Foi num dia qualquer de um abril antigo e quase inexistente dos anos sessenta (ou seria setenta?), se me lembro direitinho (não querendo lembrar) e ainda me dói o saber inteiro de detalhes, quando chegamos à noitinha em casa, eu e a minha patroa, Sauma, grávida do primeiro filho - iria se chamar, se fosse varão, Vladimir, se fosse mulher, minha esposa escolheu Ética - vindo do Supermercado Andorinha do amigão Sérgio Varoulf, lá onde fomos fazer a feira do mês. Era um sábado, se me lembro bem a data. Mas todo o resto me vem dolorosamente à lembrança sacrificial como se fosse ainda 'já-hoje' mesmo. Impossível não recordar. Não quero me decompor, não posso, mas em algum lugar-prurido lá no mais íntimo neural de mim, isso tudo que vou contar me dói como se um moinho de vento fantasma, invisível, e assim me corrói a alma-navalha, feito um pântano que convive paralelo ao meu Eu de Mim, na moral do fracasso, numa trágica condição incerta, num não-haver vulgar, como se tudo não passasse mesmo de algo que só me aconteceu num incrível mundo-sombra, quase reflexo de uma vida ordinária e real... não no mundo das ideias. Talvez até no campo de incertezas, mas não de memórias inventadas, pois eu carrego essa sofrência como se num cabide de pregos com câncer.
Mal abrimos a porta oval de vidro bisotê da sala e o vimos encostado na prateleira de mogno selvagem, mexendo na biblioteca, caçando o que delatar entre os meus livros caros, talvez campeando Marx, Engels, Wallom, entre Yeats, Ezra, Graciliano, Rilke, Garcia Lorca, Neruda ou Borges. Já sabíamos que um dia aquilo iria acontecer; que um dia alguém certamente viria, mas nunca contávamos que fôssemos os mal escolhidos da hora pela escória do poder, mas, finalmente e de forma dolorosa nos sentimos atingidos em cheio ao nos inteirarmos daquilo tudo assim, sem mais nem menos. Era chegado o nosso tempo de purgação. Quase nem acreditamos no curtume, assim num primeiro instante, na quebra do psicológico do momento número zero, inicial.
A porta não tinha sido violada, não havia sinal de arrombamento, MAS ELE ESTAVA ALI, alto, claro, quase albino, aura pedrês, no meio escuro do ambiente sombrio, pois a lâmpada do abajur lilás era fraquinha. O tipo tinha cabelo escovinha, era bem seguro de si apesar de tudo que como intruso representava, parecendo ostensivamente armado até os dentes. Mal nos lançou um mero soslaio de olhar, com o rabo do olho feito picego de ocasião. Tive um misto de nojo e um andaime de coragem-calço na parede da contemplação estagnada.
Sauma furiosa olhou-o com tácita repreensão, umedeceu os olhos verdes, fiz um sinal quase que imperceptível tipo “chiu, já que está aí, fazer o quê, chegamos, ainda somos os donos...” – mas, confesso, Ele deveria saber mais de nós do que nós mesmos sabíamos. Sauma ainda pensou em acionar a polícia (Ele era a “polícia”), confessou-me isso vários anos depois, antes de ficar louca e morrer em seguida, sem atinar com o estranho em sua intimidade, lá na sua agonia de mulher sensível e topetuda. Na ocasião, abrupta catou a cesta de flores e, fintando a mesa e a cadeira de imbuia com o lado de sua barriga de seis meses, foi pra cozinha, e eu fui guardar a caixa de cerveja importada do Chile na geladeira e a pizza de atum no congelador.
Eu era judeu e comunista, ateu até as tripas. Sauma era médium (mãe de santo por assim dizer sem querer) que, todo primeiro sábado do mês, querendo ou não, mas sem falhar, recebia um santo num terreiro marginal de uma periferia da Estância Boêmia de Itararé. Sabíamos que a partir daquele dia teríamos de tê-lo ali como se uma escrivaninha, um tijolo, um vaso de cacto, e, na verdade, nem devíamos dar por ele inteiro e raso em trânsito de rotina (fingindo que ele não existia), e, então, procurando esquecer aquela nova cruz, fui catar um livro de poemas de Drummond e uma dose de uísque Cavalo Branco, porque os tempos eram tenebrosos, a noite maldita descera sobre nós, eu tinha sido finalmente fichado em regime de desconfiança, e uma canalha militar da caterva de imbecis no poder com apoio de agiotas internacionais, empresários corruptos e ladrões, mais uma nefasta ala reacionária da santa igreja católica mandavam no país em regime de exceção, com medo dos vermelhos, de que o país se cubanizasse.
(Com o tempo, pra “Ele”, o nosso codinome em conversas reservadas, ou em alto e bom tom quando nos era possível quebrar o gelo e nos sentirmos em nós em casa, inicialmente era Lombriga porque estava no meio da merda toda. Depois ficou como Sequela porque era resultado de um golpe que derrubara o amigo pessoal de minha família gaúcha que se radicara ali em Itararé, o deposto presidente Jango).
