Do ponto de vista político e ideológico e do ponto de vista de classe constitui uma capitulação que prolonga a verificada no processo da Transição dos anos 70.
O que a oligarquia do Estado espanhol mais teme é que a classe operária volte a descobrir que os representantes políticos de quem lhe destroça diariamente a vida são os mesmos que, disfarçados de patriotas, esmagam os direitos nacionais dos povos. Eles, plenamente conscientes dos seus interesses de classe no conflito de Catalunha, estão a usar a fundo nos meios de comunicação ao seu serviço personagens da esquerda espanhola para tentar impedir que consciência de classe e o direito de autodeterminação se unam, como fizeram na luta contra a Ditadura.
Para isso contam com o – impagável, ou não - apoio de Alberto Garzón, coordenador de IU e de Paco Frutos, ex. secretário-geral do PCE, reeditando o papel de apaga-fogos desempenhado por ambas organizações, desde a Transição, ante situações que dificultaram o controlo por parte das classes dominantes.
Essa função foi perfeitamente identificada nem mais nem menos que por um editorial do ABC que reflectia sobre os perigos de desaparecimento da IU após o seu fracasso eleitoral em 2004. Reconhecia perfeitamente este diário os seus interesses de classe e dizia assim: “A paisagem democrática espanhola oferece historicamente um espaço claro à esquerda do PSOE, onde deve assentar uma formação que reforce a centralidade política da social-democracia e ao mesmo tempo sirva como dique de contenção para as tentações anti-sistema. A IU actuou, desde a sua refundação a partir do velho PCE, como um factor de estabilidade que tomou a seu cargo os diferentes impulsos de esquerda alternativa que se foram configurando a partis da crise do marxismo tradicional, evitando que se produzam tentações escapistas e rupturistas à margem dos limites da democracia. 1.
A obsessão das classes dominantes, desde Franco até agora, é tratar de evitar que a classe operária volte a descobrir a íntima vinculação no Estado espanhol entre a luta contra a exploração e a dos povos pelos seus direitos nacionais. Como sabem os dois personagens auto-qualificados de comunistas, a melhor história do PCE, a anterior à Transição, está repleta de programas e discursos que identificavam o nacionalismo espanhol com tudo o que existe de retrógrado e cavernícola e o progresso com a luta da classe operária pela sua emancipação e pela liberdade dos povos.
Especialmente emblemático é o comício, no Monumental Cinema de Madrid, em que José Díaz, Secretário-Geral do PCE, identificava em 2 de Junho de 1935 entre os 4 pilares básicos que deviam sustentar a futura Frente Popular: A libertação dos povos oprimidos pelo imperialismo espanhol. Que se conceda o direito de regerem livremente os seus destinos a Cataluna, a Euskadi, a Galiza e a quantas nacionalidades estejam oprimidas pelo imperialismo de Espanha.2
Noutra intervenção que tem o expressivo título ¿Quem são os patriotas? o dirigente do PCE afirmava em 9 de Fevereiro de 1936, poucos dias antes de a Frente Popular ganhar as eleições: Queremos que as nacionalidades do nosso país, Catalunha, Euzkadi e Galiza, possam dispor livremente dos sus destinos, ¿por que não? e que tenham relações cordiais e amistosas com toda a Espanha popular. Se elas querem livrar-se do jugo do imperialismo espanhol, representado pelo Poder Central, terão a nossa ajuda. Um povo que oprime outros povos não se pode considerar livre. E nós queremos uma Espanha livre3.
Esta tradição permaneceu intacta durante toda a luta contra a Ditadura até aos longos prolegómenos da Transição. O abandono do Direito de Autodeterminação fez parte da imolação do PCE – e de caminho, do potente movimento operário forjado na luta contra a Ditadura – perante o Regime de 78 que, como estamos vendo, mantinha a herança franquista.
A defesa do direito de autodeterminação dos povos por parte das organizações comunistas não é nem uma excepção, nem uma anomalia. Constitui um dos mais importantes contributos do partido bolchevique, e especialmente de Lénine, para a história política do movimento operário. A sua negação, por parte de quem chama a si próprio dirigente comunista, num Estado atravessado historicamente por reivindicações nacionais, ou se trata de uma ignorância imperdoável ou mais provavelmente de um acto de colaboração de classe.
