A verdade, claro, é que os EUA estão simplesmente tentando deter o avanço do Exército Árabe Sírio. Foi portanto mais um 'show de músculos' tipicamente norte-americano. Ou seria, se derrubar um bombardeiro de combate Su-22, de 47 anos, relíquia da velha era soviética, tivesse alguma importância. E derrubar um drone pilotado à distância tampouco tem importância alguma.
Há aí um padrão: nenhuma ação dos EUA até esse momento – ataque falhado contra a base militar síria; ataque à bomba contra uma coluna do Exército Sírio; derrubar um bombardeiro de combate e um drone do Irã – tem qualquer real valor militar. Todas essas ações contudo têm valor de provocação, porque cada vez que acontecem coisas desse tipo, todos os olhos voltam-se para a Rússia, para ver se os russos responderão ou não.
Dessa vez a Rússia sim, respondeu, mas de modo muito ambíguo, que poucos compreenderam corretamente. Dentre outras medidas, os russos anunciaram que, doravante, "qualquer objeto voador, incluídos aeronaves e veículos tripulados à distância, da coalizão internacional [comandada pelos EUA], localizado a oeste do Rio Eufrates, será rastreado pelas forças russas de defesa em solo e no ar, como alvo aéreo". Traduzi e noticiei nos seguintes termos: "Ministério da Defesa da Rússia declara que derrubará qualquer objeto que voe a oeste do Rio Eufrates". Publiquei citação literal em russo, mas não expliquei o motivo pelo qual parafraseei como o fiz, as palavras em russo. Agora é boa ocasião para explicar tudo.
Primeiro, aí vai o exato original em russo:
«В районах выполнения боевых задач российской авиацией в небе Сирии любые воздушные объекты, включая самолёты и беспилотные аппараты международной коалиции, обнаруженные западнее реки Евфрат, будут приниматься на сопровождение российскими наземными и воздушными средствами противовоздушной обороны в качестве воздушных целей»
Tradução literal seria:
"Em áreas das missões de combate da aviação russa nos céus da Síria, qualquer objeto voador, incluindo aeronave ou veículo aéreo tripulado à distância, da coalizão internacional que seja descoberto a oeste do Rio Eufrates, será tomado como alvo aéreo por agentes russos embarcados."
E o que exatamente significa isso, em termos militares técnicos?
Rápida olhada por dentro da cabine de um jato de combate dos EUA
Quando um F/A-18 sobrevoa a Síria, os detectores de emissão a bordo (chamados 'radar warning receivers, RWR [recebedores de alertas do radar]) informam ao piloto o tipo de sinal de radar que a aeronave está detectando. Sobre a Síria, significa que o piloto verá sinais de muitos radares de busca, olhando em todas as direções, tentando mapear completamente o que esteja acontece nos céus sírios. O piloto dos EUA será informado de que certo número de baterias sírias S-300 e russas S-400 varrem os céus e muito provavelmente o estão vendo. Até aí, tudo bem.
Se há zonas de desconflitação ou qualquer tipo de acordo bilateral para alertar cada lado sobre sobrevoos planejados, essas emissões de radar não são importantes. Os radares norte-americanos (plantados em solo, no mar ou no ar) também varrem os céus e também "veem" a aeronave das Forças Aeroespaciais Russas em seus vídeos, e os russos sabem disso. Nesse caso, nem um lado nem o outro ameaça fazer do outro um "alvo aéreo".
Quando é tomada a decisão de tratar um objeto como "alvo aéreo", usa-se um tipo completamente diferente de sinal de radar e um raio de energia muito mais baixa é dirigido ao alvo, o qual então se torna rastreável e é posto sob mira. O piloto, claro, é imediatamente informado disso. Nesse ponto, o piloto fica em posição muito incômoda: ele sabe que está sendo rastreado, mas não tem como saber se algum míssil já foi ou não lançado contra ele.
Dependendo de vários fatores, um Sistema Aéreo Embarcado de Alerta e Controle (ing. Airborne Warning and Control System, AWACS) consegue detectar um míssil disparado, mas detectar pode não bastar, e também pode já ser tarde demais.
