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Sábado, 05 Novembro 2016 21:39 Última modificação em Domingo, 13 Novembro 2016 13:43

A cultura como mercadoria Destaque

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País: Brasil / Cultura/Música / Fonte: Diário Liberdade

Por Alex Agra

A discussão acerca da apropriação cultural é cada vez mais forte em todos os espaços. Tanto na academia, quanto nas redes sociais, o tema é espinhoso porque muitas vezes é tratado com um viés subjetivista, idealista e anticientífico. A proposta desse artigo então é debater o tema da apropriação cultural sob outra perspectiva.

Entre os temas mais discutidos na atualidade, a apropriação cultural aparece com certa recorrência nos mais diversos espaços com diversas interpretações. Há quem diga que não existe apropriação cultural, que cultura não é propriedade, e há quem diga que ela existe, buscando sustentar uma postura política em torno dessa tese com o objetivo de resolver um problema que é comumente afirmado como um problema histórico. Nesse sentido, o objetivo desse texto é levar em consideração os contributos da economia, da antropologia e da ciência política para tentar compreender a dinâmica do problema em torno da cultura e dos elementos culturais. De certa forma, esta acaba sendo mais uma contribuição para a crítica acerca do que se entende enquanto apropriação cultural e ao mesmo tempo, uma proposição que busca enxergar o debate por um outro viés, tendo como base a materialidade, traduzida através da observação histórica, econômica e de alguma maneira, filosófica, sendo condição inexorável retirar esse debate do campo das meras abstrações e da conexão com o idealismo.

Esse debate é demarcado por vários problemas, em grande maioria relacionados à localização histórica e utilização dos conceitos, decorrentes sobretudo pela recusa constante na utilização da ciência (seja ela social, econômica, ou histórica) como uma ferramenta efetiva para o debate. O ponto de vista subjetivo tem se mostrado cada vez mais como um ponto de vista pobre e ineficaz na interpretação do problema porque não é capaz de apresentar uma análise que leve em consideração a totalidade do objeto, de maneira que as análises produzidas recebem cada vez mais um caráter idealista e destoam da realidade do objeto. O dever ser da cultura não nos serve para nada, mas sim como ela se apresenta na realidade material, sobretudo através da atividade prática sensível.

Primeiro é preciso demarcar: a cultura é mercadoria. No capitalismo, toda a nossa produção é voltada a valorização do valor, ou seja, para a criação de um mais valor. Quando falamos do valor de uma mercadoria, podemos separá-lo em dois: valor de uso e valor de troca. O valor de uso é um valor que tem em vista a satisfação de necessidades, sejam necessidades vitais ou espirituais, do estômago ou da fantasia. Esse valor de uso é determinado pelas características do objeto e se realiza no consumo, parte de uma realização subjetiva (tal qual a utilidade é) e no modo de produção capitalista, é subordinado ao valor de troca (ou valor). A medida dos valores da mercadoria é dada pelo tempo socialmente necessário para a produção desta mesma mercadoria.

Evidenciaremos então, as duas formas de circulação da mercadoria: M – D – M’, que é a fórmula na qual existe apenas um valor de uso da mercadoria referenciado, e a forma D – M – D’, que é a fórmula que expressa o processo de circulação no modo de produção capitalista. Entende-se D enquanto dinheiro (ou capital) e M enquanto mercadoria, forças produtivas (Força de Trabalho e Meios de Produção) por exemplo. Na segunda fórmula, podemos observar que D, por intermédio de M, transforma-se em D’, ou seja, um valor, por intermédio da mercadoria, transforma-se em um mais valor. Onde isso acontece? Na exploração da Força de Trabalho. O mais valor nada mais é do que o tempo de trabalho aplicado na produção de uma mercadoria que o trabalhador não recebe no seu salário. É daí que vem o lucro na sociedade capitalista. Essa fórmula aparentemente simples, que explica o processo de circulação no capitalismo, evidencia o porquê de a produção não considerar o valor de uso (a necessidade), mas sim a geração de mais valor. Deste modo, é possível afirmar então que toda produção na sociedade capitalista é uma produção que tem em vista a geração de mais valor, e por isso o capital necessita transformar tudo aquilo que produz em mercadoria. Entendendo a cultura enquanto produto do trabalho humano, seja um turbante ou um colar, no contexto do capitalismo, esse produto do trabalho é uma mercadoria.

