Recep Tayyip Erdoğan (“Tayyip” no resto deste artigo), Presidente da República da Turquia, estava na mesquita para a oração. Sentiu-se mal, inclinou-se para o lado, deitou-se no chão, desmaiou. Chegaram imediatamente as equipas médica e de segurança, levaram-o numa maca, e trataram-o durante dez minutos.
Até aqui, tudo bem. Tayyip tem 63 anos, e a sua saúde pode às vezes falhar. Mas o que se seguiu foi excepcionalmente simbólico e resume todo o seu legado.
Ele levantou-se, dirigiu-se aos jornalistas, e disse: “Hoje, tivemos uma instabilidade na tensão arterial, causada pelo açúcar. Graças a Alá, recuperámos rapidamente. Neste momento estou em boa condição.”
Não, não vou falar sobre o facto de ele se referir a si próprio na primeira pessoa do plural (e nem isso consistentemente). Não, não vou falar sobre a referência a alá.Pausa um momento para refletir. Foi ele que fez a declaração. Logo a seguir ao tratamento. Não foi o médico. Não foi um dos assistentes. Nem foi um secretário a ler uma pequena nota de imprensa da Presidência.
Foi ele próprio a enquadrar o que este incidente sobre a sua saúde significou, significa, e vai significar a partir de agora. Pensa. Poderias, conseguirias fazer isto? Com 63 anos? Falar com a imprensa, dar a tua cara “saudável”, literalmente 5 minutos depois dum tratamento? Ele tem que…Vejamos porquê e como.
§2. Eleições mucho mucho democráticas: As eleições legislativas em 2002 foram as primeiras em que o AKP ganhou a maioria parlamentar, em que vários partidos do status quo ficaram abaixo do limite eleitoral (10% ao nível nacional para conseguir entrar no parlamento).
§3. Partido Jovem ou Projeto-piloto das purgas: Como um fascista bem treinado, Tayyip atacou primeiro a secção mais isolada da burguesia: GP, o Partido Jovem, cujo líder Cem Uzan tinha, para além de muitos outros meios de produção, o seu próprio canal de televisão e jornal diário.
Logo depois das eleições, o governo de Tayyip lançou uma campanha “anticorrupção”. As casas, ou melhor, as quintas de Uzan foram alvo de rusgas policiais. Tratando-se de um chauvinista populista e um patrão corrupto, nenhuma outra secção da sociedade turca o defendeu na altura. Em 2007, o GP conseguiu apenas 3% dos votos e desapareceu do panorama político política.
§4. Interlúdio [3]: Estado capitalista, quer dizer, o estado que defende os interesses dos capitalistas e mantém o capitalismo. Um governo “democrático” no sentido burguês é aquele que 1) garante um nível aceitável de “paz social” entre o povo e a classe dominante e 2) representa o consenso entre os capitalistas num certo momento. Este segundo é mais ou menos a definição de “democracia burguesa”: os burgueses discutem, negociam e gerem as políticas dum país, de uma forma livre e num estado de direito. Entretanto, é de notar que este consenso pode ser prejudicial a um capitalista singular ou a uma secção da classe capitalista.
Nos momentos de crise económica e/ou política, os conflitos de interesse entre os capitalistas pode pôr em causa a sustentabilidade do próprio sistema capitalista. Nesses momentos, o estado capitalista pode atacar quase todas as secções da classe capitalista, para salvar o capitalismo. Os estados-providência são resultados de períodos deste género. Os fascismos também.
Fascismo é o sistema em que um líder político age pelos interesses duma minoria dentro da classe dominante (e/ou pelo seu interesse próprio), e acabando, com as suas políticas, por resgatar o sistema da crise política. Foi isso que aconteceu na Turquia, onde todos os setores da burguesia celebraram um governo de partido único que podia legislar facilmente, depois de anos de coligações instáveis. Só que um fascista nunca para de atacar os capitalistas.
§5. Paisagem internacional: Os primeiros anos foram animados. Todas as reformas económicas que a UE (impostos alfandegários) e o FMI (privatizações e desregulamentação) impuseram passaram no parlamento. O investimento internacional começou a entrar. A economia começou a crescer. A crise económica mundial deu alguma autonomia a Tayyip nas decisões políticas desde que fossem compatíveis com a lógica dos mercados. E o Partido Jovem desapareceu festivamente. Na altura, ninguém (incluindo eu) compreendeu o que se estava a passar.
§6. Centro-direita: O centro-direita turco nunca mais conseguiu sair da sua crise (particularmente: financeira. Os partidos que não ultrapassaram o limite dos 10% nas últimas eleições não recebem nenhum dinheiro do estado.) Em 2007, o AKP ganhou 47% dos votos e 62% dos deputados.
