Quando surgiu, o impacto foi tão grande que virou o “Personagem do ano” da revista Time e foi o centro das atenções na cerimônia dos Golden Globe. Os meios de comunicação apresentaram o manifesto como o “anti #metoo” ou a “reação à revolução feminista” que, supomos, estaria representada em Hollywood. Essas descrições pouco ajudam a fortalecer um movimento que, longe do tapete vermelho de Hollywood, precisa debater e definir estratégias para lutar contra a opressão.
O sol que brilha em Hollywood…
É inegável o impacto progressivo que teve a onda #metoo. No contexto da revitalização do movimento de mulheres no mundo aberta por #NiUnaMenos na Argentina, #metoo denunciou os assédios e abusos que proliferam na indústria cultural mais poderosa do mundo.
O alcance vai além da vontade das suas impulsoras, afastadas dos problemas da maioria das mulheres que tem que aguentar o assédio laboral num emprego que não podem abandonar e vêem com receio como essa sociedade, capitalista e patriarcal, fala sobre direitos (para algumas) enquanto encoraja e reproduz os preconceitos que submetem à maioria a inúmeras formas de violência. Trabalhos precários, baixos salários, pobreza, tudo que não aparece nas revistas Hollywoodianas.
Essa não é a primeira vez que #metoo recebe críticas. Quando explodiram os escândalos de Harvey Weinstein e Kevin Spacey, Clara Serra na revista “Contexto” afirmava que a forma na que Hollywood tinha lidado com eles, “não deixa de parecer uma estratégia higienista por parte da indústria que só está preocupada de cauterizar uma feriada pela qual poderiam sangrar milhões de dólares”. Esse elemento coloca a atenção sobre como são “digeridos” ou integrados os reconhecimentos dos meios e da indústria cultural no movimento de mulheres e no feminismo. Se existe uma usina ideológica que sabe como fazer isto sem perder sua hipocrisia essa é Hollywood: inclui mulheres e pessoas LGBT e mantem intactos os valores e imagens patriarcais como a beleza, a juventude e o amor romântico. Sem ir mais longe, até as impulsoras das denuncias contra Weinstein denunciaram a cerimonia dos Golden Globe, na qual nem foram convidadas, como uma farsa.
...Também brilha em Cannes
“Como resultado do caso Weinstein, houve uma consciência legítima da violência sexual contra as mulheres, em especial no local de trabalho, onde alguns homens abusam do seu poder. Ela era necessária. O manifesto assinado por figuras, encabeçadas pela atriz Catherine Deneuve, não questiona nem invalida o fator progressista do #metoo, que desnaturaliza formas de violência contra as mulheres. Mas abre um debate sobre suas possíveis conseqüências (algumas já em movimento)
“Estupro é crime. Mas flertar insistente e toscamente não é crime, nem é uma agressão machista”, é uma das frases mais criticadas. E é verdade que grande parte dos comportamentos alentados pela sociedade patriarcal reproduzem e justificam o sentimento político, econômico e cultural da metade da população por seu gênero. Mas não é segredo que um setor do feminismo propõe o punitivismo como a única via (por sinal impotente) para enfrentar desde a violência mais brutal até os menos graves, mas repudiáveis comportamentos da cultura patriarcal.
Mas essa não é a única voz, em nosso país não são poucas as que se perguntam sobre a via punitivista ou conservadora, de limitação da liberdade sexual ou do aumento da criminalização da sexualidade. Ileana Arduino se pergunta em “Cosecha Roja” sobre o caso do músico argentino Gustavo Cordera, “grande parte do feminismo o que melhor faz é evidenciar o caráter estrutural das violências e exigir transformações radicais, por que se conformaria – perante o caos imperante- com continuar aprofundando a trilha punitivista?”. Logicamente, essa é pergunta não fala sobre a justiça que procura (da forma que decida) a mulher vítima de violência ou abuso mas refere-se às correntes que, sobre essa demanda, montam uma ideologia e uma perspectiva para o movimento. Como geralmente acontece, as perguntas incomodas são as mais interessantes.
