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Diário Liberdade
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Sexta, 06 Mai 2016 05:49 Última modificação em Domingo, 08 Mai 2016 16:33

Balas, palavras, “Edilmas” e a necessária construção do Poder Popular Destaque

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País: Brasil / Repressom e direitos humanos, Batalha de ideias / Fonte: Diário Liberdade

[João Guilherme A. de Farias*] Numa carta divulgada pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), sob a voz do subcomandante Marcos, conta-se a história da bala que matou um dos militantes zapatistas na madrugada de janeiro de 1994, quando a organização deu início à insurreição no estado de Chiapas, México, resultando em mais de 50 mortos [1].

A carta, em forma de versos, inicia da seguinte maneira: “Eu tenho um irmão morto. Existe alguém que não tenha um irmão morto?”

Essa morte a que se refere o subcomandante Marcos é aquela que ocorre no embate, no seio da luta de classes, aquela em que se contrapõem antagonismos inconciliáveis. Uma luta singular, específica, travada em todos os cantos da sociedade capitalista, ora de forma mais declarada, ora de modo mais sutil.

O comandante então se questiona: “outra madrugada perguntei à bala que matou meu irmão de onde vinha”, e continua: “do fuzil do soldado do governo, do poderoso que serve a outro poderoso, que serve a outro...”.

O levante zapatista, com suas particularidades, das quais se destaca o corte indígena, é resultado direto das contradições sociais e dos interesses inconciliáveis das classes. Ao lado de outras forças políticas e experiências históricas, o “zapatismo” configura-se como um embrião de Poder Popular.

O Poder Popular, vejamos, é mais que uma palavra de ordem; é a expressão, a representação teórica das pretensões que devem guiar as lutas da classe trabalhadora.

As palavras não são simplesmente palavras. São, por vezes, a expressão ideológica de uma classe. Palavras como justiça, dignidade humana, democracia, por exemplo, encontram-se na boca da classe trabalhadora, contribuindo apenas para deformar a sua compreensão da realidade, reproduzindo-a [2].

Quem arriscaria falar de democracia, justiça e dignidade humana, por exemplo, nas periferias dos grandes centros urbanos?

Ainda assim, por força dos aparelhos ideológicos, incluam-se ai a escola, a mídia, a igreja e a própria ideologia jurídica e estatal, há uma educação intensiva que proporciona ao indivíduo um tipo de conhecimento que lhe fará atuar às cegas na defesa destes conceitos absolutamente desprovidos de conteúdo real [3].

O Poder Popular mostra-se, nesse sentido, o instrumento de medida dos níveis de tensionamento que a democracia burguesa está disposta a suportar. Se uma forma embrionária desse poder se movimenta para além do limite tolerável e por óbvio da legalidade (e esse limite é a propriedade privada e o capital), a democracia serve de auto referencial para promover verdadeiros massacres típicos de regimes totalitários.

A democracia formal e representativa, portanto, se num determinado momento histórico foi o mote de luta, agora, precisa ser superada. A democracia real ou substancial não se concretiza e tampouco se funda com uma Constituição Federal. A verdadeira democracia é a ditadura do proletariado [4].

A dignidade humana, cuja matriz é absolutamente idealista, torna-se irrealizável no capitalismo; não se sustenta quando enfrentada com o movimento da vida real na sociedade burguesa, que não apenas se ergue sobre a exploração da força de trabalho, mas, como efeito do sistema atual, está cindida em classes [5].

A justiça, que no capitalismo ganha a expressão máxima da decadência teórica, isto é, confunde-se equivocadamente com a legalidade, apenas se concretizará com a emancipação da classe trabalhadora. Enquanto permanecermos no estágio atual, a justiça não significará nada para nós.

À classe trabalhadora é oferecido o discurso da passividade. O direito, que é a ideologia burguesa por excelência, apresenta-se como o meio puro e capaz de “civilizar” as relações humanas [6]. Por outro lado, o Estado e a burguesia respondem diariamente com violência. Ora de maneira mais evidente, como a intervenção da força estatal por intermédio da Polícia, ora de modo mais sutil, como ocorre na relação entre patrão e empregado.

A alternativa à superação do sofrimento da classe trabalhadora está fora do imaginário religioso e para além dos quadrantes da política estatal, que é alienante: ou seja, transborda os estreitos limites das instituições burguesas.

O ser humano detém o caráter exclusivo da violência na medida em que a convivência entre Homem e natureza implica, necessariamente, a violação constante do meio natural. Violência, logo, é transformação [7].

Contra a violência da classe burguesa e do capitalismo, o processo de construção do Poder Popular é a resposta a ser dada pela classe trabalhadora. O que hoje existe merece perecer. Foi o que Engels extraiu do que havia de revolucionário em Hegel, ou seja, de seu método: “no processo de desenvolvimento, tudo que antes era real se transforma em irreal, perde sua necessidade, seu direito de existir, seu caráter racional; à realidade que agoniza sucede uma realidade nova e vital; pacificamente, se o que caduca é bastante razoável para desaparecer sem luta; pela força, se se rebela contra essa necessidade” [8].

O Poder Popular, portanto, deve tomar lugar aos conceitos universais burgueses na busca pela superação dos horizontes que hoje estão dados.

Antes, porém, é preciso ter em claro o seu real significado.

Por isso mesmo, o Poder Popular, cuja compreensão teórica vem sendo discutida no seio do Partido Comunista Brasileiro (PCB) [9], enquanto fenômeno objetivo, não descarta de maneira alguma as experiências históricas de processos revolucionários, como os Soviets na URSS, os Comitês de Defesa da Revolução (CDRs) em Cuba e os concelhos operários no Chile durante o governo de Allende, etc.

