo nada, o vazio, a “negação pura sem retorno”. O nome dessa não-identidade? Proletariado. E vemos o retorno e o elogio dessa categoria há tanto abandonada pela teoria crítica. Visivelmente, não mais sob um verniz sociológico ou econômico, mas como uma “categoria ontológica” (p. 102).
Num primeiro momento, essa política da indiferença faria “usos de identidades apenas estrategicamente”, ou seja, seria capaz de sair do imobilismo dos particularismos e alcançar o patamar genérico para a constituição de um novo corpo político. Mas esse uso estratégico parece ser abandonado logo depois, em sua reflexão sobre o desamparo como afeto político a ser cultivado pela esquerda, em contraposição à paranoia securitária alimentada pelo atual Estado sua gestão cada vez mais fascistizada. O desamparo, condição primeira do proletário, deve ser assumido e desejado como negatividade necessária para a construção do novo.
Aqui há uma confluência de problemas que analisamos acima: o recalque da economia, sob a forma de um conceito puramente filosófico de proletariado; busca de uma autonomia político-teórica de classe, não reforçada, nem anunciada antes; o curto-circuito do foco na “teoria de governo”, na dimensão “tática”, para uma teorização do inominável, do evanescente, da pura potência desestabilizadora. Mas vejamos separadamente nosso último elemento de tensão.
Impossível não recorrer ao clichê “muito bonito na teoria, mas...”. Fora do universo intelectual, acho difícil gerar uma “paixão pelo negativo” tamanha, mesmo que seja apelando que falta “só mais um esforço” (para ficar em outro clichê). Em seu Manifesto pela Emergência, ele trata da necessidade de aceitar a existência da pulsão, aquilo que “nos destitui das condições de próprios”. Contudo, sem mencionar que essa aceitação, normalmente, envolve longos (e caros) processos analíticos.
Sob o signo do desamparo que se pretende retomar a “dimensão fundamental de persuasão retórica” (p. 37), perdida pela esquerda? Ao adentrarmos no campo pragmático das disputas político-ideológicas de hoje em dia, vemos limitações extremas para tais propostas. Ora, o crescimento da direita se sustenta exatamente por oferecer amparo, esperanças, gerar identidades menos degradadas. Isso Safatle é o primeiro a dizer. Mesmo que tudo seja ilusório (“administração de insatisfação”, como ele diz), esse é um elemento mobilizador central para esse campo – mesmo que sob o paradoxo de mobilizar para que tudo fique igual.
Logicamente, opor-se a esse campo político deveria ser, também, opor-se à sua dinâmica. Bem, não necessariamente. A crise do capitalismo é a primeira a oferecer desamparo, proletarizar em massa os que antes tinham “alguma coisa a perder”. Caso a esquerda não ofereça espaços e instrumentos coletivos de integração, defesa e solidariedade, muito difícil sair de seu abismo minoritário. O adoecimento em massa de militante não diz dessa realidade? Não buscar soluções para esse sistema não significa não encontrar alternativas para o povo, pelo contrário! “Anulação completa de vínculos a formas de vida tradicionais” (p. 104), prescinde vínculos a outras formas de vida. Caso contrário, ao não ver nada além das correntes, as pessoas preferirão as correntes.
A política das indiferenças de Safatle se dá em uma polêmica direta com Honneth. A posição dele avança bastante frente ao monismo moral do último, sem dúvidas. Mas a solução parece um tanto capenga. E para repará-la não só seria necessária uma dose de reflexão sobre “reforma e revolução”, mas também, arriscaria dizer, integrar uma tese de Lênin em Um passo adiante... “O proletariado na sua luta pelo poder, não tem outra arma senão a organização”.
Esta organização não se pauta por ser o afeto mais ou menos “patológico”, mas por uma necessidade, inclusive de sobrevivência. Mas não só. Ali se criam identidades e redes de sentido e reconhecimento não-estatais[xvi] – não se trata de demandas de amparo a um Outro (inimigo), mas construção de autonomia e força; ativa não desejos reativos, mas aciona o que tanto Marx e Engels primou: o brio e a dignidade proletária[xvii].
A figura do proletariado de Safatle, arriscaria mais uma vez dizer, é, no fundo, atomista. Não se trata de uma classe em luta com outra, fundada nas relações de exploração, assujeitamento e dominação. Trata-se de “modos de existência”. Ao tentar, por boas razões, fugir dos particularismos, da demanda de amparo (que erroneamente parece só existir se dirigindo a um Estado, ou ao Mercado), e buscar maior autonomia política, vislumbra nada além de significantes vazios e puros, não relacionais[xviii], cuja política possível é se aglutinar em “constelações” sem uma direção e constância.