Pois começou nosso calvário que durou um tempão.
De início sentimos muito, com um traste em nosso canto, um estranho no nosso ninho de felicidade, quando o víamos como um rato. Ele nunca nos olhava direto nos olhos, tampouco nunca falou uma só palavra, dormia no sofá da sala (uma noite, preocupado, algo piedosamente piegas, levei-lhe um antigo corta-febre encardido que antes servira a um cachorro que morrera de verminose). Comia das coisas triviais da geladeira, mexia em fotos de álbuns familiares, nunca nos deixou só um só minuto, quando saíamos ele ficava à vontade, quando voltávamos ele estava lá campeando alguma coisa – armas, drogas, aparelhos? E, o pior era de madrugada, quando eu ou Sauma necessitávamos ir ao banheiro, e lá estava ele. Então ele se apressava, tínhamos que esperar. Depois que ele saía meio incomodado e constrangido, tinha o cheiro ruim e estranho para nós da merda estranha que obrou. Propositadamente dávamos outras várias descargas (o cheiro diferente empesteava o ambiente úmido), púnhamos Pinho Sol, jogávamos perfume francês, acendíamos, incenso indiano. Então, bem ou mal, fazíamos o que tinha que fazer de inevitável necessidade fisiológica.
Quando estávamos na intimidade do quarto enorme do chalé, ele não entrava. Mas também em outras ocasiões frequentava ali, deixando seu rastro, suas porções, ora resto de bolacha ou amendoim, ora cinzas e cheiros, quando não resíduos de coisas químicas que nunca soubemos o que era ou para que serviam, o uso disso no ambiente. Quando tocava o telefone, o desgraçado sabia certinho se era pra ele ou não, e prontamente atendia. Então falava em inglês macarrônico, curto e grosso. Muitas vezes vi-o lendo um gibi do Tio Patinhas ou do Tarzan, outra vez acho que o peguei chorando ao ouvir uma música romântica do Trio Los Panchos que a Rádio Luar de Itararé tocava, e, com o chulé, o cheiro do cigarro, o suor, tudo impregnando nosso lar doce lar, aquele estranho começou a fazer parte de nosso derredor, de nossas vidas, como um baú de ócio, um banco de pinho ruim, um vira-latas sarnento e bronco com o qual tínhamos que nos acostumar, ou iríamos ficar loucos, quem sabe matá-lo (mas viria outro traste e poderia ser pior, ser truculento, falar muito, atentar contra nós, porque esse era o estilo da corja toda, treinada nos currais olivas de áreas clandestinas dos porcos marines da América Rica.).
Foi uma gestação difícil para Sauma. Nem posso acreditar direito.
Cuidar de casa, dar passes, ler mãos, e ainda o lazarento para torrar o saco. No começo foi um rebuliço danado. Mas a gente se acostuma até com o dianho em casa. É da natureza humana.
O peste lavava a roupa quando a gente saía, passava, tinha uns pares de camisas, e até a Sauma viu a maleta dele, quando rebuscou uma coisa qualquer que deu falta, e desconfiou do tipo casca grossa, sem seca. Mas o Sequela não era ladrão, pelo menos de coisas táteis.
Punha a maleta de pertences pessoais embaixo do sofá em que dormia. De vez em quando recebia uns pacotes, por portador militar, normalmente um reco. Tinha um baita crucifixo de ouro numa gargantilha sob o pescoço. Acredite se quiser.
Bem ou mal tínhamos que nos habituar com ele.
Nos primeiros dias ficamos incomodados, pensando nele quando estávamos a caminho de casa. Mas ele se virava. Acho que sempre tentou fazer seu serviço, sem nos incomodar mais que o necessário e obrigatório. Procurava fingir que não estava ali, acho. Como, a bem dizer, tínhamos que fazer o jogo sujo dele, também não o bondiávamos de manhã, mas deixávamos comida para que ele catasse depois, como um vira-latas sarnento. Um dia peguei-o fazendo um café. Tinha sido uma madrugada de chuva, caira um toró. Quase que me ofereceu um gole, mas conteve, triste e curto, o apegado afeiçôo de ocasião. Querendo um gole, no entanto, relutei. O que sobrou do que ele fez, joguei na pia de mármore preto. Acho que ele, entendendo do riscado, compreendeu que não queríamos qualquer tipo de laço com ele, salvo o brutamontes que ele por si só já era, e já nos bastava circulando pela casa, pelo quintal, pelo bosque, pelos canteiros, invadindo nossa privacidade e, de certa forma - como se fôssemos um risco para o calhorda regime de exceção - pudesse assim nos vigiar como se fôssemos cheios de lepra, perigosos só por pensar, por liderar, por defender os fracos e oprimidos, os descamisados.
Eu conhecera Sauma na Universidade Sul Paulista de Itararé, quando para ali fora fazer uma palestra sobre Ética e Arte como Libertação. Foi uma espécie de amor à primeira vista, mal-e-mal nos vimos amarrados um ao outro, e ela engravidou.
