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Diário Liberdade
Quarta, 16 Agosto 2017 11:13 Última modificação em Sexta, 01 Setembro 2017 11:33

Porque a estratégia de Kim Jong-un é implacavelmente racional

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País: Coreia do Norte / Direitos nacionais e imperialismo / Fonte: Vermelho

[Federico Pieraccini] Para observadores dos dois recentes testes de mísseis intercontinentais pela Coreia Popular, fica a impressão de que Pyongyang deseja aumentar ainda mais as tensões na região. Porém, uma análise mais cuidadosa mostra que a República Popular Democrática da Coreia está dando curso a uma estratégia que pode vir a ter sucesso para evitar uma desastrosa guerra na península.

Nas últimas quatro semanas, a Coreia Popular aparentemente já conseguiu completar a segunda fase de sua estratégia contra a Coreia do Sul, Japão e Estados Unidos. Seu programa nuclear parece ter alcançado uma fase importante, com dois testes levados a efeito no início e no final de julho. Ambos os mísseis aparentam ser capazes de atingir o território norte-americano, embora ainda haja dúvidas da capacidade de Pyongyang para miniaturizar uma bomba nuclear a ser montada em seu míssil balístico intercontinental (ICBM).

Portanto, a forma tomada pelo programa nuclear do país assegura uma estratégia de contenção importante contra o Japão e a Coreia do Sul e até, em alguns aspectos, contra os Estados Unidos, o qual permanece como a principal razão do desenvolvimento de ICBMs pela Coreia Popular. Há exemplos repetidos na história recente que demonstram a insensatez de confiar no Ocidente (o destino de Kadafi ainda está fresco em nossas memórias), e sugere, ao invés disso, a sabedoria da construção de um arsenal que represente um alto nível dissuasivo contra a belicosidade dos Estados Unidos.

Não é nenhum mistério que de 2009 até agora, a capacidade nuclear da Coreia Popular cresceu na proporção direta ao nível de desconfiança exibido por Pyongyang em relação ao Ocidente.

Desde 2009, com o encerramento das conversações a seis, Kim Jung-un entendeu que as ameaças contínuas, treinamentos e vendas de armas dos Estados Unidos para o Japão e Coreia do Sul precisavam ser bloqueadas de maneira a preservar os interesses e a soberania da Coreia Popular. Encarando uma capacidade de gastos infinitamente menor que as três nações mencionadas, Pyongyang escolheu uma estratégia bipartida: como medida explícita de contenção, desenvolver um programa de armas nucleares; e, por outro lado, fortaleceu suas forças convencionais, tendo em mente que Seul está à distância de uma pedrada da artilharia norte-coreana.

Esta estratégia bipartida trouxe, em pouco mais que oito anos, um fortalecimento substancial na capacidade da Coreia Popular de resistir às tentativas de violação da sua soberania.

Ao contrário da ideia normalmente vendida pela imprensa ocidental, Pyongyang prometeu não ser o primeiro a usar armas nucleares, reservando-se o direito de usá-las somente como resposta a uma agressão, no mesmo sentido de que um ataque preventivo contra Seul, usando a artilharia tradicional, poderia ser reconhecido como uma agressão intolerável, que levaria Pyongyang a enfrentar uma guerra devastadora.

A determinação de Kim Jong-un em desenvolver contenção tradicional e nuclear simultaneamente acabou resultando no estabelecimento de um equilíbrio de poder que ajuda a inviabilizar a guerra e, assim sendo, contribui para o fortalecimento da segurança de toda a região, ao contrário da crença geral.

A razão pela qual os Estados Unidos continuam a aumentar a tensão com Pyongyang e ameaçam um conflito não é a preocupação pela proteção de seus aliados japoneses e sul-coreanos, como se pode ser levado a pensar. O objetivo central dos Estados Unidos na região nada tem a ver com a preocupação com Kim Jong-un e suas armas nucleares. Em vez disso, ele é orientado por uma preocupação perene com a necessidade de aumentar regionalmente suas forças e, por fim, tentar conter o crescimento da República Popular da China. Poder-se-ia mesmo argumentar que essa estratégia representa um perigo não apenas para toda a região, mas no caso de um confronto entre Washington e Pequim, para o planeta inteiro, dado o arsenal nuclear que possuem China e Estados Unidos.

Nesse sentido, o relacionamento triangular entre China, Coreia Popular e Coreia do Sul toma um aspecto diferente. Como sempre, a cada ação corresponde uma reação. A declaração de que Pequim preferiria se livrar da liderança da Coreia Popular não tem fundamento. O primordial para os políticos chineses é que a ameaça das políticas de contenção dos EUA possa prejudicar o crescimento econômico do país. Esse posicionamento estratégico é bem conhecido em Pyongyang e explica em parte porque a liderança da Coreia Popular continua a tomar atitudes que não são bem aceitas por Pequim.