Os mísseis disparados de baterias S-300/S-400 são extremamente rápidos, mais de 4.000 mph (c. de 6.000 quilômetros por hora), o que significa que um míssil lançado de uma distância de 190 quilômetros alcançará você em 2 minutos; ou que um míssil lançado a 50 quilômetros de distância o alcançará em 30 segundos. E, para piorar, o S-300 dispõe de um modo especial de radar chamado "rastrear pelo míssil", no qual o radar emite um pulso na direção do alvo, cujo reflexo é recebido não pelo radar-base em solo, mas pelo próprio míssil em rota rápida de aproximação; o míssil então envia sua leitura de volta ao radar-base, que envia as correções de rota de volta ao míssil. Por que isso é péssimo para a aeronave-alvo? Porque não há como saber, pelas emissões, se algum míssil foi lançado e já se aproxima a mais de 5.000 km/h, ou não.
Os S-300 e S-400 têm também outros modos, inclusive o Seeker Aided Ground Guidance (SAGG), com o qual o míssil computa, ele mesmo, uma segunda correção de rota; as duas rotas são comparadas e, sendo o caso, é acionado um modo Home On Jam (HOJ) (o míssil passa a voar na direção do ponto onde os sinais tenham sido misturados (como se a aeronave-alvo tivesse a bordo um 'misturador' de sinais). Há também outros modos disponíveis de radar, como o Ground Aided Inertial (GAI) que guia o míssil para os arredores do alvo, e ali, bem próximo do alvo, o míssil aciona seu próprio radar.
Além disso tudo, há sólido conjunto de provas de que os russos já aperfeiçoaram um complexo datalink system que lhes permite fundir num só todos os sinais que recebem dos seus mísseis, dos sistemas embarcados (combatente, interceptador ou AWACS) e dos radares em terra. Em teoria, isso significa que, se uma aeronave está fora do envelope de voo (alcance) dos mísseis fixos em solo, os sinais recebidos pelos radares em solo podem ser usados para disparar um míssil ar-ar contra a aeronave dos EUA (sabemos que os MiG-31s russos têm capacidade para esse tipo de ação; não vejo por que os Su-30/Su-35 muito mais recentes não teriam). Serviria para complicar ainda mais a consciência situacional do piloto, que um possa estar vindo de, literalmente, qualquer direção. Nesse ponto, a reação lógica seria o piloto informar o comando e cair fora, bem depressa. Claro que, em teoria, ele poderia simplesmente continuar a missão, mas não seria fácil, especialmente se ele suspeita de que os sírios tenham outra defesa aérea móvel, a caminho ou já próximo do alvo dele.
Tentei imaginar: você está voando, em ilegalidade total, sobre território hostil e prepara-se para atacar um alvo, quando, de repente, seu receptador de sinais de radar acorda e avisa que "você tem 30 segundos ou (muito) menos para decidir se há uma bomba de 150 kg voando na sua direção a c. de 6.000 quilômetros por hora), ou se não há". Como você se sentiria, se estivesse lá, naquela cabine? Você continuaria a pensar em executar o ataque planejado?
A estratégia normal dos EUA é obter o que se chama "superioridade/supremacia aérea", suprimindo completamente as defesas aéreas inimigas e assumindo o controle sobre os céus. Se não me engano, a última vez que jatos de combate operados pelos EUA atuaram em espaço aéreo significativamente disputado foi no Vietnã...
Por falar nisso, essas tecnologias não são exclusividade russa; são bem conhecidas no ocidente. Por exemplo, o míssil SAM Patriot dos EUA também usa TVM. O que os russos fizeram foi integrá-los belamente num formidável sistema de defesa aérea.
Resumo: uma vez que a aeronave dos EUA seja "tomada como alvo aéreo", não terá como saber se os sírios ou os russos estão blefando ou se lhe restam poucos segundos de vida. Dito de outro modo, ser "tomado como alvo aéreo" é equivalente a alguém pôr uma pistola na sua cabeça e você que adivinhe se o tiro virá ou não.
Assim sendo, sim: os russos ameaçaram "derrubar".