E aí entramos no outro fator: o caráter ontológico da cultura. A grande questão acerca da perda da essência de uma cultura ou do objeto pertencente a determinada cultura, não é o uso desse objeto por parte das pessoas brancas, mas sim a transformação desse objeto em mercadoria. Ele perde seu valor de uso, seu objetivo de satisfazer alguém espiritualmente, sobretudo quando ele é símbolo de resistência, e se converte em mero valor de troca. Essa conversão retira o caráter ontológico da cultura, ou seja, retira sua essência. Se a essência da cultura é uma essência centralizada na resistência, na identificação com as origens, essa essência se perde e se reduz a um mero valor de troca. O elemento cultural então torna-se estranho mesmo àquele que antes se identificava com e através desse elemento, de maneira que agora ele não tem mais a essência da identidade e da resistência, mas sim da mercadoria. Visto isso, é possível afirmar que a apropriação cultural existe, mas existe porque se transforma a cultura em propriedade. Apropriação cultural então, se define pelo ato de transformar uma cultura em mercadoria (retirando sua essência) e então, torná-la propriedade.

É preciso fazer primeiro essa contextualização e conceituação para posteriormente podermos tratar do que se entende enquanto resposta para o problema. As reflexões que não levam em consideração a realidade material da cultura e seu contexto histórico não podem ser efetivas na apresentação de possibilidades resolutivas simplesmente porque em grande medida, estão contaminadas por determinações a priori que distorcem o objeto e por isso, funcionam como a tentativa de encaixar um quadrado em um círculo.

Feito o necessário, agora podemos concluir: a única superação possível para o que se entende enquanto apropriação cultural é a superação do modo de produção capitalista. Enquanto o produto do trabalho humano (e aqui, insere-se a cultura) for transformado sempre em mercadoria com o objetivo de gerar mais-valor, é impossível pensar em uma outra dinâmica do ponto de vista da cultura. Pretendo com essa afirmação, evidenciar o óbvio: não é dizendo para as pessoas não consumirem que o problema da apropriação cultural será resolvido. Justamente porque o produto do trabalho humano (mais uma vez: a cultura se insere aqui) é transformado em mercadoria no processo de produção, não no consumo. É no processo de produção que a cultura se converte em mercadoria e perde sua essência, de maneira que agora seu valor de uso é subordinado ao seu valor de troca. Essa reflexão do ponto de vista da economia é importante para não cairmos no equívoco comum de achar que é possível resolver problemas estruturais do capitalismo a partir da individualidade. Apenas a superação do modo de produção capitalista poderá proporcionar aos seres humanos uma cultura que seja pensada sob o prisma da identificação, da resistência. Inclusive, é preciso apontar que a própria ideia da cultura como elemento de resistência aparece localizada historicamente e se agravando cada vez mais no contexto do capitalismo.

Basta lembrar como foi na cultura que se legitimou muitas vezes processos que eram eminentemente políticos e econômicos. Quando se abandonou a mão de obra indígena para a utilização de mão de obra escrava, por exemplo, a justificativa foi que os indígenas tinham uma “cultura” da preguiça e por isso, trabalhavam pouco. Não se falava que o motivo real dessa opção é que já existia antes um mercado de escravos negros, muito mais rentável que o mercado indígena, inclusive pela existência desse mercado em outros continentes, inclusive a própria África, no qual os líderes tribais vendiam seus escravos de guerra no conflito entre as tribos. No imperialismo do século XIX, a antropologia evolucionista teve um papel essencial ao sustentar teses racistas, considerando por exemplo o darwinismo social e a frenologia, que serviram como justificativa para a missão civilizatória.

