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Quarta, 13 Julho 2016 01:07

A culpa nunca é da vítima Destaque

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País: Brasil / Mulher e LGBT / Fonte: Desacato

[Elisa Batalha] Até 500 mil pessoas são violentadas no país a cada ano. Saúde deve estar preparada para enfrentar o problema.

O caso da adolescente de 16 anos, vítima de estupro coletivo no Rio de Janeiro, em maio deste ano, ganhou grande repercussão na mídia e nas redes sociais, e o processo ainda figura nas páginas policiais. A vítima foi levada para uma casa abandonada, e, quando recobrou a consciência, contou 33 homens dentro do quarto. Integrantes do grupo postaram um vídeo do crime em redes sociais. A polícia civil do Rio de Janeiro descobriu, ao apreender o telefone celular de um dos suspeitos, outro vídeo que revelou que os estupros aconteceram em dois momentos diferentes no dia do crime. Ao prestar queixa na delegacia, a vítima foi questionada pelo delegado — posteriormente afastado — se ela “costumava fazer sexo em grupo”.

O Estado do Piauí também vem contabilizando uma série de estupros coletivos. Somente no mês de junho de 2016 foram registrados três casos. Um episódio emblemático, acontecido na cidade de Castelo do Piauí, região norte do estado, em maio de 2015, chocou pela crueldade. Quatro adolescentes, com idades entre 14 e 17 anos, foram atacadas quando estavam subindo o Morro do Garrote, ponto turístico da cidade, para tirar fotos. Segundo a polícia, elas foram dominadas, estupradas, arrastadas e jogadas de cima de um penhasco da altura de um prédio de três andares. Caídas, ainda foram apedrejadas. Uma delas morreu.

No caso do crime ocorrido no Rio de Janeiro, o vídeo divulgado nas redes sociais viralizou (foi visto por milhares de pessoas). Após a denúncia, a mídia comercial insistiu em traçar um perfil da jovem, explorando com detalhes seus hábitos, seu local de moradia, sua relação com a família, sua vida sexual. Ao mesmo tempo, cidadãos indignados e movimentos de mulheres protestaram contra a exposição e culpabilização da vítima. “O debate suscitado deixa evidente como o tema é urgente, como é preciso falar sobre o que move homens a se apropriarem do corpo de mulheres com tamanha brutalidade e, infelizmente, com tanta frequência”, afirmou a antropóloga Débora Diniz, em entrevista concedida à Radis.

“O lugar das redes sociais foi duplo nesse caso. Foi ao mesmo tempo onde a segunda cena de violência aconteceu, com a divulgação das imagens, mas também foi o espaço de resistência em que uma multidão de vozes miúdas pode se insurgir contra o crime de horror. Entre essas vozes há presença importante de mulheres jovens, de meninas, que possivelmente têm encontrado nas redes uma ferramenta inédita para falarem e serem ouvidas. É importante estarmos atentas a esses movimentos”, declarou Débora, que é professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora da Anis — Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.

50 mil casos

Apesar de as notícias terem gerado grande comoção, o crime de estupro não é um evento raro no país. A cada ano são registrados pela polícia cerca de 50 mil casos. A estimativa, conforme aponta pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é de que haja grande subnotificação, e o número total de casos pode chegar a 500 mil a cada ano no país. O baixo número de registros se deve ao tabu que cerca o tema, explica Daniel Cerqueira, um dos autores da Nota Técnica “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde” (ver Saiba Mais). “Nos Estados Unidos, onde existem mais dados, apenas 19,1% dos casos de estupro são notificados”, comentou. O economista observou que o caso do Rio de Janeiro é apenas um entre os que ilustram as trágicas estatísticas: 15% dos estupros registrados foram coletivos; 70% acometeram crianças e jovens; em 32,2% dos casos os algozes eram amigos ou conhecidos da vítima. “A violência de gênero atravessa todos os estratos sociais”, constata Daniel, referindo-se a dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), no ano de 2011.

