O caso da adolescente de 16 anos, vítima de estupro coletivo no Rio de Janeiro, em maio deste ano, ganhou grande repercussão na mídia e nas redes sociais, e o processo ainda figura nas páginas policiais. A vítima foi levada para uma casa abandonada, e, quando recobrou a consciência, contou 33 homens dentro do quarto. Integrantes do grupo postaram um vídeo do crime em redes sociais. A polícia civil do Rio de Janeiro descobriu, ao apreender o telefone celular de um dos suspeitos, outro vídeo que revelou que os estupros aconteceram em dois momentos diferentes no dia do crime. Ao prestar queixa na delegacia, a vítima foi questionada pelo delegado — posteriormente afastado — se ela “costumava fazer sexo em grupo”.
O Estado do Piauí também vem contabilizando uma série de estupros coletivos. Somente no mês de junho de 2016 foram registrados três casos. Um episódio emblemático, acontecido na cidade de Castelo do Piauí, região norte do estado, em maio de 2015, chocou pela crueldade. Quatro adolescentes, com idades entre 14 e 17 anos, foram atacadas quando estavam subindo o Morro do Garrote, ponto turístico da cidade, para tirar fotos. Segundo a polícia, elas foram dominadas, estupradas, arrastadas e jogadas de cima de um penhasco da altura de um prédio de três andares. Caídas, ainda foram apedrejadas. Uma delas morreu.
No caso do crime ocorrido no Rio de Janeiro, o vídeo divulgado nas redes sociais viralizou (foi visto por milhares de pessoas). Após a denúncia, a mídia comercial insistiu em traçar um perfil da jovem, explorando com detalhes seus hábitos, seu local de moradia, sua relação com a família, sua vida sexual. Ao mesmo tempo, cidadãos indignados e movimentos de mulheres protestaram contra a exposição e culpabilização da vítima. “O debate suscitado deixa evidente como o tema é urgente, como é preciso falar sobre o que move homens a se apropriarem do corpo de mulheres com tamanha brutalidade e, infelizmente, com tanta frequência”, afirmou a antropóloga Débora Diniz, em entrevista concedida à Radis.
“O lugar das redes sociais foi duplo nesse caso. Foi ao mesmo tempo onde a segunda cena de violência aconteceu, com a divulgação das imagens, mas também foi o espaço de resistência em que uma multidão de vozes miúdas pode se insurgir contra o crime de horror. Entre essas vozes há presença importante de mulheres jovens, de meninas, que possivelmente têm encontrado nas redes uma ferramenta inédita para falarem e serem ouvidas. É importante estarmos atentas a esses movimentos”, declarou Débora, que é professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora da Anis — Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
50 mil casos
Apesar de as notícias terem gerado grande comoção, o crime de estupro não é um evento raro no país. A cada ano são registrados pela polícia cerca de 50 mil casos. A estimativa, conforme aponta pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é de que haja grande subnotificação, e o número total de casos pode chegar a 500 mil a cada ano no país. O baixo número de registros se deve ao tabu que cerca o tema, explica Daniel Cerqueira, um dos autores da Nota Técnica “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde” (ver Saiba Mais). “Nos Estados Unidos, onde existem mais dados, apenas 19,1% dos casos de estupro são notificados”, comentou. O economista observou que o caso do Rio de Janeiro é apenas um entre os que ilustram as trágicas estatísticas: 15% dos estupros registrados foram coletivos; 70% acometeram crianças e jovens; em 32,2% dos casos os algozes eram amigos ou conhecidos da vítima. “A violência de gênero atravessa todos os estratos sociais”, constata Daniel, referindo-se a dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), no ano de 2011.
Segundo ele, são poucos os dados sobre o tema no país, e é necessário entender as diversas formas de violência de gênero para melhor compreender o fenômeno da violência como um todo. “Sabemos que a análise é condicional ao fato de a vítima de estupro ter procurado os estabelecimentos públicos de saúde. Nos registros do Sinan, verificamos que 89% das vítimas são do sexo feminino, possuem em geral baixa escolaridade; mas crianças e adolescentes representam mais de 70% dos casos registrados”, detalhou.
A pesquisa mostrou também que, em 50% dos incidentes envolvendo menores de idade, há um histórico de estupros anteriores. Na análise, os dados são considerados “alarmantes”. “Sabe-se que o estupro, além das mazelas de curto prazo, gera consequências de longo prazo, como diversos transtornos, incluindo depressão, fobias, ansiedade, abuso de drogas ilícitas, tentativas de suicídio e síndrome de estresse pós-traumático. Tal fato, ocorrendo exatamente na fase da formação individual e da autoestima, pode ter efeitos devastadores sobre a sociabilidade e sobre a vida dessas pessoas”, escreveram os autores do trabalho.
O Senado aprovou no dia 31 de maio um projeto de lei que prevê pena mais rigorosa para os crimes de estupro praticados por duas ou mais pessoas. A proposta tipifica o crime de estupro coletivo que, atualmente, não é previsto no Código Penal brasileiro. O texto ainda precisará ser analisado pela Câmara dos Deputados. Atualmente, o crime de estupro praticado por uma pessoa tem pena prevista de 6 a 10 anos de prisão. Nos casos de estupro de vulnerável (quando o crime é praticado contra uma criança de até 14 anos), a pena prevista é de até 15 anos de reclusão. Pela proposta aprovada, caso o crime seja cometido por mais de uma pessoa, a pena será aumentada de um a dois terços, o que poderia totalizar até 25 anos de prisão, nos casos de estupro de vulnerável.
Ideologia patriarcal
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Estupros no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde” – Nota Técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2014): http://goo.gl/xqIf3jf
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“Masculinidade, sexualidade e estupro: as construções da virilidade”, artigo de Lia Zanotta Machado (Machado, 1998): http://goo.gl/iBI5rK
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“Sexo, estupro e purificação” (Machado, 2000): http://goo.gl/KFmFHJ
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“A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil” – artigo de Débora Diniz (Diniz et al, 2014): http://goo.gl/G9WPBo
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Atendimento a vítimas de violência sexual: http://goo.gl/alyVvJ /http://goo.gl/a9c33U/http://goo.gl/bKgSx7
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Radis 92 (Lei Maria da Penha; Atendimento às vítimas): http://goo.gl/Wxdv24
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Radis 152 (Violência contra a mulher): http://goo.gl/zJ6Bae