Tínhamos uma casa no cacau quebrado da Rua XV de Novembro, área central da cidade. Uma casa com ampla sala em forma de L, depois uma copa média e uma cozinha enorme que era anexa a dois quartos, um ateliê de costura dela, e um estúdio de minhas artes e criações. Havia o quintal nos fundos. Depois da área da cozinha, uma varanda. Em seguida, beirando a casa, uma alvenaria com tanque e churrasqueira, depois um pequeno bosque, na sequência alguns metros quadrados de canteiros de azaleias e, ao final, um canto comum de terra aonde criávamos frangos para abate e algumas galinhas poedeiras punham ovos para consumo próprio. Era quase uma chácara ali perto da Rua Primeiro de Maio, parte alta da cidade.
Mal nós vínhamos de quatro meses de paixão, romance e vida em comum, e a Sequela do golpe militar que já ia para vários anos nos pegou de supetão.
Eu tinha ido de São Paulo para Itararé, porque tinha lançado um livro chamado A Arte Brasileira e as Legalidades da História, trabalho como tese de mestrado da USP, e lutava com grupos de amigos judeus da Europa, para o fim de ditaduras emergentes em países latinos. Parentes meus em Itararé propiciaram a palestra. Sauma era professora de educação artística, trabalhando na prefeitura, e quando conseguimos, com amizades antigas dos pais dela, tornou-se coordenadora pedagógica numa escola da periferia carente da cidade.
Juntamos nossos trapos, íamos de vento em popa em nosso relacionamento, quando tudo isso começou a nos acontecer, e que eu relato aqui para passar adiante a nossa sofrência, mais o país enlutado que era por causa dos ratos verdes de coturnos no poder ilegal, e as pessoas limpas e lúcidas que queriam de volta a democracia, a legalidade, o fim do regime de exceção incompetente, corrupto, violento e senil, sofrendo violências.
Os pais de Sauma eram uma mistura de negros, portugueses e italianos, e ela, em nome da escola, certa feita, marxista convicta e ao mesmo tempo correspondente de um jornal ecológico de Piracicaba, foi fazer um vídeo sobre folclore afro num terreiro de candomblé, lados da Vila São Vicente, cuja médium-chefe era a Dona Santa, mãe do famoso boêmio Romero. Ali, ela, ao filmar uma iniciação fora atingida por uma espécie de “santo” que lhe baixara ao ritmo frenético dos tambores, e, por incrível que possa parecer o inexplicável, Sauma recebeu aquela entidade feito um “cavalo” caboclo, passou mensagens, deu passes ligada com coisas que não compreendia. Quando voltou a si estava toda molhada, machucada, dolorida, e tinha as mulheres do meio a lhe darem vivas e louvores pelo modo que fora escolhida espiritualmente, se é que explico bem assim, essas coisas que não compreendia inteiro, na verdade nem engolia direito.
Eu, ateu, não confiava muito naquilo, sendo marxista não poderia compreender muito bem, mas, vendo o filme de tudo, aceitei, vá lá, passei a respeitar o que Sauma entendeu como duto espiritual, passei a conviver com aquilo dela, de uma hora para outra ter que ir num lugar daqueles, ser útil, prestativa, como dizia ela, enquanto eu ficava em casa a produzir meus textos, ou, quando ela, entre assustada e entregue, dizia ser outra pessoa ao meu lado, feliz, também por estar para ser mãe, e, passando a acreditar numa entidade superior. Levou na boa o papel que fazia de escolhida para a mais nova “mãe de santo” no terreiro de Dona Santa Macumbeira.
Éramos feitos de paradoxos. Sauma, uma militante convicta da esquerda, de uma hora pra outra grávida e recebendo mensagens de macumba. Eu, um comunista que largara a grande cidade por Itararé onde tinha familiares distantes, passara a lecionar filosofia nas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras da cidade, e ali agora com o estrupício em casa. Onde já se viu?
Aliás, toda cidade sabia daquele tropeço, amigos em comum nos faziam indiscretas questões. Solicitamos que os que tinham atividades com aparelhos secretos se afastassem de nós para não serem sequestrados por facções radicais dos podres poderes. Confesso, só não fui posto na rua da amargura porque minha bolsa era conveniada com a USP e com uma universidade britânica, o que nos dava certa guarida e esperança de vida e, talvez, razão de defesa em eventual caso trágico.
Já não ligávamos do aparelho telefônico de casa, mas de um orelhão na rua, que ficava perto da casa do Mestre Ataliba Acordeonista. O tipo que entrara em nossa casa revistava nossas gavetas, fazia relatórios sobre a nossa intimidade – sei lá para que queriam isso – tinha um codinome estratégico de Garrafa Azul, e, várias vezes vi-o usando uma máquina portátil de escrever, relatoriando sobre nós, se é que ele tinha muito o que dizer, ou, pelo menos fazia seu serviço sujo, já que éramos limpos, não tínhamos um cheque sem fundo, muito menos usávamos qualquer tipo de droga, a não ser a bendita cerveja ou no máximo os fiados pendurados no Bar do Tepa.
