Uma das funções da agricultura no desenvolvimento de um país é assegurar a oferta de alimentos. Nosso modelo, fundado no mercado externo e no fornecimento de matérias-primas, prevê inserção subalterna do país na divisão internacional do trabalho e perenizou a reforma agrária para que ela nunca fosse feita
A recente alta nos preços do feijão e do leite, e alguns outros produtos alimentícios, trouxe novamente a pauta a questão dos preços dos alimentos e seu peso nos índices de inflação. Como ocorrido há algum tempo no alegórico caso do tomate que serviu de colar para uma apresentadora de televisão, não há nenhum tipo de análise que busque identificar as causas do fenômeno de aumento dos preços. No máximo, de acordo com as preferências políticas, apontam o dedo ao presidente golpista ou à presidente afastada.
Alimentos têm uma demanda relativamente inelástica, particularmente produtos da dieta básica da população como é o caso do feijão no Brasil. Em outras palavras, uma família normalmente abre mão do consumo de outros produtos diante de um aumento de preços em produtos alimentícios básicos, mas a demanda destes tende a permanecer inalterada. Há, claro, uma variação na demanda agregada dos alimentos que acompanha a variação populacional, mas nada que justifique um aumento abrupto dos preços.
O que temos no Brasil é que as áreas voltadas para alimentos de consumo interno da população brasileira estão a perder espaço para culturas de exportação ou que produzem insumos não alimentícios para outras indústrias. Segue abaixo gráfico elaborado a partir da Pesquisa Mensal Agrícola do IBGE que compara a série histórica das áreas plantadas dos dois produtos mais elementares da dieta do brasileiro, arroz e feijão, com as áreas plantadas da soja (voltada ao mercado externo) e cana-de-açúcar (voltada tanto para a produção do açúcar, boa parte exportada, como para a produção do etanol, o álcool combustível).
Em números, tínhamos em 1990 uma área plantada de 4.158.547 hectares de arroz, 5.304.267 hectares de feijão, 4.322.299 hectares de cana-de-açúcar e 11.584.734 hectares de soja. Em 2014, os hectares plantados eram 2.347.460 de arroz, 3.401.466 de feijão, 10.472.169 de cana-de-açúcar e 30.308.231. Uma drástica diminuição da área plantada dos produtos da dieta básica do brasileiro num período que a população saltou de menos de 150 milhões para cerca de 200 milhões de pessoas. Não é, portanto, uma estratégia de qualquer governo de plantão, mas um modelo de desenvolvimento adotado pelo país.
Uma das funções elementares da agricultura no desenvolvimento de um país é assegurar a oferta de alimentos. Estamos num modelo fundado no mercado externo e no fornecimento de matérias-primas para produtos como o etanol e a celulose que não apenas não contribui para o aumento da oferta interna de alimentos, como vem reduzindo a área plantada das culturas que atendem à dieta básica do brasileiro.
Trata-se de um modelo perpetuado pelas velhas elites agrárias. Os velhos coronéis da República Velha viraram os ruralistas de hoje. Um modelo que prevê uma inserção subalterna do país na divisão internacional do trabalho e que perenizou a reforma agrária no país para que ela nunca fosse feita.
A força destes grupos de interesse no congresso nacional impedem o avanço de qualquer pauta minimamente progressista no congresso. Todos os governos brasileiros, em maior ou menor grau, estiveram reféns dos velhos coronéis para garantir a governabilidade. A ditadura promoveu a modernização conservadora do campo sem qualquer modificação na estrutura agrária. Na Nova República, os representantes das velhas oligarquias sempre controlaram o Ministério da Agricultura e foram decisivos em todas as votações no congresso. O presidente Lula chegou a chamar os usineiros de heróis nacionais.
Nas discussões sobre desenvolvimento econômico, até economistas conservadores como o norte-americano Walt Whitman Rostow defendem como necessária uma ruptura com as elites tradicionais. No Brasil, as oligarquias permanecem hegemônicas tendo sido inclusive decisivas no processo de impeachment da presidenta Dilma. A ausência de uma reforma agrária efetiva tem ditado os rumos do atraso do país, seja na política seja na economia.
Esta discussão não é de hoje. Em 1948, Victor Nunes Leal publicavaCoronelismo, Enxada e Voto, em cuja conclusão apontava que a decomposição do ‘coronelismo’ só será completa quando se tiver operado uma alteração fundamental em nossa estrutura agrária. (...)
Assim como a estrutura agrária ainda vigente contribui para a subsistência do “coronelismo”, também o “coronelismo” concorre para a conservação dessa mesma estrutura. Os governos brasileiros têm saído, até hoje, das classes dominantes e com o imprescindível concurso do mecanismo “coronelista”. Essa é uma das razões da sua perplexidade no encarar os problemas do país, cuja economia se caracteriza por um industrialismo ainda precário e por um agrarismo já retrógrado.
Essa perplexidade teria de conduzir, inevitavelmente, a medidas contraditórias. Para proteger a indústria, não se procura ampliar o mercado interno com providências eficazes e consequentes, porque semelhante política prejudicaria os interesses da classe rural dominante. Apela-se então, exclusiva ou principalmente, para o protecionismo alfandegário, a fim de contentar gregos e troianos: os preços dos produtos industriais mantêm-se altos e a estrutura agrária permanece intocada.
As consequências aí estão: o mercado interno não se amplia, porque a vida encarece e a população rural continua incapaz de consumir; não dispondo de mercado, a indústria não prospera, nem eleva seus padrões técnicos e tem de apelar, continuadamente, para a proteção oficial; finalmente, a agricultura, incapaz de se estabilizar em alto nível dentro do seu velho arcabouço, prossegue irremediavelmente no caminho da degradação. Fecha-se, assim, o círculo vicioso: no plano econômico, agricultura rotineira e decadente, indústria atrasada e onerosa, uma e outra empobrecendo sistematicamente o país; no plano político, sobrevivência do “coronelismo”, que falseia a representação política e desacredita o regime democrático, permitindo e estimulando o emprego habitual da força pelo governo ou contra o governo.
Talvez haja imprecisões se quisermos transportar ipsis literis as conclusões de Nunes Leal para os dias de hoje. Entretanto, é inequívoca a necessidade de uma profunda alteração da estrutura fundiária no Brasil, muito além da política de assentamentos do último período. Do combate à inflação ao desempoderamento das velhas oligarquias, as forças políticas que defendem um projeto minimamente autônomo de desenvolvimento devem ter a reforma agrária em sua agenda prioritária. O aprofundamento da democracia e a superação dos golpes do passado, do presente e do futuro dependem desta agenda.
*Gustavo Noronha é economista do Incra.