Zuck dirige o seu Manifesto à comunidade. À sua “comunidade”, obviamente. Teria feito bem maior para o futuro se tivesse se manifestado, de preferência silenciosamente, contra o maldito algoritmo de sua rede social, que, sob o pretexto de “criar comunidade”, na verdade produz bolhas de mesmidade cada vez mais incomunicáveis entre si. Ao contrário do que parece, nossos feed de notícias não são janelas que nos conectam à diversidade do mundo, mas um brete virtual através do qual somos constantemente reconduzidos para onde já estamos e de onde é cada vez mais difícil de escapar: nossos arraigados e preguiçosos hábitos e preferências. Se, como dizia Umberto Eco, a cultura de massa dividiu a humanidade em dois tipos: os Apocalípticos e os Integrados; o Facebook, em vez fazer comunidade com esses dois tipos antagônicos, sistematicamente conecta apocalípticos com apocalípticos e integrados com integrados.
Os ensimesmamentos solipsistas que o algoritmo do Facebook produz lembram as mônadas de Leibniz: unidades simples, autossuficientes e incomunicáveis entre si; microcosmos “sem portas nem janelas” que possuem em si a representação de todo o Universo e da relação entre todas as mônadas; mas que não podem exercer qualquer efeito umas sobre as outras. Só que as “mônadas facebookianas” não têm, cada uma delas, “a” representação do Universo, mas sim a “sua” representação. Se as de Leibniz não precisavam “dialogar” com as demais mônadas porque já compartilhavam com elas uma “ideia” fundamental, as do Facebook, em troca, não dialogam pelo motivo inverso: terem, cada uma, uma ideia completamente diferente. Antes de as “comunidades” monádicas do Facebook não quererem ou não poderem estabelecer comunidade entre si, é o próprio algoritmo da rede que furta delas essa possibilidade.
Mais grave do que “a comunidade facebookiana de Zuck” ser, ela mesma, uma mônada ignorante do que é uma verdadeira comunidade, é o fato de ela produzir tantas mônadas ignorantes em relação às demais quantos são os seus usuários; que, se não se percebem como tais, é porque a ausência de “portas e janelas” com a qual estão envoltos mente que é espécie de aquário, cujas paredes, no entanto, em vez de vidros transparentes, são feitas de espelhos. O Facebook é um mentiroso salão de espelhos, como o do Palácio de Versalhes: espetacular, sofisticado, capaz de repetir o mesmo, infinitamente, mentindo que ali está presente o mundo, mas, diferente do que Zuckquer fazer crer, não forma comunidade.
Em outras palavras, Zuck diz que o desafio do Facebook é criar soluções globais para problemas globais. Certamente falta a ele leituras sociológicas de vanguarda, segundo as quais: “para problemas globais, soluções locais”; ideia defendida por grandes intelectuais, como por exemplo, o recentemente finado Zygmunt Bauman, que em seu popular “Confiança e medo na cidade” esclarece que tentar solucionar um problema com o próprio problema outra coisa não é que duplicá-lo, que problematizá-lo. É como querer solucionar o capitalismo com mais capital; a bebedeira com mais álcool; o fascismo com mais egoísmo. O Bom-senso do velho e sensato sociólogo felizmente sobrevive para dizer a Zuck que, se “há pessoas que sentem que foram deixadas para trás pela globalização” – afirmação do dono do Facebook -, o problema é a globalização; precisamente, o modo como ela se dá; seu conceito que não consegue ser realizado. Ora, uma globalização que no final das contas é excludente sequer merecia esse nome.
No entanto, Zuck enche a boca para falar de “globalização” e “comunidade” enquanto o seu algoritmo, sob os ecrãs que simulam unir todos, produz glocalização (separação) e guetos virtuais que, infelizmente, não tardam em se materializarem na realidade. Exemplo disso é a divisão político-ideológica que tem espaço no Brasil atualmente. A incapacidade de “petralhas” e “coxinhas” estabelecerem diálogo, por exemplo, está muito menos em suas reais diferenças ideológicas do que no subterrâneo distanciamento em relação à alteridade que algoritmos como os do Facebook promovem através das redes sociais. Só que um verdadeiro espaço em comum não é aquele que somente “petralhas”, ou “coxinhas” compartilham entre si, sem a presença do outro. A comunidade de que mais precisamos é uma na qual as grandes diferenças possam compartilhar, e civilizadamente, o mesmo espaço.
