Por Nildo Ouriques
Mito e verdade da revolução brasileira é um retrato do clima intelectual e político do início da década de sessenta e condensa, sobretudo, a intensa polemica no interior da esquerda entre as tendências socialistas e os nacionalistas, capítulo inconcluso da Revolução Brasileira.
Não cometo injustiça em dizer que Alberto Guerreiro Ramos era o intelectual mais importante do país antes da ditadura; era também a cabeça pensante mais importante e fecunda do trabalhismo brasileiro e do ISEB. Guerreiro Ramos foi pioneiro em divulgar a força da obra de Lúckacs no Brasil e, tal como o filósofo marxista húngaro, abriu ácida polêmica em relação ao “marxismo-leninismo”, a ideologia de estado divulgada na Rússia e adotada, sem restrições, por grande parte da esquerda no mundo.
No entanto, ele não confundiu o essencial: Marx e Lenin figuram para Guerreiro Ramos como homens de excepcional capacidade intelectual e, no caso do revolucionário russo, um gênio de “irrepreensível honradez revolucionária” pelo qual nutria admiração, especialmente pela sua “sincera convicção de que estava trabalhando pelo desaparecimento da espoliação do homem”. Guerreiro Ramos acusou o caráter obsoleto da teoria leninista do partido indicando que o problema da organização não poderia mais ser resolvido nos termos da Revolução Russa.
Ademais, alertou com sabedoria que o “marxismo-leninismo” era um fenômeno tipicamente nacional e somente poderia ser compreendido a partir da história da intelligentzia russa e das condições sócio históricas que permitiram sua aparição. Nunca foi, portanto, uma solução de caráter universal.
O ponto central da polêmica segue, em larga medida, atual, pois Guerreiro Ramos defendeu neste livro a “dissolução do marxismo” e indicou o “marxismo ortodoxo” – segundo o cânone soviético – como o maior obstáculo para a elaboração de uma “teoria da revolução nacional”. Hoje, há quem possa supor uma polêmica superada.
Estarão errados o que assim pensam, razão pela qual é indispensável recuperar com generosidade e rigor este ponto elevado da trajetória de nossa esquerda para atualizar a teoria da revolução brasileira, tão desprezada nestes tempos de pragmatismo e empobrecimento da práxis política quanto necessária para superar a dependência e o subdesenvolvimento.
Guerreiro Ramos nutria-se da ambição de fazer a “crítica revolucionária da revolução brasileira”, recusando-se a importar o que chamou de “defeitos eslavos”. Nas circunstâncias difíceis de 1963, sua grande honestidade e não menor capacidade intelectual rendeu muitos adversários e inimigos tanto entre os comunistas quanto nas fileiras nacionalistas onde militava. A solução da questão nacional segue aberta e, se dúvida, é o grande desafio da Revolução Brasileira para comunistas, socialistas e nacionalistas.
Ademais, há algo valioso na conduta intelectual de Guerreiro Ramos que jamais podemos perder de vista: ele renunciou sempre tanto a comodidade acadêmica e o oportunismo político quanto o bom mocismo que corre solto na atualidade. Este bom mocismo é, na verdade, expressão de cinismo e, lamentavelmente, também aparece como artigo corrente nos partidos da esquerda.
A consequência necessária deste comportamento é o ocultamento das questões centrais da Revolução Brasileira, entre as quais figura a famosa "questão nacional". A publicação desta obra e o debate que certamente suscitará, é indispensável para que a tematização do nacionalismo - centro da questão nacional - não se limite as reflexões do marxismo europeu, sempre divulgadas no Brasil como se pudessem ser a solução para os impasses de um país dependente e subdesenvolvido.
Nildo Ouriques - professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, Presidente do Instituto de Estudos Latino-americanos (IELA) da Universidade Federal de Santa Catarina.
Artigo originalmente publicado em: <http://nildouriques.blogspot.com.br/2016/07/mito-e-verdade-da-revolucao-brasileira.html?spref=fb>.