Agora, rápido exame no lado russo dessa equação
Para compreender por que os russos usaram as palavras "tomar como alvo aéreo", em vez de "derrubaremos", é preciso lembrar que a Rússia ainda é a parte mais fraca aqui. Nada pode ser pior que ameaçar e, na hora, não fazer. Se os russos dizem "derrubaremos" e não conseguem derrubar, teriam feito ameaça vã. Em vez disso, dizem "serão tomados como alvo aéreo", e reservam para eles mesmos a possibilidade de não puxar o gatilho.
Mas, para o piloto da Marinha ou da Força Aérea dos EUA, todas essas considerações são irrelevantes, se seus detectores lhe dizem que já está "pintado" com o raio de um radar marcador de alvos!
Tudo isso considerado, o que os russos fizeram foi feito para enervar muito as tripulações norte-americanas, sem ter de realmente derrubar alguém. Não por coincidência, os norte-americanos imediatamente sumiram da banda ocidental do rio Eufrates, e os australianos já decidiram oficialmente que não mais participarão de missões aéreas.
Nunca será demais repetir que a coisa de que a Rússia menos precisa é de derrubar avião norte-americano na Síria – o que é precisamente o que mais parecem desejar alguns elementos do Pentágono. Não apenas a Rússia é o lado mais fraco desse conflito, mas também porque os russos compreendem as consequências políticas mais amplas do que pode acontecer se tomarem a medida dramática de derrubar um avião dos EUA: será o sonho realizado dos neoconservadores, e a desgraça para o resto da humanidade.
Rápida olhadela do ponto de vista do Neoconservadoristão dos EUA e sua ânsia por uma "guerra morna"
A dinâmica na Síria não é fundamentalmente diferente da dinâmica na Ucrânia: os neoconservadores sabem que fracassaram e não alcançaram seu objetivo básico: controlar toda a Síria. Sabem também que seus vários esquemas financeiros relacionados colapsaram. Por fim, sabem perfeitamente que a derrota deles tem de ser creditada, toda ela, à Rússia, especialmente a Vladimir Putin. Assim sendo, caíram outra vez no Plano B.
O Plano B é quase tão bom quanto o Plano A (controle total), porque o Plano B tem consequências muito mais amplas. O Plano B é também muito simples: disparar enorme crise com a Rússia, mas manter-se sempre um passo antes de guerra total. Idealmente, o Plano B deve girar em torno de uma "reação" "firme" à "agressão" russa e em "defesa" dos "aliados" dos EUA na região. Em termos práticos, significa simplesmente: obrigar os russos a abertamente enviar forças para a Novorrússia, ou obrigar os russos a alguma ação militar contra os EUA ou seus aliados na Síria.
Conseguido isso, é fácil ver que os recentes ataques dos EUA na Síria têm um mínimo objetivo local – assustar ou segurar um pouco a avançada dos sírios – e um grande objetivo global – atrair os russos e forçá-los a usar de força militar contra os EUA ou algum aliado. Vale repetir que o que os neoconservadores realmente desejam é o que tenho chamado de guerra "morna" com a Rússia: uma escalada das tensões para níveis jamais vistos na Guerra Fria, mas sem chegar tampouco à 3ª Guerra Mundial totalmente "quente".
Uma guerra morna conseguiria 'ressuscitar' pelo menos algum fiapo de utilidade para a OTAN (proteger "nossos amigos e aliados europeus" contra a "ameaça russa"), com o que voltaria o dinheiro: os políticos da União Europeia que já não tem vértebras na espinha dorsal, seriam ainda mais dobrados, para posição de subserviência ainda maior, os orçamentos militares subiriam ainda mais, e Trump conseguiria dizer que fez "a América" "grande" outra vez. E, quem sabe, talvez o povo russo *finalmente* se levante contra Putin, sabe-se lá! (Não acontecerá – mas os neoconservadores jamais deixaram de investir nas teorias mais estapafúrdias só por causa de fatores desimportantes como fatos ou lógica).
[NOTA: Percebi também dessa vez, que como sempre que os EUA tentam empurrar a Rússia para algum tipo de reação destemperada, e a Rússia não morde a isca, imediatamente cresce uma onda de comentários que repetem incansavelmente que a Rússia é covarde, que Putin é falso, que está "mancomunado" com EUA ou Israel, que os russos são fracos ou estão "vendidos". Minha impressão é que há aí trabalho de agentes norte-americanos de "operações psicológicas" [ing. US PSYOP operatives], cuja missão é usar as mídias sociais para tentar pressionar o Kremlin com acusações sempre repetidas de fraqueza, de conluio com o inimigo. Dado que não tenho interesse algum em fazer o que essa gente espera de jornalistas e de militantes das redes sociais – repetir o que eles repetem –, descarto sem ler quase toda essa quantidade gigante de lixo.