Nas primeiras horas que o tivemos ali, era quase que repugnante. Sauma chegou a passar mal, teve que tomar algum remédio pra dormir. Era muito triste ir se deitar, fazer amor em silêncio e ainda saber que, na sala de nosso cantinho, um zé ninguém, um borra-botas, um nada, um exótico emboaba em nosso terreiro estava a ser nosso implacável cão de guarda.
Já não éramos mais um casal, o rebento viria em meses, e ainda tínhamos, pensei, de uma forma ou de outra, de contar com aquele membro estranho no corpo de nossa convivência familiar.
Nos primeiros dias tínhamos temor, fechávamos a cara, passando por ele ora a caminho da garagem, ora dormindo no sofá, ora lendo papelada minha de ensaios, debates, fortuna crítica, entrevistas ou mesmo simples contos e poemas. Depois, passado o impacto psicológico do não aceitável num primeiro momento, e a vergonha do inevitável em tempos tenebrosos, procurávamos nos mover de maneira a ter aquele Lombriga ali conosco, e tentar, de uma maneira possível, qualquer que fosse ela, evitar que ele nos agredisse mais do que nos agredia estando no recesso de nosso lar, dando as latidas ao telefone – passando informações em códigos? – lambendo as crias do meio que vinham trazer informações, talvez de movimentos de guerrilheiros no Vale do Ribeira (havia boatos), feito um cachorro louco a cuidar de um casal brasileirinho que só queria ser feliz, apesar do embuste de um golpe que era promovido pela mídia como revolução, e da corrupção organizada sustentando todos os movimentos de calhordas e canalhas, no hediondo sistema do canhestro status quo (do estado de sítio) que reinava no país entrevado, com medo do comunismo, e atendendo a uma política intervencionista dos Estados Unidos, o que nos repugnava.
Tínhamos consciência do mal que o país padecia, mas não éramos terroristas, nem radicais, apesar de uma resolução da ONU até permitir que o povo se armasse contra ditadores que tomassem o poder à força, o que era o caso.
Mas ali estávamos nós, reféns de um tipo que representava, grosso modo, toda a parafernália do sistema. O nojento tinha quase um metro e noventa (pés enormes fora do sofá no qual dormia feito um capacho), era uma mala sem alça, algo obeso, cabelo escovinha, e não era da região, segundo me disseram alguns amigos curiosos com aquilo tudo. Devia ser de outro estado, disse um primo de minha mulher que fazia o Tiro de Guerra e era amigo do Sargento mais doce.
Aquele ser em casa, numa Itararé dos anos 60 (ou setenta?) em que muitas cabeças mudavam, muitas coisas aconteciam (e tantas que nem sabíamos direito), era quase um tabu na sociedade, nas conversas no Bar do Tepa, em saunas e pescarias. Para umas pessoas boas, estávamos passando uma quarentena ruim, como se o próprio dianho em casa.
Para as pessoas maldosas, éramos vistos como um suspeito moderno casal e fora isso os pontos de interrogação nos olhos ganhavam reticências...
Mas, para uma caterva que tinha medo de marxista como o diabo da cruz, éramos vermelhos, comunistas, e nos viam com desconfiança, apesar da família da Sauma ter um certo respeito – o que ajudava um pouquinho – e eu ser, além de bom de dialética, bom de briga, ter fama de turrão, e assim, com as beatas ortodoxas nos odiando e nos querendo ver pelas costas – e amando o lazarento que tínhamos em casa como se um vigiador de nossos rompantes, de nossos levantes contra o sistema, imaginem só – íamos levando a vidinha, tentando, com o traste do Lombriga, não invalidar nossa felicidade, não apagar nosso amor, não matar a consciência cívica que tínhamos das coisas, ou a convivência entre nós dois, o casal, mais o herdeiro que certamente viria. Eu, confesso, já nem bem conspirava direito contra a ditadura, fui perdendo laços fora de Itararé, do estado e do país, não apenas para não causar horror aos que me queriam bem ou mesmo até entrar numa fria, ser levado numa noite enferma, correr grave risco de ser torturado e suicidado como geralmente acontecia. E assim, de alguma forma manietado, de alguma forma limitado, eu punha-me a escrever ensaios, opiniões, artigos, mas nunca mandava ao jornal Tribuna de Itararé, ou a revistas de fora do país, porque eu tinha-me como se num bólido de existência, o meu lar, o meu trabalho, a minha paixão e o meu descendente a caminho.
O tipo em casa, o bode, o leviano, o estranho, aquilo tudo parecia ser só um maldito pesadelo, e eu sentia, sem nem direito saber exatamente porque (e Sauma tinha tido visões do inferno com ele em nosso meio), que um dia, o maldito como viera, adentrara, fichara-nos em desconfiança, um bendito dia também, sem encontrar nada, sem fazer atrocidades, sem nos delatar por qualquer invencionice que fosse ao Comando de Caça aos Comunistas, iria embora sem mais nem menos, iria dar no pira, fuçar noutra freguesia. Que fosse peidar nágua mesmo, e ficaríamos livres dele no presencial, no táctil, apesar de seu cheiro estranho, seu incômodo, seus restos, sua presença que, de uma forma ou de outra, direta ou indiretamente, marcara para sempre nossas vidas.