A primeira afirmação de Lénine, rotunda, inapelável, realizada no seu documento “O direito das nações à sua autodeterminação” (que recomendo vivamente a quem queira conhecer com rigor a posição comunista a esse respeito) é que tal direito não significa outra coisa que não seja o direito de uma colectividade a formar um Estado nacional independiente4. Este reconhecimento por parte dos comunistas requer que exista um povo que o reclame, o qual – evidentemente – é o depositário da decisão sobre a matéria. É inquestionável que na Catalunha há uma parte importante do seu povo que o reclama, e se é ou não maioritária é precisamente o que se tratava de comprovar em 1 de Outubro.
As declarações de Cayo Lara, ex. coordenador geral de IU, negando o direito do povo catalão a decidir o seu futuro “unilateralmente porque forma parte do Estado e o resto dos espanhóis também têm que opinar” são de uma indigência política que provoca vergonha alheia.
Em segundo lugar, o Direito de Autodeterminação é, nem mais nem menos, um direito político democrático, que não exclui nem as relações de exploração no seu seio, nem a hipotética opressão relativamente a outras nações.
O alinhamento de Alberto Garzón com o nunca nomeado nacionalismo espanhol chegou a grande altura, como quando qualificou de “provocação” (¿a quem?) a declaração de independência ou como quando, a partir de “posições comunistas” (?), desqualificava o referendo como “ilegal” ou a DUI por “carecer de valor jurídico”. É tão evidente que essas declarações poderiam ter saído do PP ou do PSOE e é ao mesmo tempo tão incompatível com posições minimamente revolucionariam o apelo ao respeito pela ordem estabelecida que nem sequer me detenho a comentá-las.
Mas quero, isso sim, destacar a sua desqualificação de todo o processo catalão pelo papel nele desempenhado pela burguesia. Primeiro porque ficou mostrado com toda a claridade como a grande burguesia catalã, a do IBEX 35, milita na Brunete do 155, e sobretudo porque, ante uma reivindicação estritamente democrática como esta, que seja ou não hegemonizada pela burguesia não é argumento para que as organizações da classe operária não a apoiem.
Ou seja, que o apoio das organizações comunistas a tal Direito só significa o apoio à nação oprimida, face à nação opressora. Até aí, e nada mais.
Um dos aspectos centrais de toda essa posição política supostamente antinacionalista é a sua negação da existência do nacionalismo espanhol, e tudo isso apesar das duras exibições do mais rançoso da caverna política e dos seus meios de comunicação, que antes os ignoravam e que agora os converteram em heróis.
As palavras de Lénine não deixam lugar a dúvidas: “O significado real de classe da hostilidade liberal ao princípio da autodeterminação política das nações é um, e apenas um: nacional-liberalismo, salvaguarda dos privilégios estatais da burguesia da nação opressora.”5
Situando a análise no concreto da nossa história, é inegável que a classe operária – cuja luta tinha implícita a reivindicação do direito de autodeterminação – chegou à Transição com uma hegemonia clara que lhe permitia para além do mais articular e imprimir o seu cunho no resto dos combates. O facto de que não se tenha produzido a Ruptura mas o grande cambalacho chamado Transição – que contou com a participação decisiva do principal partido da classe operária, o PCE, e que arrastou consigo a lenta mas inexorável demolição da força alcançada e da independência de classe - teve como consequência a aparição em primeiro plano das reivindicações nacionais nas nacionalidades históricas com uma muito débil marca de classe. Por isso, resulta ainda mais apelativo que sejam representantes da organização que fez o maior favor às classes dominantes quem esgrime, precisamente agora, a posição de classe para desacreditar uma reivindicação que, como explicava num recente artigo6, tem a enorme virtude de debilitar a engrenagem da Transição, inimiga tanto da classe operária como dos direitos nacionais dos povos.