Mais recentemente, experiências ocorridas com certas organizações caracterizam-se como forma embrionária de Poder Popular: o EZLN, em maior medida, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), por exemplo, constituem forças políticas comprometidas com este processo.

O Poder Popular mostra-se como algo distinto e em conflito direto com o Estado. Ele é auto-organizado e dotado de poder (de classe). O elemento de destaque nessa relação é o conflito, sempre presente.

Numa compreensão ampla, o ato promovido nesta quarta-feira (04/05) pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) comporta uma das inúmeras características de um movimento preocupado com a construção do Poder Popular: o conflito direto com o Estado.

Foi neste ato pontual do MTST que a militante e lutadora Edilma Aparecida Vieira dos Santos foi atingida por uma bala. Bala esta que partiu do revolver de um soldado do governo, do policial militar Robson Vieira do Nascimento [10].

Edilma carrega agora a cicatriz da violência de classe, num momento que coincide com o forte agravamento da criminalização das organizações de esquerda.

Nos últimos tempos, inúmeras são as “Edilmas” feridas no combate da luta de classes. Inúmeras são as balas. No mês em que Eldorado dos Carajás completou seus 20 anos, o Estado brasileiro fez mais duas vítimas fatais, os companheiros Leomir Orbach e Vilmar Bordin, militantes e lutadores do MST que ocupavam uma fazenda na Região Oeste do Paraná [11].

Tantos são os casos. Tantas são as balas. A pergunta que fica é aquela do subcomandante Marcos:

“Eu tenho um irmão morto. Existe alguém que não tenha um irmão morto?”

A luta é internacional. O Paraguai, em 2012, presenciou o assassinato, também por sua polícia, de 11 camponeses. Caso emblemático, ainda sem solução, Curuguaty foi a cruel expressão de como a forma política e os aparelhos repressivos estatais no capitalismo agem para garantir a sua reprodução [12].

Nossos bolsos, mantendo vivas as palavras do subcomandante, não são para guardar balas, mas para guardar nossas companheiras e nossos companheiros de luta.

Tudo isso exige a solidariedade daqueles que estão engajados na luta contra o capital para com tantas “Edilmas”. É necessário que trabalhadoras e trabalhadores se reconheçam enquanto classe. Para contribuir com essa conscientização ou desalienação, está o papel das organizações, dos partidos.

O Poder Popular, uma categoria ainda em construção, nutre-se do processo histórico real; ao mesmo tempo, ao carregar nossas pretensões de classe explorada, nos serve como guia para a ação.

Enquanto palavra ou grito de ordem, o Poder Popular, ao lado da revolução e da luta de classes, precisa ser apropriado, isto é, estar na boca e nas mãos da classe trabalhadora. O embate ideológico, não nos esqueçamos, é um dos pilares de uma luta maior: a revolução socialista.

O Poder Popular necessita ser o reconhecimento dos trabalhadores enquanto classe apartada dos meios de produção, pois é a palavra de ordem que substitui conceitos ideais e universalizantes, proporcionando uma espécie de guia de ação para a intervenção nos processos históricos.

“Não me gaste as palavras. Não mude o seu significado. Veja o que eu quero, pois para mim está bastante claro [...]. Se escreve reforma agrária, mas apenas no papel, veja que se o povo avança, a terra vem com ele [...]. Não suje as palavras, não retire-lhes o sabor e limpe bem a boca se diz revolução”. (“As Palavras” – Mario Benedetti).

 

*João Guilherme é militante do PCB. Estudante bolsista (ProUni) e pesquisador da Faculdade de Direito da PUC-SP. Coordenador do Grupo de Pesquisa Marxismo e Direito e membro do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital/USP.

Notas

[1] https://www.youtube.com/watch?v=Fuhc6haykK8

[2] MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução. Trad. Marília Barroso. 1. ed. Rio de Janeiro: Saga, 1969, p. 260.

[3] ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. 2. ed. Trad. de Valter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

[4] Conferir: “A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky: democracia Burguesa e Democracia Proletária” de Vladmir Lenin (https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/renegado/cap02.htm) / “A Comuna de Paris e a Ditadura do Proletariado” – palestra proferida pelo professor José Paulo Netto (https://www.youtube.com/watch?v=NjjWnGFwPJk)

[5] MASCARO, Alysson L. M. Os direitos humanos e a dignidade humana. Revista do Movimento do Ministério Público Democrático. São Paulo / n. 21 / Ano V./ 2008. em: <http://mpd.org.br/assets/Dialogico_21.pdf> Acesso em: outubro/2015.

[6] SABADELL, Ana L. Tormenta juris permissione: tortura e processo penal na Península Ibérica (séculos XVI – XVIII). 1. ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2006.

[7] VÁZQUEZ, Adolfo. Filosofia da Práxis. Trad. Maria Encarnación Moya. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

[8] ENGELS; MARX. Textos. Vol. 1. Ludwing Feuerbach e o fim da Filosofia Clássica Alemã. 1. ed. São Paulo: Edições Sociais, 1977, p. 79-117.

[9] “Considerações sobre o Poder Popular” (http://pcb.org.br/fdr/index.php?option=com_content&view=article&id=610:consideracoes-sobre-o-poder-popular&catid=3:temas-em-debate)

[10] “Militante do MTST baleada em ato não corre risco de morte” (http://www.vermelho.org.br/noticia/280387-8)

[11] “Sem Terra são assassinados no Paraná” (http://www.mst.org.br/2016/04/07/sem-terra-sao-assassinados-no-parana.html)

[12] “Curuguaty, a matança que derrubou Lugo” (http://apublica.org/2012/11/curuguaty-matanca-derrubou-lugo/)

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