Enquanto Sauma buscava ser feliz de alguma maneira e era a primavera, ele era a tempestade. Enquanto eu mudara radicalmente de vida para ter um lar doce lar, ele era um pedaço de noite, a mesma que se abatera sobre o país, e que vinha ali, dentro de casa, nos vestir de um luto intraduzível, de uma dor inenarrável, de uma tristeza latina, de uma melancolia sem etiqueta ou medida.
Nunca eu li tanto como nessa época. Nunca eu escrevi tanto. Normalmente os poemas, como se saindo pelo ladrão, como protesto à mordaça do poder, como um trabalho silente de formiguinha, eu escrevia para me limpar, para não ficar louco, lavando-me daquela impureza que ele no meio de nós tetricamente significava. Que merda!
Eu intuía mais do que compreendia, que ele certamente iria tentar de alguma maneira ler meus poemas, mas eu não tinha medo de me revelar triste, então, talvez até por isso também, já que não podia matá-lo com um tiro, cacos de vidros no arroz ou cortar-lhe a jugular, de alguma forma eu o matava dentro de mim, e os pedacinhos de sua rudeza iam nos meus poemas, alguns dos quais, com esquisito novo medo, eu picava em pedacinhos e jogava na privada, dando descarga, com medo de que ele detectasse ali um perigo para a sociedade, a classe dominante, o estrume que estava no poder e se gabava ainda, para iludir os incautos que, em nome de Deus (que Deus?), da Família (que Família?) e da Pátria (que Pátria?), era mais bucha de canhão, massa de manobra, para servir a interesses escusos, do que um tipo verdadeiramente cidadão em terra de demônios de terno, gravata, farda, túnica e toga.
Eu era o David e o Sequela era o Golias?
Lembro-me que, da primeira vez que ele chegou, foi um pânico contido, como se estivéssemos no pântano de nossas esperanças perdidas. Dormir aquela noite então, foi um desboque. Mais pra frente compreendíamos o tipo como um morto dentro de casa, um zumbi inoportuno e inevitável. Mas no início foi difícil lidar com aquilo, e ainda segurar a cabeça carente de Sauma, que com sua gravidez e descoberta de ser espírita ou coisa que o valha, andava com os nervos em frangalhos, mesmo oscilando e, aqui e ali, tingida de uma alumbrada felicidade pela gestação.
Sim, ele dava nos nervos.
Imagine você, sem mais nem menos, em seu cantinho adorado, de uma hora pra outra saber que está um estranho ali em sua casa, como se a ruptura do legal, do ético, do normal, do crível, e, sem aviso, violação explícita ou motivo, colocassem um bicho estranho em meio a suas coisas, seus familiares, suas artes, livros, móveis, coleções. Era mesmo algo surreal, repugnante, quase kafkiano se avaliarmos bem.
Pior: tínhamos que engolir eventual revolta a tamanho disparate, e tentar conviver com aquilo. Não contávamos a ninguém a nossa dor íntima, o nosso desprezo, a nossa desfaçatez. Mas os amigos sensíveis sentiam e viam em nossos olhos a amargura traduzida, purgando, numa decantação silente. O próprio tipo, talvez por estar repetindo o serviço de rotina, parecia compreender alguma coisa do nosso lado, na nossa maneira cainha de vê-lo, e procurava aparecer pouco, se envolver o mais estritamente necessário possível, e assim íamos, maleixos, levando a nossa cruz, a nossa encruzilhada, quando topamos com ele, em desfavor de nossa intima sobrevivência possível.
Sabíamos que o amigo Silvio Machado estava sendo caçado. Ouvimos dizer que o Tunico Bittencourt tinha sido intimado a depor. Pessoas desapareciam na pirambeira do lado mais podre da ditadura, e nós ali, sob alça de mira dos dólmãs-de-tala, tínhamos que ser mais inteligentes que os serviços de contraespionagem. E seríamos. Sauma iria pagar caro por isso. Eu sobrevi e aqui, forçando as paredes da memória (de vez em quando choro escondido, tenho remorsos, tenho que tomar comprimidos para dormir a morte eterna– acho que depois daquilo teria que tomar remédios para EXISTIR o resto de minha vida), e, de um modo cainho ou de outro, vou contando a minha sina, em retalhos de ressentimentos.