A estratégia russa funciona?
Para responder, deixem de lado o que os russos fazem ou deixam de fazer imediatamente depois de cada provocação dos norte-americanos. Tomemos posição em patamar mais alto, para examinar o que acontece no médio prazo e no longo prazo. Como no xadrez, nem sempre a estratégia correta é o gambito.
Minha hipótese de trabalho é que, para avaliar se as políticas de Putin são efetivas ou não, para ver se está "vendido" ou "afundado", é preciso, por exemplo, considerar a situação na Síria (ou na Ucrânia, de fato), comparar as coisas como estavam há dois anos e como estão hoje. Ou então, considerar a situação que temos hoje, e reexaminar o quadro que havia há seis meses.
Uma enorme diferença entre a cultura ocidental e o modo como os russos (e também os chineses) consideram a geoestratégia é que os ocidentais consideram qualquer evento sempre no curto prazo e no plano das táticas. Essa é basicamente a principal razão, tomada isoladamente, pela qual Napoleão e Hitler, ambos, foram derrotados na respectiva guerra que cada um fez contra a Rússia: o foco quase exclusivo no curto prazo e na tática. Diferentes nisso, os russos são mestres indiscutíveis na arte da operação (em sentido puramente militar) e, como os chineses, tendem a manter os olhos no horizonte de longo prazo.
Considerem a derrubada, pelos turcos, de um Su-24 russo: não houve quem não criticasse a ausência de reação "forte" de Moscou. E então, seis meses depois – o que se viu? Pois é.
A cultura ocidental moderna é centrada em várias formas de gratificação instantânea, e isso vale também para a geopolítica. Se o outro sujeito faz alguma coisa, líderes ocidentais sempre aparecem com resposta "firme". Gostam de "enviar mensagens" e creem firmemente que fazer alguma coisa, qualquer coisa, mesmo que só simbólica, é melhor que a 'aparência' de não estar fazendo coisa alguma. Porque parecer que não faz qualquer coisa é universalmente interpretado como sinal de fraqueza. Os russos não pensam assim.
Russos absolutamente não dão importância a gratificação instantânea. Só se interessam por uma coisa: vencer. E se, para isso, tiverem de parecer fracos, ok. De um ponto de vista russo, enviar "mensagens" ou fazer gestos ou atos simbólicos (como todos os quatro recentes ataques dos EUA na Síria) não são sinais de força: são sinais de fraqueza. Os russos de modo geral não gostam de usar a força, que veem como inerentemente perigosa. Mas quando a usam, jamais ameaçam ou avisam: agem, de modo imediato e pragmático (não simbólico), escolhendo a ação que mais os aproxime de um objetivo específico.
Conclusão
A reação russa ao mais recente ataque dos EUA na Síria não foi pensada para maximizar a aprovação dos incontáveis estrategistas de sofá e Internet. Foi pensada para maximizar o desconformo da "coalizão" liderada pelos EUA na Síria, ao mesmo tempo em que minimizava os riscos para a Rússia. E precisamente por usar linguagem ambígua, que civis interpretam de um modo, e militares treinados, de outra, os russos introduziram um muito incômodo elemento de imprevisibilidade no planejamento das operações aéreas dos EUA na Síria.
Não que os russos sejam perfeitos, sem faltas e maus hábitos; eles cometem erros (reconhecer a junta ucronazista em Kiev depois do golpe foi provavelmente erro grave); mas é importante diferenciar entre as reais fraquezas dos russos e suas estratégias muito cuidadosamente concebidas e executadas. Não é porque os russos não agem do modo que seus supostos 'apoiadores' ocidentais prefeririam que agissem, que os russos estariam "vendidos", que "piscaram primeiro" ou qualquer dessas tolices. O primeiro passo para compreender como os russos funcionam é parar de esperar que façam o que os norte-americanos fariam.