§7. Ergenekon: No mesmo ano, Tayyip lançou uma nova frente, desta vez contra os republicanos dentro do estado (mas também incluindo vários partidos políticos, e, já agora, jornalistas, ativistas pelos diretos humanos, estudantes, etc., etc., etc.). O procurador-geral literalmente inventou uma organização clandestina, denominada de “Ergenekon”, que estaria a preparar um golpe de estado ou algo do género, por via da escrita de artigos contra as políticas islamistas de Tayyip. Nesta organização fictícia, ligaram-se vários setores da oposição (muitas vezes, setores hostis uns aos outros, como um polícia de contra-guerrilha e um revolucionário que essa mesma polícia tenha torturado.) Em 2011, mais de 500 pessoas estiveram na prisão, sem qualquer acusação (“porque”, disseram, “a polícia está a recolher provas, e estas pessoas podem escondê-las e/ou fugir do país”). A acusação escrita, quando chegou, tinha 10 mil páginas. E como sabem, a acusação tem que ser lida no tribunal.
Este processo todo foi celebrado (pelos liberais na Turquia, e também na UE) como “democratização” do estado turco, em que elementos não-eleitos seriam assim expulsos do poder cívico. E em 2016, quando o estado já tinha sido limpo dos republicanos e seculares, o tribunal declarou que a Ergenekon afinal não existia e que, sendo assim, toda a gente estava ilibada das acusações.
Esta campanha foi posta em prática pelos burocratas da comunidade de Fethullah Gülen [4], na altura um aliado de Tayyip. (Um relatório escrito pelo embaixador dos EUA Eric Edelman, revelado pela Wikileaks, reporta que Gülen tinha 60–80 deputados no parlamento turco.)
§8. Balyoz: Como a Ergenekon não foi suficiente para eliminar toda a oposição a Tayyip nas instituições do estado, em 2010 lançou-se uma outra campanha contra os setores republicanos dentro do exército. A esta, deram o nome de “Balyoz” (marreta), o mesmo nome que deram à suposta organização ligada ao exército que estaria a planear um golpe de estado em 2003 (como foi provado pelos documentos .docx “encontrados” nos computadores dos suspeitos [5]). Em 2012, cerca de 300 pessoas foram condenadas à prisão. Uns ex-generais com 70 ou mais anos de idade na prisão por alguns anos… e em 2015, todos os acusados foram libertados, por falta de provas. Mas já tinham passado 5 anos, o suficiente para substituir as posições de alto nível na hierarquia do exército.
Esta campanha foi posta em prática pelos burocratas da comunidade de Fethullah Gülen, na altura um aliado de Tayyip. (Parece déjà vu? A nós também pareceu na altura.) Voltaremos mais à frente a abordar o que aconteceu a este exército. Mas antes, falemos sobre o movimento curdo.
§9. Curdos: No pico desta ofensiva contra a oposição republicana (que, historicamente, é também nacionalista e portanto anti-curda), em 2013, Tayyip teve uma ideia genial: negociações de paz com o movimento curdo. Na vida real, isto implicou libertar alguns jornalistas e políticos curdos, e fazer um cessar-fogo no Curdistão na Turquia. Politicamente, Tayyip estava a comprar tempo, suspendendo uma das frentes de combate, para canalizar as suas forças (mediáticas, jurídicas e policiais) para os casos de Ergenekon e Balyoz. (Cada um destes casos incluiu um número suficiente de ultra-nacionalistas para alienar os curdos e evitar solidariedades.)
O cessar-fogo foi efetivamente anulado no cerco do Kobane, em que os interesses de Tayyip ficaram em conflito direto com os interesses de… quase toda a gente, excepto o Estado Islâmico, mas principalmente com a revolução de Rojava (Curdistão na Síria).
Mas a última gota de água para Tayyip com os curdos em geral foi nas eleições legislativas de junho 2016, em que o HDP, um partido-aliança entre curdos e socialistas (que inclui dezenas de organizações), escandalosamente, conseguiu 13% dos votos e entrou no parlamento. Isto fez o AKP perder a maioria parlamentar. Então, que se lixe a paz.
Começou o período de terror estatal. Durante 16 meses consecutivos, a cada mês houve uma crise social (fosse um atentado do Estado Islâmico, uma invasão militar das cidades curdas, um golpe-militar, etc.) que matou dezenas de pessoas. Entretanto, repetiram-se as eleições até o resultado bater certo, quer dizer, até dar a maioria ao AKP. Nessa altura já não havia novas frentes contra os nacionalistas e/ou republicanos, por isso dava para atacar os curdos à vontade.