Pior eram as pessoas da família, que não sabiam de nada porque eram puras ou a nossa situação simplesmente incompreensível, e vinham todos nos visitar alvissareiros, perguntavam de fofocas e fuxicos, contavam casos do arco da velha, e então, notando o que entendiam como se fosse uma interna espécie de segurança em casa, iam garbosas cumprimentar, se apresentar, querendo saber se era parente meu (diziam que se parecia muito), e o coitado do peste – nessas horas eu me divertia – ficava perdido, não dizia coisa com coisa, parecia um carimbador maluco, ora explicando o inexplicável (quem iria acreditar?), ora dizendo-se um mascate, caixeiro-viajante ou mero parente de longe a pedir a guarida de uma ocasional estadia de percurso, quando não, e isso era hilário, fingia-se de surdo-mudo, e era bem tratado (a família de Sauma é muito carinhosa e festeira), e ainda assim tentavam falar com ele por intermédio de gestos, bilhetes, quando não, prestativos serviam churrasco e cerveja, então ele não tinha como recusar tanto afeto de um lado simples do povão (Itararé tem dessas coisas) – até se entrosava bem - finalmente, de alguma forma, lobo em ambiente de ovelhas negras, fazendo parte da família, quando, às vezes, bêbado ou não, se emocionava, batucava uma bossa-nova, e tem amigo que, pensando bem, lembra de tê-lo visto menos brucutu na insustentável leveza de ser um normal, um humano, uma pessoa entre a gente simples do povo em casa de suspeito incondicional.
Eram paradoxos de extremos. Minha esposa grávida e recebendo santo, eu comunista fazendo poemas de esperança, e, no contexto, aquele segmento de noite atroz que habitava o nosso derredor, e que teríamos que aturar – para sobreviver – no inconsciente, no ego, na epiderme, talvez até no genético por códigos recorrentes, levando a dor por décadas seguintes. Era terrível.
Como Sauma tornara-se popular na carente periferia cor-de-rosa de Itararé, vinham pessoas pedir adjutório, outros queriam grana para um remédio, quando não dinheiro pro gás que acabara, ou a necessária viagem para tratamento médico em Sorocaba. Quando ela estava, era naturalmente meiga e solícita (foi isso o que mais amei nela, quando a conheci bem), quando era eu, meio fechado, polido ao extremo, tentava ser doce, serviçal, caridoso, pensando até, confesso, que se o Vigia sondasse melhor nossa rotina cotidiana de cidadãos conscientes, mas que amavam a paz, veria que éramos adeptos do mote Amor & Flor, pela não violência, e se por métodos pouco ortodoxos, aqui e ali, contestávamos o regime, era porque tínhamos noção das coisas, e do mal que uma potência fazia ao país, com medo do comunismo, coisa que jamais o país poderia ser, já que estava ainda na fase pré-mercantilista e assim seria impossível.
Particularmente eu sentia mesmo que, um dia sim, sem mais nem menos, ele iria embora, e até talvez deixasse um pedido formal de desculpas, talvez até uns trocos pelo uso da água, luz, sofá ou mesmo do rádio que deixava ligado na estação de Itararé, em que ouvia a noite inteira clássicos da Jovem Guarda ou boleros paraguaios.
Mas Sauma nesses tempos finais de gestação mudou de prisma, revelou-se totalmente insegura, frágil. Talvez a gravidez, talvez os trabalhos no centro, o certo é que ela de uma hora pra outra começou a ser politicamente incorreta, tratando o estranho com um certo desdém explícito, não apenas quando jogou restos de um gostoso guisado de carneiro no lixo para que ele não jantasse àquela hora da madrugada, ou quando pegou suas coisas pessoais e atirou no quintal, para poder lavar a sala, ou mesmo quando colocou cadeado no telefone e o traste reagiu, claro. Era a missão federal do filho-da-puta.
Dois dias e ela com cólicas, ânsia de vômito e dor de cabeça, emburrada, esperando o devir, eu sondando eventual reação dele, quanto bateram em casa – ele estava no banheiro (propositalmente?) – apontou-se-nos um sujeito que se disse da companhia de eletricidade, e, sem mais nem menos, sem pedir licença ou trazer ordem de serviço superior, com um alicate forte e especial cortou o cadeado, disse um seco até logo e se foi me deixando com a cara de tacho no chão com mais aquela intromissão sem cabimento, causando um pandareco em casa. Porque Sauma teve um siricotico de nervosa, tivemos que chamar o Dr. Célio Santiago da Santa Casa de Misericórdia, e que de presto diagnosticou que ela, naquele lugar, por causa “daquela” situação, poderia perder a criança, abortar, e até corria risco de vida com tanto incômodo que sentia com o maldito em casa. Fiquei de tromba.