Numa situação análoga, a da Irlanda, Marx dá uma brilhante lição de coerência de classe. Como é bem sabido, tanto ele como Engels tinham identificado a classe operária inglesa como a mais avançada, a que era chamada a fazer a primeira revolução operária. Segundo essa análise, a reivindicação democrático-nacional da independência da Irlanda tinha uma importância muito secundaria, porquanto seria resolvida nesse processo. Mas, diz Marx, as coisas ocorreram de forma diferente. A classe operária inglesa caiu sob a influência dos liberais, decapitando-se a ela mesma com uma política liberal. O movimento burguês (assim o define Marx) de libertação da Irlanda, pelo contrário, acentuou-se e adquiriu formas revolucionárias. O sábio Marx corrige a sua posição e diz: ”A classe operária de Inglaterra não poderá libertar-se enquanto a Irlanda não se liberte do jugo inglês. A submissão da Irlanda fortalece e nutre a reacção em Inglaterra”.
Lénine destaca o valor exemplar desta posição de Marx e Engels e indica que é “Uma advertência contra a servil precipitação com que os pequenos burgueses de todos os países, línguas e cores, se apressam a declarar “utópica” a modificação das fronteiras dos Estados criados pelas violências e os privilégios dos proprietários de terras e a burguesia de uma nação”. 7
Finalmente, é preciso diferenciar a política da classe operária e a da burguesia relativamente ao problema nacional, porque de modo algum deve subordinar-se uma à outra.
Para a primeira, o interesse superior a partir do qual se avalia toda reivindicação nacional e toda separação nacional é o da luta de classes, o da unidade da classe operária de todos os países.
Assim, perante posições simplistas que clamam pelo “internacionalismo” para justificar posições que, queiram ou não, fortalecem o nacionalismo mais retrógrado da nação opressora, a unidade e a solidariedade de classe – máxime quando a repressão se intensifica – exige demonstrações práticas. É imprescindível que fique absolutamente claro para o povo da nação oprimida que de nenhuma maneira as organizações políticas da classe operária transigem ou se contagiam com esse nacionalismo espanhol que constitui a pedra angular da ideologia dos vencedores da guerra civil.
A estratégia do nacionalismo espanhol que funde no Regime de 78 o PP e o PSOE foi e é o enfrentamento entre povos, mediante a intoxicação mediática mais tosca e a utilização de referentes da esquerda para os seus interesses. É precisamente em nome do objectivo superior da unidade da classe operária de todos os países, do internacionalismo, que é preciso colocar-se nítida e firmemente ao lado da nação oprimida e do povo reprimido, contra o nacionalismo espanhol.
Em 1902, nos debates do partido bolchevique sobre esse tema que Lénine recupera, dizia-se: “Esta reivindicação, que não é obrigatória para os democratas burgueses, é obrigatória para os social-democratas. Se nos esquecêssemos dela ou se não nos decidíssemos a avançar com ela, temendo ferir os preconceitos nacionais dos nossos compatriotas russos, converter-se-ia nos nossos lábios em mentira odiosa o grito de combate: ¡Proletários de todos os países, uni-vos!
A tradição histórica comunista, a teoria e a prática é clara a esse respeito. Os toscos argumentos esgrimidos por Garzón, Frutos e Lara tentam cobrir as vergonhas de uma esquerda que vendeu a sua essência revolucionaria e a sua coerência de classe na Transição. Os seus dirigentes continuam à procura do efémero lugar ao sol que o poder lhes concede pelos serviços prestados, considerando-os “homens de Estado” então, como agora, convidando-os para as suas tertúlias.
É evidente que por aí não há nenhum caminho. O futuro reclama-nos hoje abrir vias de confluência política entre as organizações dos povos do Estado espanhol que entendemos que a tarefa principal é a luta contra o inimigo comum; esse Regime da Transição apoiado fundamentalmente por PP e PSOE, que começa na Monarquia, continua na Audiência Nacional, no Tribunal Constitucional e em todas as leis repressivas que enchem as prisões de homens e mulheres que aí se encontram por lutar pelos direitos da classe operária e pela liberdade dos povos.
Escrevo este texto pensando e rendendo homenagem a toda a militância comunista que deu a sua vida pela emancipação da sua classe e a liberdade dos povos.
13 de Novembro de 2017