Do ponto de vista norte-coreano, é vantajoso para Pequim compartilhar fronteiras com a Coreia Popular, que oferece uma liderança amigável, em lugar de hostil. Pyongyang está bem consciente do ônus político, econômico e militar dessa situação, mas a tolera, recebendo os recursos necessários de Pequim para sobreviver e desenvolver o país.

Esse complexo relacionamento leva a Coreia Popular a fazer testes de mísseis na esperança de ganhar mais benefícios. Em primeiro lugar, espera obter uma forte dissuasão regional, e até mesmo global, contra qualquer ataque de surpresa. Em segundo lugar, isso força a Coreia do Sul a responder simetricamente aos testes de mísseis da Coreia Popular, e essa estratégia, colocada em prática pela diplomacia da Coreia Popular, está longe de ser improvisada ou incongruente.

Nos anos recentes, a resposta da Coreia do Sul veio na forma da instalação do sistema THAAD (Terminal High Altitude Area Defense), destinado à interceptação de mísseis. Como muitas vezes explicado, esse sistema é inútil contra os foguetes de Pyongyang, mas representa uma séria ameaça para o arsenal nuclear da China, uma vez que seus poderosos radares são capazes de cobrir grande parte do território chinês, estando também privilegiadamente posicionados para interceptar (ao menos em teoria) uma resposta da China contra um ataque nuclear. Em resumo, o THAAD é uma ameaça mortal para a estratégica chinesa de paridade nuclear.

Cada uma das quatro nações envolvidas na região tem objetivos diferentes. Para os Estados Unidos, há muitas vantagens na instalação do THAAD: aumenta a pressão contra a China; conclui uma venda de armamento, o que é sempre bem vindo pelo complexo industrial-militar; e também dá a impressão geral de que o problema nuclear com a Coreia Popular está sendo tratado de maneira adequada.

A Coreia do Sul, no entanto, se encontra em uma situação delicada. Com a antiga presidente agora presa por corrupção, o novo presidente, Moon Jae-in, deve preferir diálogo em vez da instalação de novas baterias THAAD. Em todo caso, depois do último teste de mísseis ICBM, Moon requereu a instalação de um sistema THAAD adicional na Coreia do Sul, que seria acrescentado aos lançadores já instalados.

Sem opções disponíveis, em particular para conduzir uma negociação diplomática, Seul está seguindo Washington numa espiral de escalação que certamente não trará benefícios para o crescimento econômico da península. Em última análise, enquanto a Coreia do Sul vê um crescimento do número de lançadores THAAD no país, a Coreia Popular está cada vez mais decidida em sua determinação de perseguir uma dissuasão nuclear.

Na realidade, a estratégia de Pyongyang está funcionando: de um lado, estão desenvolvendo um armamento nuclear para desencorajar inimigos externos; por outro lado, estão obrigando a China a adotar uma atitude especialmente hostil em relação à Coreia do Sul por causa da instalação do sistema THAAD. Neste sentido, as numerosas medidas econômicas de Pequim contra Seul podem ser explicadas como resposta à instalação dessas baterias. A China é o principal parceiro econômico da Coreia do Sul, e a limitação de seu comércio e turismo é muito prejudicial para a economia de Seul.

Nos últimos anos, essa tática está sendo usada por Pyongyang e os resultados, além das recentes rusgas econômicas entre a República Popular da China e a Coreia do Sul, levaram, embora indiretamente, ao fim do regime da líder corrupta Park Geun-hye, que sempre foi um fantoche dócil nas mãos dos norte-americanos. A pressão que a Coreia Popular aplica contra as relações bilaterais entre China e Coreia do Sul cresce a cada lançamento de um míssil ICBM, É essa a lógica por trás desses lançamentos de teste.

Pyongyang se sente a vontade para pressionar seu principal aliado, a China, a adotar ações contra Seul para forçá-la a um compromisso de negociação diplomática com Pyongyang sem a presença prepotente de seus aliados norte-americanos, sempre pressionando pela guerra.

O principal problema no relacionamento entre Coreia Popular, do Sul e China é a influência norte-americana e sua necessidade de impedir uma reaproximação entre esses países. Como dito antes, os Estados Unidos necessitam da República Popular Democrática da Coreia para justificar sua presença na região, visando, na realidade, a contenção dos chineses. Pyongyang tem sido isolada e sancionada há quase 50 anos, porém ainda é capaz de assegurar a fronteira sul da China como um amigo protetor ao invés de um inimigo. Essa situação, mais que qualquer sanção que venha das Nações Unidas às quais a República Popular da China possa aderir, garante um relacionamento duradouro entre os países. Pequim está bem consciente do peso do isolamento e do fardo econômico suportado pela Coreia Popular, motivo pelo qual Pequim está aplicando pressão simétrica contra a Coreia do Sul para negociar.