§10. Incómodos causados e estratégia interrompida por Gezi: Este timing de dividir a oposição e atacá-la grupo a grupo, foi parte da estratégia bem planeada de Tayyip. Mas aparentemente (e contra a crença de alguns dirigentes do AKP), ele não é assim tão omnipotente. Isto viu-se claramente na revolta de Gezi no verão de 2013, que cortou todos os planos de Tayyip, trazendo milhões de pessoas à rua: secularistas, democratas, curdos, revolucionários, ambientalistas, social-democratas, sindicalistas, trabalhadores precárias, feministas, comunistas, ativistas LGBT, republicanos, e muitos outros.
Tayyip não tinha nenhuma resposta preparada. O movimento curdo, no meio das negociações de paz, ficou paralisado. Os social-democratas não tiveram a capacidade ideológica para contestar o estado tal como as pessoas normais de Gezi estavam a fazer. Um verdadeiro movimento de base, Gezi mudou os planos de todos. (E continua a confrontar Tayyip em vários frentes, incluindo nas lutas contra os mega-projetos destrutivos e em organizações cidadãs durante as eleições. Mas esse assunto seria um outro artigo.)
§11. Fethullah Gülen: A revolta de Gezi não uniu a esquerda, nem uniu a oposição democrática anti-AKP.
Desuniu, sim, o próprio AKP, explorando as fissuras emergentes na aliança Tayyip-Fethullah. A explosão aconteceu no fim do ano 2013, com o escândalo de corrupção que envolveu vários ministros de Tayyip (e até o próprio filho dele). As rusgas policiais às casas dos ministros foram despachadas pelos procuradores ligados a Fethullah, e efetuadas pela polícia controlada por Fethullah.
Assim abriu-se uma nova frente, desta vez dentro do AKP, entre Tayyip e o resto. Como Fethullah é islamita, Tayyip tentou aliar-se com os secularistas, que não se ligaram muito à ideia. Então começou a fechar os processos de Balyoz (2015) e Ergenekon (2016), numa tentativa de dar sinais de “normalização”. Isto também não resultou, simplesmente porque estes VIPs agora libertados já não detinham os postos-chave dos quais podiam influenciar as instituições. Sabem quem tinha ficado com estes postos? Um ex-aliado de Tayyip, seu nome começado por “Fethul… Já conseguiram adivinhar?
Tayyip, como um fascista bem-treinado, nunca age na defensiva. Por isso, começou a desmantelar os jornais, canais de televisão e empresas ligadas a Fethullah. Os militantes de Fethullah, em pânico, sem preparação suficiente e numa aliança estranha dentro do exército (com alguns carreiristas e as sobras dos republicanos) tentaram um golpe de estado, que falhou monstruosamente: não conseguiram prender nem um ministro.
§12. Referendo: Com este último ato, Tayyip verificou que não tinha nem uma pessoa de confiança à sua volta. Tinha que se tornar Sultão o mais rapidamente possível, não só porque tem grandes ambições, mas também porque só assim pode proteger a sua vida. Sendo assim, durante o estado de emergência na Turquia, foi montado um referendo constitucional para alterar o sistema de governo para um sistema presidencial, um referendo em que ele ganhou porque disse que ganhou.
§13. Voltemos ao dia 25 de junho de 2017, e podemos agora compreender o porquê de ser ele próprio a esclarecer o público sobre a situação da sua saúde. Porque cada palavra é valiosa, e ele não pode deixar que surjam dúvidas sobre ele. Ninguém pode falar por ele.
§14. Tayyip é um fascista bem-treinado. Ele sabe que, depois de tantos crimes contra a humanidade, deixar o poder é igual a morrer. Ele não pode fazer compromissos políticos, nem pode parar de polarizar a sociedade turca e a sua própria organização. Isto deixa-o mais e mais sozinho neste mundo. E esta é a maior fraqueza dele.
[1] O partido islamista SP foi banido pelo tribunal por actividades contra o estado secular (anti-constitucionais na Turquia), em que os líderes do partido (incluindo o próprio Tayyip) discursaram em defesa da sharia. Reabriu como FP. Os partidos curdos têm a tradição de serem banidos pelo tribunal por apoiarem atividades “contra a unidade do estado” (i.e. exigir alguma coisa incompatível com o nacionalismo oficial turco).
[2] 9,54%.
[3] O leitor não precisa de concordar com a terminologia introduzida aqui. Este parágrafo pretende estabelecer o que os termos teóricos usados neste artigo significam.
[4] Uma organização ilegal e internacional, cujo objetivo é um “jihad pacífico” em que o Islão se instala nos países do mundo por meios não-armados, através de educação e infiltração. Entretanto,provavelmente os próprios já estão a questionar esta auto-descrição depois da tentativa de golpe do estado.
[5] A extensão .docx surgiu com o Microsoft Office 2007, introduzido — guess when — em 2007, algum tempo depois de 2003; o que mostra claramente o poder divino dos oficiais do exército turco.