Ao contrário da Lei de Coulomb, que, vulgarmente falando, diz que na natureza os opostos se atraem e os iguais se repelem -, a imperiosa “Lei Algorítmica do Facebook” é antinatural a ponto de aproximar iguais e separar opostos. Que universo se constrói com isso? Resposta: nenhum, apenas microcosmos insustentáveis; tão instáveis quanto a aproximação fortuita de duas cargas negativas, ou positivas. Aproximar iguais é duplamente burro. Em primeiro lugar, porque iguais não precisam ser aproximados. Tal aproximação já existe, mesmo que não seja noticiada em um mesmo feed. Em segundo lugar, porque a verdadeira comunidade de que precisa o problemático e excludente mundo globalizado é justamente aquela que possibilitará aos opostos compartilharem um espaço em comum; um locus onde “coxinhas” e “petralhas”, Apocalípticos e Integrados, bem como quaisquer pares de opostos que pudermos listar aqui, possam formar um universo humano.
A metáfora que a Lei de Coulomb e o modelo clássico de átomo têm para ensinar a Zuck é a seguinte: assim como a natureza não precisa aproximar elétrons de mesma carga negativa para que formem uma eletrosfera, nem tampouco prótons de carga positiva para que formem um núcleo, mas, em vez disso, junta elétrons com prótons para assim formar uma estrutura estável chamada átomo, assim também o algoritmo do Facebook não deve aproximar ideologias, gostos e práticas iguais ou demasiadamente similares para formar comunidade – iguais se entediam de si mesmos e se afastam! -, mas, em vez disso, sair do caminho dos opostos para que eles possam se atrair livremente. Quando os opostos não estão impedidos de se atrair, os iguais se organizam em função dessa atração.
Não há porque ter medo de deixar os opostos livres para atraírem-se. Como acontece nos átomos, os opostos elétrons e prótons se atraem mais do qualquer outra coisa, contudo, não se tocam; não se fundem; não querem ser o mesmo. O raio da órbita de um elétron é distância mínima que, tanto o elétron negativo quanto núcleo positivo, precisam para manterem, ambos, as suas alteridades. Sabe-se, também, que quem estabiliza essa atração/repulsão entre as partes negativa e positiva do átomo são os nêutrons, sem os quais os elétron se chocariam com os prótons e adeus átomo. Essa metáfora deve servir de exemplo ao futuro algoritmo do Facebook, que deveria se comportar como o nêutron, nem positivo, nem negativo, e por isso mesmo o cimento universal das “comunidades” atômicas.
O Manifesto de Zuckerberg é “politicamente correto”. Todavia, no sentido mais vil da popular expressão, pois, ou se é apenas e autenticamente político, e assim se constrói civilização; promove-se a realização do melhor para a humanidade; ou, ao contrário, não se é político, mas despótico. O vício condenável da político-corretice é querer fazer reluzir um verniz politico, civilizado, onde, na verdade, há um ato despótico que não tem coragem de assumir. E Zuck, nesse sentido, e sem aspas, é politicamente correto: sob a sua vendável apologia de uma “Comunidade Global” jaz o seu maldito algoritmo guetificador. Como se diz no Brasil: prega moral de cueca. Mas Zuck é um capitalista. E um dos mais bem-sucedidos da atualidade. Seu Manifesto, mutatis mutandis, poderia até fazer as vezes do ausente, porque desnecessário, Manifesto Capitalista. Todavia, ninguém deve esperar que a verdadeira comunidade futura, de que já carecemos presentemente aliás, virá de Manifestos tão distantes daquele que realmente se importou com o comum, qual seja, o Manifesto Comunista.