Esteticamente, sem dúvidas, é uma bela imagem. Uma bela imagem para compensar a falta de radicalidade em outras pontos de sua argumentação? Para se afastar da disputa política da maioria que nada tem e desesperadamente se apega aos aparatos que se tem à mão para sobreviver (religião, psiquiatria, ONGs, políticos tradicionais, celebridades...)? O risco patente é de sair do imobilismo do particularismo para o imobilismo do genérico.
“Um problema de imagem”, diz o segundo capítulo. Diríamos que o problema, nesse caso, é tudo, menos de imagem. Mesmo sendo bela e quebrando alguns conceitos filosóficos de fato arcaicos, encontra-se muito aquém das necessidades e desafios da esquerda apontados pelo próprio autor. Opor-se a um sistema articulado internacionalmente a ramificado em todas as esferas da vida social exige um corpo político com direção, duração, acúmulo – ou se evanescerá como um evento na história dos oprimidos: brilhante, pedagógico, mas ainda assim derrotado. Os eventos do movimento operário as quais Safatle se referem não ganharam uma nova dimensão por se associarem um nome que fosse genérico, mas por conta, principalmente, de um espaço de enunciação próprio, cada vez mais organizado, coerente e consolidado (assim surgiu a AIT). Mais do que repetir o mantra acusatório “dirigista, hegemonista, centralizada e hierárquica” à esquerda em geral, o autor poderia contribuir com a questão: de que tipo de direção/hegemonia/centro/hierarquia precisamos hoje?
De fato, não é a do mesmo tipo da esquerda eleitoreira que caiu de paraquedas julgando/amansando a rebelião popular de 2013. E Safatle começa a tematizar isso, quando analisa essa rebelião: “Faltava mais do que organização prévia. Faltava capacidade de criar atores políticos e criar organizações com força de implicação genérica a partir de acontecimentos. Para tanto, seria necessário aceitar a emergência de espaços de descontrole, sem existência de cúpula, mas com disciplina de adesão e decisões”. Ou quando fala, em outras oportunidades, da também bela imagem de “heteronomia sem servidão”. Mas não avança muito mais que isso, e, quando avança, incorre nas outras questões acima expostas.
Safatle, só mais um esforço!
[i] https://www.marxists.org/reference/archive/althusser/1969/lenin-before-hegel.htm
[ii] http://www.lacan.com/essays/?page_id=323
[iv] https://www.marxists.org/history/erol/periodicals/theoretical-review/tr-7-4.pdf . Daniel fez a gentileza de traduzir uma entrevista rara desse período: https://lavrapalavra.com/2017/07/17/a-crise-do-marxismo/
[v] https://www.academia.edu/31387834/Quando_as_ruas_queimam_manifesto_pela_emerg%C3%AAncia
[vii] Um dos mais importantes economistas marxistas contemporâneos, Michael Roberts, chega a dizer: “A grande razão porque o governo Dilma caiu foi a economia. Após o colapso dos preços das commodities a partir de 2011, a economia do Brasil mergulhou numa recessão retardada mas profunda”. http://resistir.info/brasil/roberts_20mai17.html
[viii] Sobre o trabalho de Marx, fala Balibar, em seu Cinco estudos do materialismo histórico, 1975, p. 245: “Pode dizer-se que não só institui uma teoria para o proletariado, que lhe explica a sua situação histórica e lhe dá as armas de que ele necessita para a transformar, como institui uma teoria do proletariado, que, pela primeira vez na história, permite ao proletariado (e geralmente aos trabalhadores explorados) existir também, como classe autônoma, no terreno da teoria”.
[ix] http://outraspalavras.net/posts/david-harvey-leia-piketty-mas-nao-se-esqueca-de-marx/
[x] A esquerda que não teme dizer seu nome, p. 80.
[xi] Esboços de uma teoria da transição “safatliana”: transformação política do Estado como suporte de sujeitos emergentes e processos decisórios externos a ele-> criação de uma sociedade “descontrolada” -> “tender a uma forte regulação dos processos econômicos até a abolição da sociedade do trabalho [...] libertar a atividade humana da sua colonização pelas formas do trabalho produtor de valor” (p. 130). Essa nova de organização da produção da vida material “só pode emergir quando a deliberação política voltar às mãos da imanência da soberania popular” (p. 131). Poderíamos resumir da seguinte forma, como fez Rosa com Bernstein (muito querido por Piketty!): “os sindicatos, as reformas sociais e, acrescenta Bernstein, a democratização política do Estado, são os meios para realizar progressivamente o socialismo.”? Voltaremos a Rosa ainda nesse texto.
