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Diário Liberdade
Sábado, 27 Janeiro 2018 17:49 Última modificação em Terça, 13 Fevereiro 2018 00:14

A “nova estratégia” síria dos EUA, uma receita para o desastre sem fim

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País: Síria / Direitos nacionais e imperialismo / Fonte: O Diário

O Secretário de Estado de Trump, Rex Tillerson, enunciou numa universidade a “nova estratégia” dos EUA para a Síria. É igual à “velha estratégia”: agressão militar e ocupação, desprezo pelo direito internacional e pela vida humana, arrogância imperial.

Mas, tratando-se de um destacado membro da actual administração EUA, a intervenção merece igualmente registo pela tosca ignorância e primarismo do discurso.

A maioria dos media que noticiam o discurso que o Secretário de Estado Rex Tillerson proferiu na Hoover Institution em 17 de Janeiro de 2018 apontam meramente que ele disse que os EUA iriam permanecer no futuro na Síria – sem limitação de prazo – e até que o Presidente Bashar al-Assad tenha saído de cena. Ler aqui o discurso na íntegra.

A Reuters até retorce a coisa de tal modo que diz que os EUA estão agora numa posição mais paciente em relação ao derrube de Assad.

Diga-se antes de mais que constitui um significativo sinal da crise ocidental, incluindo a decadência moral e jurídica, que cause pouca surpresa – e nenhuma nos círculos da NATO – que um personagem de topo do país líder do mundo ocidental:

a) nada tenha a deplorar acerca de seja o que for do que até agora foi feito neste conflito ou no contexto mais alargado do Médio Oriente;

b) declare claramente que irá prosseguir aquilo que em termos do direito deve ser qualificado como uma agressão militar estrangeira e uma presença militar no território de um país legitimamente membro da ONU;

c) que (também ali) irá empenhar-se numa mudança de regime e

d) irá adoptar diferentes modelos de auxílio condicionados pela remoção de Assad. Deve recordar-se que se trata de uma das maiores crises humanitárias posteriores a 1945 – ao nível, digamos, de Vietnam, Camboja, Iraque ou Iémen -, todas as quais têm na sua origem principal, e não se trata de coincidência, acções de guerra por parte dos EUA e seus aliados.

Independentemente daquilo que possamos pensar da Síria, isto é nada menos que um ataque em grande escala contra o direito internacional e contra o sistema de normas inserido na Carta da ONU construído em décadas de árduo trabalho, uma fundamental pedra angular da gestão e do desenvolvimento civilizacional do sistema de ordenamento mundial.

Visto em comparação com as outras tentativas de destruição da ONU – que tiveram início nos anos 90 na Bosnia-Herzegovina – isto deveria constituir motivo de profunda preocupação entre as pessoas em qualquer parte verdadeiramente civilizada do mundo.

E não pode ser contrabandeado sob a capa da Responsabilidade de Proteger. Mas provoca efectivamente a pergunta: Não deveria existir uma responsabilidade de Protestar – mesmo por parte daqueles aliados que Tillerson parece tomar como certo que irão todos alinhar na cauda dos EUA (e talvez vão)?

Se existe alguém que possa incutir alguma sensatez nos EUA dos dias de hoje, deverão ser os seus aliados e amigos, predominantemente na NATO e na UE. Mas irão fazê-lo?

Embora tenha tido lugar na Universidade de Stanford – e supondo-se portanto que conteria alguma espécie da análise intelectual-académica decente – a intervenção de Tillerson é, desse ponto de vista, de uma inacreditável indigência.

Embora ele diga que irá apresentar “um amplo contexto histórico e político”, não existe nem amplitude nem história nem contexto no que diz. Efectivamente, poucas palavras adiante, é desta forma que ele expõe o enquadramento para o restante da intervenção:

No decurso de quase 50 anos, o povo sírio tem sofrido sob a ditadura de Hafez al-Assad e de seu filho Bashar al-Assad. A natureza do regime de Assad é maligna, tal como a do seu patrono, o Irão. Promoveu terrorismo de Estado. Apoiou grupos que matam soldados americanos, como a al-Qaeda. Tem apoiado Hezbollah e Hamas. E tem suprimido pela violência a oposição política.

E continua por aí fora nesta toada.