Um dia até sondei de falar com ele. Exigir que se portasse, cobrar respeito, ou que se apresentasse de forma oficial, dissesse a quem teria que dar satisfação, quem nos teria denunciado, como estava a nossa ficha da polícia política do DOPS, o que ele queria saber – eu poderia contar palha, enrolá-lo – e até preparei da Sauma viajar com uma prima para Itapeva, fazer uns exames de rotina por lá. Foi quando comprei pizza, vinho bom, e, com dois copos montei o teatro operacional para ter uma conversinha feito jogo de cena ao pé do ouvido com ele, o traste, no vai da valsa (um long-play de Joan Baez na vitrola), mas o filho da puta veio falso solícito, ouviu direitinho minha toleima, comeu do bom e do melhor, arrotou atum (acho que até soltou um peidinho daqueles fuzilos rápidos e discretos, o caipora), mas não disse sim ou não, bom ou ruim, tá certo ou errado, simplesmente fartou-se a valer (senti-me logrado), mal eu conheci a sua voz inteira e impoluta, depois foi fazer a barba (usou meu sabonete), tomou demorado banho cantarolando uma canção do Roberto Carlos (Quero Que Vá Tudo Pro Inferno - o disgramado sentia-se bem em casa), limpou-se com uma toalha minha (usou e abusou), depois, lazarento, mal acenou um boa-noite (vestia um pijama de bolinha verde), e foi se apinchar meio bêbado em seu sofá que era nosso, em seu quarto que era a minha sala, em sua casa que era meu lugar de dentro. Eu deveria é tê-lo matado sem pestanejar naquela hora. Era demais. Será o impossível? Como me arrependi de não ter feito isso. Passei por trouxa, coió. Montei num porco.
Uma colega de infância da Sauma, que vinha tendo um caso com o Sargento do Tiro de Guerra, lá onde um sobrinho dela servia por um ano, arranjou-se de subornar com régio aparato afetivo também, o Tenente Gabardo. Levou-o no bico, fingiu-se apaixonada, exigiu prova de amor, sonho de valsa, deu camisa-volta-ao-mundo, sob o belo luar de Itararé engabelou o tipo meio janota e boçal, depois pediu um favor, se pudesse, por gentileza, que ligasse pra Brasília, desse uma boa impressão de Itararé, nossa Santa Terrinha, e também, claro, do Casal que éramos, da boa família que fazíamos, tentando, pedindo – se preciso até arrumaria um dinheirinho, pois a ditadura militar era extremamente corrupta – que tirassem o investigador safado do caso que devíamos ser, que colocassem fora do caso o agente de dentro de casa, pois estávamos em paz, éramos bons, não daríamos perigo para o sistema ou suas hienas olivas no poder. Foi quase um delírio. Por parte do sargentozinho babaquara, funcionou, pois o saco de merda estava crente numa paixão, era porcaria de meio, fez a sua parte certinho, afinal, o que teria a perder, e também queria dar mais algumas traçadas na quarentona balzaquiana que o dizia adorar... O tenente também, que não era boa bisca nem nada, foi na fiúza e fez seu papel de interesseiro e beberrão, em curtume íntimo.
Foi a primeira vez que o Garrafa Azul (o Lombriga, o Sequela) ou que nome o vilão tenha, “ratiou” de se comunicar conosco. Mas não de conversa fiada. Guardo até hoje o memorando do infeliz.
-Dizia que ele estava ali para fazer o seu serviço para o bem da Pátria Amada, e iria fazer de qualquer jeito. Que quanto mais o aceitássemos, mais o deixaríamos trabalhar em paz, e ele exerceria da melhor maneira a sua difícil missão de risco. Que se tentássemos tirá-lo dali, ele iria agir de forma mais severa, que iríamos ver só, que ele não estava brincando e nem era um mané arigó, que deveríamos respeitá-lo, ter cuidado com ele, e que não adiantaria eu mexer os pauzinhos, porque o trabalho dele não era afeto aos comandos de Brasília, que não era de fritar bolinhos, coisa e tal. Onde já se viu isso?
Ficou o dito pelo não dito. Não entendi patavina, e ele fechou a cara por uns dias, esperando nossa reação. Ficou emburrado em toleima de acinte.
Sauma se desesperou. Eu fiquei na minha, tinha que segurar a barra, não fiz nenhum movimento perigoso ou de desfeita, e só comecei a sondar melhor o caipora.
Isso, no começo.
Não contavam com a minha impertinência, quando morreu um tio querido de Sauma, o Cemitério da Saudade estava lotado. Eu e a minha esposa grávida comovidos e chocados (foi um acidente com um caminhão de toras de pinho, numa rodovia do Paraná), quando vimos o filho-da-puta do nosso cão de guarda ali em nossa intimidade mais dor, ficamos revoltados. Sauma caiu em prantos, num misto de dor e de horror, eu parti pra cima do sujeito que, num lance rápido, chispou de perto, todos os parentes do morto olhando, mas eu alcancei o tipo perto da Santa Casa, e, quando tentei agarrá-lo (acho que pensei em dar uma sova no lazarento), fui derrubado por um golpe sei lá se de judô ou caratê, caí prostrado com o braço direito quebrado, logo ele chamou um taxi e saiu depressinha, enquanto Sauma tinha desmaiado e amigos em comum vieram me socorrer, quebrado, chorando, com vergonha, desfeito de mim, coração em polvorosa, humilhado e com irada cara de tacho.
No outro dia o cara de pamonha de milho branco estava lá, crente que era intocável, certo de que agira pelo bem da pátria, com sua burreza pegajenta, seu jeito asqueroso, sua feição de ratazana posuda.