“Mas é a característica do conservadorismo tomar emprestado, em nome do chamado bem comum, os argumentos da proteção das mulheres e sua emancipação para vincula as mulheres a um estado de permanente vitimismo”. Parece incomodo em uma sociedade marcada pela violência machista? Sim, mas é um debate necessário quando a revitimização das mulheres é parte de um senso comum generalizado. Especialmente, quando surgem iniciativas como mudar o final da ópera “Carmen” porque seria “inconcebível bater palmas para o assassinato de uma mulher” ou se impulsiona a proibição de obras de arte com nudez de Egon Schiele porque parecem “violentos”.
Essa crítica não é nova. Antes dos Golden Globe, Marina Mariash em LatFem alertava sobre a onda de denuncias: “Nós, Vitorianos? Há algo de desprezível nessa tendência aos protocolos e à proibição atravessada no processo de uma história que pretende se aproximar à liberação do sujeito. A pergunta incômoda: Está se promovendo mais tabus?. Outra boa pergunta, também incômoda quando se multiplicam os assédios no metrô, nos ônibus, nos locais de trabalho e estudo.
Onde não chega o sol.
Uma das conquistas do movimento #NiUnaMenos, antes inclusive do #metoo, é justamente criticar o que parecia “normal”, a violência como parte do “amor”, denunciar o feminicídio como parte da corrente de violências, o impacto da desigualdade ou dar visibilidade à responsabilidade do Estado de manter e legitimar a violência machista. Ao mesmo tempo surgiram debates no interior do feminismo e no movimento de mulheres. Como todo movimento, tem pontos de vistas, perspectivas de classe, práticas e estratégias diferentes. Não é necessário escolher uma lado ou outro.O que nos separa desse “feminismo do espetáculo” é basicamente o mesmo, sua distância com os prolemas do 99% das mulheres, que não ganha nem muitos dólares nem muitos euros e estão pressas a um trabalho de baixos salários mas ainda assim impulsionam ações com seus companheiros de trabalho (como na Greve internacional de Mulheres do 8M em 2017), ou debates, muitas vezes contra os preconceitos e o machismo presente em sindicatos e centros acadêmicos.
Séria inocente não ver que as denuncias em Hollywood pouco questionam a própria estrutura de poder da industria e os valores que ela reproduz. Da mesma forma que seria cego não advertir que as francesas que falam em nome da “liberdade sexual” o fazem apontando ao “extremismo religioso”, que na Europa não significa outra coisa que fala da comunidade das mulheres e pessoas LGBT.
As balas de Hollywood atiram certeiramente contra o assédio sexual, que naturaliza o submetimento sexual das mulheres. No entanto, a mesma industria que se revolta com os casos como os de Spacey, permite que continuem filmando sem maiores problemas pedófilos condenados como Victor Salva (condenado em 1988 por abuso, registrado por ele mesmo) e que seu último filme foi estreado no 28 de dezembro de 2017! Evidentemente, os padrões de moral são muito volúveis.Sem mencionar que em Hollywood é onde convivem mais comodamente o conservadorismo e a coisificação das mulheres.
As balas de Cannes acertam no alvo numa advertência sobre a “onda conservadora” e o impacto regressivo no horizonte da liberação sexual. Mas do mesmo jeito que na costa pacífico, as mulheres que falam não são a maioria das trabalhadoras, pobres, imigrantes (sua liberação não está em debate). Por isso as alertas falam sobre “extremismo religioso”, que estigmatiza à comunidade muçulmana e evitam falar sobre os valores “liberais” da República (imperialista) francesa, que são a verdadeira ameaça contra os direitos da maioria das mulheres, imigrantes e jovens.
Nesse sentido cabe ressaltar que, como aponta Andrea D’atri no La Izquierda Diario, “em uma sociedade como a que a gente vive – onde 8 homens possuem uma riqueza equivalente ao que tem para sobreviver 3,5 bilhões de pessoas -, há algumas denuncias contra a violência patriarcal que permitem que melhorem o valor das ações na Bolsa e outras denuncias que nunca serão ouvidas”.
Na “guerra” que os meios tentam instalar, “Hollywood vs Cannes”, não há outra opção que apontar que ambas estão longe demais da vida da maioria das mulheres. Para nós mulheres, a maioria da maioria trabalhadora, pobre, imigrante, e jovem,o sol delas não brilha com a mesma intensidade. Por isso nossa luta contra a violência machista não está separada da opressão funcional à manutenção da ordem social onde uma minoria vive da exploração da maioria (onde por sua vez, a maioria são mulheres).