Para contribuir com o debate, notemos também uma passagem interessante de Estado e Revolução sobre a destruição do aparato estatal vigente: “Elegibilidade absoluta, imovibilidade, em qualquer tempo, de todos os empregos sem exceção, redução dos vencimentos ao nível do salário operário habitual – essas medidas democráticas, simples e evidentes por si mesmas, solidarizando os interesses dos operários e da maioria dos camponeses, servem, ao mesmo tempo, de ponte entre o capitalismo e o socialismo. Essas medidas reformistas são de ordem puramente governamental e política, e, naturalmente, não atingem todo o seu significado e todo o seu alcance senão com a “expropriação dos expropriadores” preparada ou realizada, isto é, com a socialização da propriedade privada capitalista dos meios de produção”.
[xii] https://www.theguardian.com/world/2015/jun/29/greeks-dont-give-in-to-eu-ultimatum. Safatle, no início de 2015, na Folha, dizia deslumbrado: “Syriza será a primeira expressão, na forma de um governo, de um radical sentimento de recusa a este capitalismo de espoliação e acumulação rentista. É fruto de um movimento de indignação que apareceu a partir de 2009, que passou pela Primavera Árabe e pelo Occupy. Trata-se de um partido que não tem nenhuma semelhança com os partidos tradicionais de esquerda. Não é por acaso que o Partido Comunista Grego os odeia”. Houve aqui no Brasil um partido de esquerda subdividido em várias correntes, fruto dos novíssimos movimentos fora dos enquadramentos tradicionais, que disputava o espaço dos partidos comunistas, e também se tornou um exímio gestor capitalista. Para ver um dos posicionamentos do KKE, acesse: https://www.novacultura.info/single-post/2015/08/04/O-que-faria-o-KKE-no-lugar-do-Syriza
[xiii] https://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1900/ref_rev/index.htm
[xiv] O pressuposto aqui não é a figura de organização como “educador”, coisa que Safatle critica acertadamente. Mas como sistematizador e fomentador das posições político-ideológicas proletárias, diariamente combatidas e soterradas (inclusive pela “esquerda”).
[xv] https://blogdaboitempo.com.br/2014/05/30/zizek-a-utopia-de-piketty/
[xvi] O CEII recupera um achado dos Manuscritos que é sempre bom lembrar: “Quando os artesãos comunistas se unem, vale para eles, antes de mais nada, como finalidade a doutrina, propaganda, etc. Mas ao mesmo tempo eles se apropriam, dessa maneira, de uma nova carência, a carência de sociedade, e o que aparece como meio, tornou-se fim. Este movimento prático pode-se intuir nos seus mais brilhantes resultados quando se vê operários socialistas franceses reunidos. Nessas circunstâncias, fumar, beber, comer, etc. não existem mais como meios de união ou como meios que unem. A companhia, a associação, o entretenimento, que novamente têm a sociedade como fim, basta a eles; a fraternidade dos homens não é nenhuma frase, mas sim verdade para eles, e a nobreza da humanidade nos ilumina a partir dessas figuras endurecidas pelo trabalho”. https://lavrapalavra.com/2016/05/20/o-fim-da-organizacao/
[xvii] “É, pois, de se perguntar: por que os operários entram em greve, dada a evidente ineficácia de sua ação? Simplesmente porque devem protestar contra a redução do salário e mesmo contra a necessidade de uma tal redução; devem expressar claramente que, como homens, não podem adaptar-se às circunstâncias, mas, ao contrário, as circunstâncias devem adaptar-se a eles, os homens – porque sua omissão equivaleria à aceitação dessas condições de vida, ao reconhecimento do direito de a burguesia explorá-los durante os períodos de prosperidade e deixá-los morrer de fome nos períodos desfavoráveis” Engels (A situação da classe trabalhadora na Inglaterra).
“O proletariado – que não quer se ver tratado como canalha – necessita de sua valentia, de seu sentimento de dignidade, de seu orgulho e de seu sentido de independência mais do que do pão.” Marx (O comunismo de Rheinischer Beobachter).
[xviii] Sobre teoria relacional das classes sociais a partir das contribuições de Balibar, ver: https://www.ifch.unicamp.br/formulario_cemarx/selecao/2015/trabalhos2015/Pedro%20cazes%2010454.pdf