Segundo ele, são poucos os dados sobre o tema no país, e é necessário entender as diversas formas de violência de gênero para melhor compreender o fenômeno da violência como um todo. “Sabemos que a análise é condicional ao fato de a vítima de estupro ter procurado os estabelecimentos públicos de saúde. Nos registros do Sinan, verificamos que 89% das vítimas são do sexo feminino, possuem em geral baixa escolaridade; mas crianças e adolescentes representam mais de 70% dos casos registrados”, detalhou.

A pesquisa mostrou também que, em 50% dos incidentes envolvendo menores de idade, há um histórico de estupros anteriores. Na análise, os dados são considerados “alarmantes”. “Sabe-se que o estupro, além das mazelas de curto prazo, gera consequências de longo prazo, como diversos transtornos, incluindo depressão, fobias, ansiedade, abuso de drogas ilícitas, tentativas de suicídio e síndrome de estresse pós-traumático. Tal fato, ocorrendo exatamente na fase da formação individual e da autoestima, pode ter efeitos devastadores sobre a sociabilidade e sobre a vida dessas pessoas”, escreveram os autores do trabalho.

O Senado aprovou no dia 31 de maio um projeto de lei que prevê pena mais rigorosa para os crimes de estupro praticados por duas ou mais pessoas. A proposta tipifica o crime de estupro coletivo que, atualmente, não é previsto no Código Penal brasileiro. O texto ainda precisará ser analisado pela Câmara dos Deputados. Atualmente, o crime de estupro praticado por uma pessoa tem pena prevista de 6 a 10 anos de prisão. Nos casos de estupro de vulnerável (quando o crime é praticado contra uma criança de até 14 anos), a pena prevista é de até 15 anos de reclusão. Pela proposta aprovada, caso o crime seja cometido por mais de uma pessoa, a pena será aumentada de um a dois terços, o que poderia totalizar até 25 anos de prisão, nos casos de estupro de vulnerável.

Ideologia patriarcal

 
A professora da UnB Lia Zanotta Machado não vê vantagens no aumento das penas:  “É preciso que haja punição, sim, mas quanto maior a pena para o crime, mais os juízes e promotores tendem a aderir à ideia de que não foi um estupro”, ponderou a pesquisadora. A dificuldade que até mesmo alguns operadores do direito têm de compreender essa orientação decorre, de acordo com todos os entrevistados nessa reportagem, de raízes mais profundas na sociedade. “Na verdade, a ideia do consentimento é que você pode desistir ou negar uma relação sexual a qualquer hora”, afirma a pesquisadora. A violência de gênero — da qual o estupro é a ponta do iceberg — é um reflexo direto da ideologia patriarcal. “Mais mortificador não é apenas pensar na prevalência deste tipo de crime, mas também nas relações embutidas nesse fenômeno”, afirmou Daniel Cerqueira.
 
Por isso, muito além da questão criminal e jurídica, é preciso discutir a estrutura social que legitima a cultura do estupro (ver entrevista página 21). É ela que leva os próprios estupradores a não se intimidarem em divulgar um vídeo nas redes sociais, e que faz com que as vítimas se envergonhem e tenham medo de denunciar. A pouca frequência de denúncias se deve, de acordo com Lia, à culpabilização das vítimas e ao medo de serem retaliadas até pelos próprios estupradores. “Elas denunciam e ficam desprotegidas em relação a quem elas denunciam. Você tem um déficit enorme na proteção da mulher quando ela denuncia. Não bastam apenas medidas protetivas, tem que ter fiscalização dessas medidas”.
 