Se é isto a melhor história, contexto e análise do que está por detrás dos conflitos e das razões para toda a violência na Síria que o principal responsável pela política externa dos EUA tem para oferecer, há então duas perguntas que têm de ser feitas: «O que é que existirá de tão terrivelmente deficiente, tacanho e auto-centrado neste campo no meio académico dos EUA? Ou será que o mundo académico é na realidade excelente mas não é de todo ouvido pelos círculos que tomam decisões, e nesse caso por que foi ele fazer este discurso numa universidade? Não sei qual será a resposta, possivelmente alguma combinação das duas questões. Mas enquanto professor de estudos sobre os conflitos e sobre a paz aconselharia qualquer estudante caloiro que escrevesse uma tal peça de história e de análise de conflitos que fosse ler um par de livros e que regressasse com o texto reescrito. Não deixaria um estudante destes passar no exame.

Curiosamente, a transcrição do discurso revela que a audiência não teve qualquer oportunidade de colocar questões ou de ter alguma forma de debate com o orador.

Após a intervenção de Tillerson há apenas uma conversa entre ele e a anterior secretária Condoleezza Rice. É insólito numa universidade, onde o livre debate deveria imperar.

Em segundo lugar, não existe qualquer sinal de que Tillerson tenha uma noção do modo como a sua “estratégia” para a Síria se articula com uma política mais geral envolvendo a região do Médio Oriente no seu conjunto.

Não menciona – poderá dizer-se que por razões compreensíveis – que os EUA têm algumas outras políticas e objectivos para a sua futura presença na Síria, tais como a construção de bases permanentes – numa espécie de corrida por bases com a Rússia - e o apoio a forças curdas no lado sírio da fronteira com a Turquia, a segunda maior potência militar na NATO, que está evidentemente furiosa e que considera essas forças um exército terrorista que está pronta a combater.
Isto apenas empurrará a Turquia para uma amior proximidade com a Rússia e, previsivelmente, a Turquia voltará completamente as costas a Europa e abandonará a NATO.

Claro que todos já vimos isto anteriormente. É sobre bases (como, digamos, Kosovo), sobre controlo de recursos (como, digamos, Iraque), sobre mudança de regime (como, digamos, Saddam Hussein e Muhamar Khadafi) e é sobre a convicção excepcionalista de que o país escolhido por Deus tem um mandato divino para criar a paz imperial EUA em toda a parte – não interessando quantas vezes isto já correu tresloucadamente mal e quantas pessoas inocentes são mortas e feridas no processo.

Ele não menciona também que os EUA sob a administração Trump optou por promover e apoiar a nova parceria fundamentalista islamita-sionista, Arábia Saudita e Israel, apoiada pelos Estados do Golfo, a associar-se agressivamente contra o Irão, que é visto como uma forte ameaça para os EUA, o mundo e a região. Mas que – infelizmente para esse ponto de vista – não o é.

É evidente que esta administração, em tudo o resto totalmente dividida e em conflito interno, está unida em basicamente uma única coisa: odiar o Irão. O Irão é também talvez o único tema em que o Presidente Trump mantém, agora que está na Casa Branca, a mesma opinião que tinha quando estava ainda em campanha.
Mais ainda, a administração Trump não faz mais do que destruir as condições de vida do povo iraniano (e apoiar os sectores de linha dura e corruptos) com as sanções ainda em curso através de mecanismos financeiros. E o manifestar repetidamente percepções disparatadas daquele país, e a permanente ameaça do género “todas as opções estão em aberto.”

Mais tarde ou mais cedo, isto irá também correr demencialmente mal.

Muito pode ser dito acerca do disurso de Tillerson. Se não fosse oriundo da maior potência militar do mundo – embora agora em perda em todas as outras vertentes de poder – ninguém se daria ao trabalho de o ler. Mas deveria! (Ou vê-lo em vídeo, que revela também o carácter ritualista de todo o evento, da apresentação por parte do presidente da Hoover a tudo o que vem a seguir).

Lamentavelmente, o que ele exprime é um prolongado inferno para seres humanos nossos iguais na Síria e – em aberto – problemas para o Irão e para o seu povo.
A sua filosofia de paz-e-estabilidade militar é tão falsa como a coisa mais falsa. Paz significa guerra. Guerra em aberto.

Pode alguma coisa de bom ser dito sobre ela?

Provavelmente, apenas que este tipo de política irá eventualmente tornar-se no famoso prego no caixão do império EUA. Depois disso, tanto a República do EUA como o mundo serão um lugar muito melhor.

Mas não seria tão melhor para todos nós que esse pedaço de história pudesse desenrolar-se de forma pacífica, moral e intelectualmente honesta, em vez da guerra em aberto até ao fim?

Jan Oberg é director da Transnational Foundation for Peace & Future Research em Lund, Suécia.

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