Na verdade, esses discursos criados em torno da cultura sobretudo pelos antropólogos evolucionistas serviram para esconder o real interesse imperialista: expandir mercado e mão de obra, escoar a população europeia (que vivia crise de superpopulação) e explorar novas matérias primas. Basta lembrar também como se justificou as antigas políticas de imigração no Brasil como “políticas de embranquecimento da população”, quando na verdade foram uma política para trazer uma mão de obra experiente com as forças produtivas do capitalismo. Trazendo para o Brasil novamente, é possível observar como em obras como Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freire e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, o subdesenvolvimento brasileiro é sempre justificado como consequência de uma suposta cultura deplorável do Brasil. Gilberto Freire escreve um livro inteiro que trata sobre a escravidão no Brasil e é incapaz de falar a respeito do modo de produção do escravismo colonial e como o caráter historicamente dependente da economia brasileira é a verdadeira causa do subdesenvolvimento desse país, já que, como bem evidencia o economista e téorico da dependência André Gunder Frank no seu ensaio “Desenvolvimento do Subdesenvolvimento”, publicado em 1966: “o desenvolvimento do capitalismo brasileiro é o desenvolvimento do subdesenvolvimento”. E não adianta dizer que isso é uma localização de época, porque Manoel Bonfim muito antes de Gilberto Freire foi um crítico do racismo e das relações de “parasitismo” da economia brasileira. Jessé de Souza, respeitado sociólogo weberiano, evidencia em seu livro “A tolice da inteligência brasileira” como a teoria de Sérgio Buarque de Hollanda na tentativa de explicar o subdesenvolvimento brasileiro através da cultura resultou em uma teoria racista e depreciativa da cultura brasileira.

É importante também tratar aqui o conceito de etnocídio, de Pierre Clastres. Nas palavras do próprio Pierre Clastes em seu livro “Ar queologia da Violência”, publicado em 1980:

“Se o termo genocídio remete à idéia de 'raça' e ao desejo de extermínio de uma minorial racial, o termo etnocídio aponta não para a destruição física dos homens, como o genocídio, e sim para a destruição de sua cultura. O etnocídio, portanto, é a destruição sistemática de modos de vida e de pensamento de povos diferentes daquelas que empreendem essa destruição. Em suma, o genocídio assassina os povos em seus corpos e o etnocídio os mata em seu espírito.”

O etnocídio, ao contrário do genocídio, assume a relatividade do “mal” na cultura de maneira que lhe proporciona a “oportunidade” de mudar, assume um caráter de salvação, como se fosse praticado para o bem da vítima. A catequização característica da missão civilizatória é um exemplo histórico de etnocídio muito evidente, inclusive usado por Pierre Clastres no livro supracitado. Clastres trás também a tese de que todas as culturas são etnocêntricas porque a alteridade cultural nunca é vista sob o prisma das diferenças positivas, mas sempre como uma inferioridade do “outro” em relação a “nós”.

Levi Strauss, em “Raça e História” evidencia algo importante: não existem culturas com história estacionária. Ou seja, culturas que permaneceram inatas ao longo do tempo e não tiveram nenhum tipo de contato com outras culturas. O que existem são apenas culturas de história cumulativa, ou seja, culturas que se transformaram e se consolidaram a partir de elementos de outras culturas. As trocas de elementos culturais entre culturas diferentes existem sem necessariamente haver uma relação de imposição cultural. Isso significa que quando falamos de trocas culturais e da transformação de culturas, não é possível afirmar que são as trocas culturais que resultam na perda da essência, da ontologia de uma cultura.

Convém então pensar: o que faz com que o etnocídio seja uma característica forte da sociedade ocidental? Clastres também responde: o problema é o seu sistema econômico, o capitalismo. Segundo o próprio Clastres, a escolha deixada às sociedades cujo modo de produção, cuja cultura era diferente, se traduzia em apenas duas possibilidades: ou ceder à produção ou desaparecer. É da necessidade de expansão de mercado proveniente do modo de produção capitalista que nasce o etnocídio. O Estado burguês aparece então como uma ferramenta para transformar o múltiplo em um se constituindo como uma ferramenta impositiva, seja no imperialismo do século XIX que é etnocida com as culturas africanas para impor seu modo de produção e expandir o mercado, seja no projeto de expansão do Estado brasileiro em territórios indígenas, seja na destruição de um povo para a construção de uma usina, o Estado burguês aparece como esse elemento impositivo. Tendo em vista essa conjuntura, reafirmo: a única solução para o problema da apropriação cultural é a superação do modo de produção capitalista.

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