O direito ao atendimento psicológico e de saúde a mulheres vítimas de estupro é fundamental, defendem os pesquisadores. Hoje, a possibilidade da interrupção da gravidez — se a mulher violentada assim decidir — é garantido por lei . Cerca de 7% dos casos de estupro resultam em gravidez. Pela legislação brasileira, a vítima tem direito a abortar, mas 67% das mulheres que engravidaram em decorrência de estupro não tiveram acesso ao serviço de aborto legal na rede pública de saúde (ver Radis 162). Para Débora Diniz, entre o que é posto na legislação sobre o atendimento às vítimas de estupro e a efetiva assistência que as vítimas recebem existe “distância tremenda”. “A política de saúde estabelecida para esses casos orienta que os serviços devem se mover a partir da palavra da mulher: se ela anuncia ter sido vítima de violência sexual, deve ter acesso garantido ao aborto. Mas isso não é o que acontece no Brasil. As mulheres são submetidas a um intenso regime de suspeição, que não as reconhece como vítimas daquilo que anunciam, e em último caso lhes nega direitos”, afirma Débora.
 
A orientação oficial é que as mulheres vítimas de violência, qualquer que seja o tipo, procurem unidades do SUS, onde serão atendidas conforme sua condição. De acordo com o Programa Mulher, viver sem violência, em caso de violência sexual, a vítima deve receber atendimento psicológico, contracepção de emergência para evitar uma gravidez indesejada e profilaxia para DSTs, HIV, Hepatite B, entre outras medidas. Lançado em 2013, o programa integra serviços públicos de segurança, justiça, saúde, assistência social, acolhimento, abrigamento e orientação para trabalho, emprego e renda, e é coordenado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres — hoje incorporada ao Ministério da Justiça e da Cidadania. Um dos eixos do programa inclui a implementação da Casa da Mulher Brasileira, uma unidade especial de atendimento intersetorial, e a ampliação da Central de Atendimento à Mulher — Disque 180, que passou a ser um disque-denúncia com acionamento imediato das polícias militares de todo o país.  O Disque 180 realizou 4,1 milhões de atendimentos entre 2005 e 2014.
 
É necessário um cuidado muito especial por parte dos profissionais de saúde no atendimento a vítimas de violência sexual, para evitar que o próprio atendimento se torne traumático — uma revitimização — e também para que possam ser feitos os registros e procedimentos para evitar a impunidade dos agressores. “As mulheres ficam tão enlouquecidas, elas chegam em casa, tomam banho, porque com a ideia de que elas têm que se ‘purificar’ do ato, às vezes até perdem as provas biológicas de estupro”, conta Lia, que trata deste assunto no artigo “Sexo, estupro e purificação”.
 
O Ministério da Saúde publicou, em outubro de 2015, a portaria nº 1.662, com os critérios de habilitação de serviços da rede pública para darem suporte às vítimas desse tipo de violência e ajudarem a combater a impunidade. A ação permite que o hospital realize exame físico, descrição de lesões, registro de informações e coleta de vestígios que serão encaminhados, quando requisitados, às autoridades policiais. A medida reduz a exposição da pessoa que sofreu a violência, evitando que as vítimas sejam submetidas a procedimentos repetidas vezes para fins médicos e jurídicos, e visa combater a impunidade. De acordo com a portaria, os hospitais da rede pública, classificados como serviços de Referência para Atenção Integral às Pessoas em Situação de Violência Sexual deverão estar habilitados a atender 24 horas por dia, sete dias por semana, em locais específicos e reservados para acolhimento, registro de informações, coleta e guarda provisória de vestígios.
 
Em outras frentes além da Saúde, são apontadas ações para contrapor a cultura do estupro, e evitar que as estatísticas se mantenham altas e notícias sobre estupros continuem sendo tão frequentes. “No campo cultural também tem que se pensar um pouco mais, por exemplo, se você exibe uma sessão de estupro [na ficção], é necessário refletir sobre o que é uma denúncia e o que é uma apologia. Na publicidade, as mulheres são continuamente mostradas como objeto de posse”, afirmou Lia, que também considera fundamental que seja feita uma discussão sobre desigualdade de gênero nas escolas, uma vez que, na sociedade, “a masculinidade é associada à violência” (ver entrevista). Débora Diniz corrobora essa visão: “Nosso Congresso Nacional decidiu que em escolas não se pode falar sobre gênero, que igualdade entre os sexos não é tema para cidadania, mas o que o debate após o crime de horror mostra é o contrário: precisamos falar sobre isso, já”.
 
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