Mas não quero aqui ficar só falando dele.
Sauma teve uma crise, o bebê que esperava começou a chutar a barriga, já de quase oito meses. O médico Dr. Célio Santiago disse que a criança deveria estar querendo nascer antes do tempo. Como minha patroa teve uma hemorragia, lá se foi para a Santa Casa fazer exames, quando ocorreu o aborto e perdemos a criança que era um menino, um piá, um guri.
A partir disso, tudo piorou. Acho que foi quando Selma demonstrou a dupla personalidade esquizofrênica, pois já estava louca e talvez tivesse provocado o aborto. Numa carta que achei tempos depois, confidenciou isso, contou que não queria deixar para o seu país, no futuro, a cria de uma noite enferma, um ser doentio que gerara com medo, com dor, com ódio, por causa daquele traste desgraçado em nosso ninho de amor que se tornou um purgatório, um limbo. Pelo menos foi isso que captei nas garatujas que deixou escrita às pressas pois ela já estava tomando remédios e ao mesmo tempo bebendo cerveja preta escondido de mim, como se a querer fugir, se ferindo no mais íntimo de si, como revolta psicossomática ao estado do país, ao estado de nós dois com aquela espécie de câncer em casa. Ela tinha sido duramente atingida. Não parecia, mas tinha.
Confesso que não sei exatamente o que ocorreu na minha ausência, pois que fui buscar um exame dela em Itapetininga, e esse deve ter sido o meu erro, benza-Deus. Ao chegar em casa achei tudo arrumado, cheirando a flores silvestres, pois ela tinha enfeitado a casa toda, o tipo parece que, como tinha chegado, tinha ido embora. Senti alguma coisa, o ar livre, a mesa posta, as panelas de comida esfriando entre algumas beronhas mas ainda havia um cheiro gostoso de rabanada no ambiente, e então, procurando Sauma, numa intuição doente que me atingiu de repente a seco, corri pela casa, varanda, quintal, até que fui ao banheiro de nosso quarto e a encontrei babando. Estava enforcada, morta, dependurada no cano do chuveiro aberto.
Ela se matou? Ou ela foi “suicidada”? Nunca soube direito. Nunca compreendi isso. Tive que conviver com esse trauma. Se eu tivesse aprontado alguma com o Garrafa Azul (ou Lombriga, ou Sequela), talvez eu tivesse sido preso, torturado, morrido, mas ela estaria com o nosso filho, viva.
Agora, aqui no limbo de um Asilo Eterno, como Conselheiro na área de Geriatria, lembrando aqueles tempos, depois de sair de um sanatório de tuberculosos, avalio o Brasil de hoje, quando fico muito amargo, triste, depauperado. Tudo aquilo que a corja de 64 nos tirou, não adiantou nada. Estamos piores do que estávamos. Os ricos estão mais ricos, os pobres mais pobres, seis “famíglias” mandam no país. O resto de país, a Periferia S/A, preso a uma economia informal, contrabandistas informais, narcotráfico informal, Sampa, Samparaguai – o estado máfia - um verdadeiro e continental Carandiru a céu aberto...
O nosso filho que não há, Vladimir, não teria esperanças se fosse vivo. A filha que poderíamos ter tido, que Sauma queria Ética, nem em nome, nem em prática existe. Somos um quintal da América rica, uma latrina pobre em que os imbecis estão no poder, a periferia sociedade anônima é um risco, como se todo o país fosse uma enorme prisão a céu aberto, enquanto a mídia vende um país irreal, disfarçando um resto de noite que ainda nos habita, impregnando todo esse resto de nação e seu nefasto neoliberalismo globalizador, para gáudio do capital estrangeiro – o capitalhordismo – e o nosso selvagem, amoral e inumano sistema que beneficia o engodo, contra os milhões de brasileirinhos que morrem à míngua, no holocausto da rua de amargura. Lucros impunes. Riquezas injustas.
Vendi a casa, comprei outra, estudei, não sou mais um sonhador, órfão de Karl Marx, fiz cursos, viajei, fiquei com pneumonia que piorou, vejo a prostituição infantil, os jovens entre as gangues e as drogas, e os velhos aposentados por invalidez tratados como mendigos vagabundos por um presidente janota e boçal que já foi marxista, ateu, sociólogo e hoje é quase uma outra ridícula lombriga poliglota.
Depois de tudo o que passei, depois de todo o tempo de chumbo que vivemos, e sabendo a promiscuidade do governo atual ligado à mesma caterva ditatorial de antes, como uma espécie de “Pai da Fome” (milhões de desempregados) no poder, um babaquara janota e boçal, fica até muito difícil realmente pensar no senhor presidente ex-sociólogo, ex-marxista, ex-qualquer-coisa e ex-ateu como um SER HUMANO.
Silas Correa Leite, trecho do romance GOTO – O Reino do Barqueiro Noturno do Rio Itararé, Editora Clube de Autores
FIM