Nessa situação, os Estados Unidos tentam se manter relevantes na disputa regional, enquanto não adquirem a capacidade de influenciar as decisões chinesas que claramente contemplam outras táticas, especificamente o uso de pressão sobre a Coreia do Sul. Em termos militares, Washington não pode iniciar uma confrontação militar com a Coreia Popular. As consequências, além de milhões de mortes, pode levar Seul a cortar totalmente as relações com Washington e pedir um armistício imediato, afastando os Estados Unidos das negociações e expulsando as tropas norte-americanas do seu território. Em última análise, o sul não tem capacidade para influir no processo político do norte enquanto continuarem ao lado dos Estados Unidos em termos belicosos (exercícios conjuntos realmente agressivos). Já a influência que Washington tem sobre Pyongyang é zero, já tendo disparado todos os cartuchos disponíveis em meio século de sanções.

Conclusão

A questão principal é que os Estados Unidos não se podem dar ao luxo de atacar a República Popular Democrática da Coreia. Assim, Pyongyang continuará a desenvolver seu programa de arsenal nuclear, e Pequim continuará apoiando encobertamente o regime, mesmo que oficialmente condene o desenvolvimento desse programa.

Ao mesmo tempo, a Coreia do Sul provavelmente continuará com uma atitude hostil, especialmente no que se refere à instalação de novas baterias THAAD. Mais cedo ou mais tarde, Seul chegará a um ponto de ruptura, como resultado de novas restrições comerciais impostas contra si pela China. No entanto, enquanto Seul for capaz de absorver as sanções chinesas, sua posição pouco mudará.

O que pode levar a uma mudança de maior porte na região são os efeitos econômicos que essas restrições terão. Isso pode fazer com que Seul reconsidere seu papel na região e seu futuro. A liderança em Seul está consciente de três situações que dificilmente mudarão, a saber: Pyongyang jamais atacará primeiro; Pequim continuará a apoiar a Coreia Popular, como maneira de afastar os norte-americanos de suas fronteiras; Washington não é capaz de apresentar soluções, a não ser a criação de um enorme caos e uma piora global da situação econômica da península.

À luz deste cenário, o tempo corre a favor de Pequim e Pyongyang. Eventualmente, a situação econômica pode se tornar insuportável para Seul, levando-a à mesa de negociações, já em uma posição enfraquecida e precária. Pequim e Pyongyang têm um objetivo comum no longo prazo, que é quebrar o vínculo de submissão da Coreia do Sul aos Estados Unidos, liberando Seul dos programas neoconservadores de Washington para conter a China (no mesmo modelo de contenção usado contra a Rússia).

O trabalho coordenado indiretamente entre Pequim e Pyongyang dificilmente será compreendido pelos analistas ocidentais. No entanto, ao examinar todos os aspectos, especialmente no que têm a ver com as relações de causa e efeito, esses movimentos se tornam não apenas compreensíveis, mas até bastante racionais, a partir de uma visão mais ampla da região e seu equilíbrio de poder.

Seul, por outro lado, vê a Coreia Popular oferecendo paz, estabilidade e prosperidade a partir de uma chamada para acordo entre Seul, Pionguiangue e Pequim. Isso poderia, em particular, beneficiar o comércio sul-coreano com a China, recompondo eventualmente a normalidade das relações entre os dois países, com significativos benefícios econômicos.

A outra alternativa é uma aliança com Washington, que só tende a eliminar os benefícios econômicos de uma relação saudável com Pequim. E essa situação pode eventualmente levar a uma guerra envolvendo milhões de mortes, lutada em solo sul-coreano e não nos Estados Unidos. Estes são incapazes de oferecer qualquer outra solução para a Coreia do Sul, tanto no curto quanto no longo prazo. A única coisa que Washington pode oferecer é uma presença fixa no país, juntamente com uma política hostil frente à China, que só produz consequências danosas não desprezíveis para Seul. Por paradoxal que possa parecer, os foguetes de Kim Jong-un representam uma ameaça menor que a presença e parceria norte-americana na região, e na realidade dão a Seul a oportunidade de solucionar a crise na península de uma vez por todas.

Fonte: Jornal GGN, artigo publicado originalmente em Strategic Culture, tradução de Roberto Pires Silveira

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