O comunismo é expressão material da formação do proletariado e o desenvolvimento de sua atividade coletiva, e na medida em que avança historicamente esse desenvolvimento, choca-se profundamente contra os pressupostos (exploração do trabalho) e relações materiais da sociedade existente. Um choque que só pode levar ou à manutenção dessas relações através de acirrar as contradições ou ao aniquilamento desses pressupostos, ou seja, ao questionamento da sociedade de cima a baixo, à revolução social.
Mas os objetivos comunistas não se restringem a revolução socialista: essa é uma primeira etapa, decisiva, do processo de emancipação dos trabalhadores, mas esse processo só pode se dar em escala internacional, a partir de uma revolução que começa na esfera nacional, se estende a dimensão internacional e termina na arena mundial. Apenas dessa forma a humanidade pode colocar no seu horizonte, além de destruir o Estado capitalista e as relações de exploração do trabalho - objetivos imediatos da revolução social - almejar também criar condições societais em que se extinga a divisão de classes na sociedade, o Estado sob qualquer forma, o valor, o dinheiro, todas as formas de opressão - desenvolvendo as forças produtivas em abundância, em harmonia com os objetivos da humanidade e da natureza, criando condições para que se libere a humanidade de todas as travas e que possamos realmente alçar como bandeiras da sociedade comunista mundial os dizeres que Karl Marx retoma em 1871, segundo o qual “De cada um segundo suas capacidades, para cada um segundo suas necessidades”.
Tendo isso em vista, o comunismo desenvolveu uma teoria, uma concepção científica e dialética de mundo que oferece ao proletariado um instrumento no sentido de sua emancipação: o marxismo. Está é, portanto, a teoria da revolução proletária, ou seja, uma concepção do mundo, uma crítica da economia política, uma política e uma estratégia socialistas que melhor correspondem a antinomia expressa no seio da sociedade burguesa, entre as forças produtivas e as relações de produção. A rigor, a única concepção teórica que não optou por conciliar o irreconciliável ou se partidarizar pelas visões de mundo funcionais a classe dominante: o marxismo só foi possível a partir do momento em que o proletariado começou a surgir como resposta política à contradição da sociedade capitalista.
As barreiras históricas atuais que o comunismo deve enfrentar, no entanto, são complexas. O enorme paradoxo das últimas décadas, especialmente da etapa reacionária do neoliberalismo internacional, é que vivemos sob uma condição econômica que acirrou as contradições societais (ampliou a escala da desigualdade mundial a um nível que nem os mais ferozes críticos do capital no século XIX poderiam imaginar) ao mesmo tempo que amortizou o movimento real de transformação da sociedade, na medida em que a ofensiva política contra o proletariado encontrou nas armas ideológicas um correspondente igualmente feroz: para além de buscar terminar com termos como “marxismo”, “classe operária” e “revolução”, a classe dominante internacional conseguiu algo mais: tentou converter o “comunismo” em seu contrário, de expressão avassaladora da libertação da massa trabalhadora em um termo que simboliza o totalitarismo, falta de liberdade, a redução do indivíduo, o monolitismo cultural, e mesmo o conservadorismo.
É fácil perceber que transformar o comunismo, maior expressão de liberação das amarradas que prendem a humanidade, nessa imagem política da violência, ódio e barbárie é produto da deformação ocorrida em muitas das experiências dos Estados operários , que o capital financeiro soube utilizar com sua fortíssima força política em âmbito internacional para fazer sua propaganda pró-capitalista e condenar o comunismo em geral, ou seja, ainda que seja absurdo para qualquer um que conheça o mais mínimo da obra de Marx identificar seus escritos com o capitalismo selvagem chinês ou o regime autocrático de Kim Jong-un da Coréia do Norte, a história narrada nos livros, nas telas de TV, nos artigos e vídeos de internet acumulam uma avalanche de ideologia burguesa, que transformam efetivamente o comunismo em seu contrário: a liberdade em cadeia, a emancipação em alienação, a utopia em pesadelo. E toda a geração é empurrada a crer nisso, credo quia absurdum (Creio porque é absurdo), nas palavras de Tertuliano.
Daqui a pergunta: pode a humanidade passar um longo tempo imersa em uma ideologia claramente deslocada da verdade? Dezenas de anos em que o capitalismo consegue se afirmar jorrando letras, frames e lorotas contra as ideias da emancipação dos trabalhadores não confirmariam que o comunismo fracassou? Se tratarmos o comunismo como movimento real, e não como uma hipótese, como pretendeu Alain Badiou , é possível que uma verdade sobre o movimento real, que já tenha surgido na história, permaneça trancafiada por tanto tempo?
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Stephen Hawking escreveu sobre a vida de Galileu Galilei no seu célebre livro de biografias, On the Shoulder of Giants (Sobre os Ombros dos Gigantes) e fez uma belíssima descrição de um dos maiores gênios da ciência, das descobertas que levaram a humanidade a enxergar as belas montanhas da lua pelo telescópio, os primeiros entendimentos sobre movimento pendular e uniformemente acelerado e a dinâmica dos corpos em queda livre – que aperfeiçoou as análises do movimento e os princípios da mecânica.
Como é conhecido, uma das concepções mais marcantes da teoria de Galileu foi a forma com a qual fez uma defesa da teoria heliocêntrica de Copérnico, segundo a qual a terra girava em torno do Sol, em seu livro Diálogo Sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo. E nesse sentido é popular a consequência que o livro teve na vida de Galileu, levando a ser julgado pela Inquisição da Igreja Católica, tendo que fazer um juramento contra sua heresia e abrindo mão de suas teorias, recebendo como punição a prisão perpétua.
Contam os biógrafos que, no entanto, a pena foi comutada em uma primeira prisão domiciliar, mais leve, e Galileu ficaria sob os cuidados do Arcebispo Ascânio Poccolomini; no entanto ao saberem que Galileu estava recebendo “tratamento preferencial” (justamente nesse período ele começa seu último livro, Diálogos Sobre as Duas Novas Ciências), aumentam a punição e enviam o já homem de idade Galileu para nova residência mais afastada, em montanhas próximas a Florença.
Para completar a vida dura de Galileu após o julgamento, precisamente nesse período ele se reaproxima de sua filha, Virginia Celeste, mas essa contrai uma doença e morre pouco tempo depois, em 1634, oito anos antes da morte de Galileu.
Reunindo as últimas forças, ele consegue voltar ao seu último trabalho, Duas Novas, e termina-o em menos de um ano, mas este foi impedido pelo Index da Igreja de ser publicado.
Foi sob circunstâncias extremas como essas que Galileu defendeu sua teoria copernicana, enfrentou a teoria oficial da Igreja, sofreu as consequências da Inquisição e brigou até o final da vida por fazer a humanidade mais que caminhar, saltar para ver mais longe. Seus esforços não foram em vão: Diálogos Sobre Duas Novas Ciências foi considerado por muitos, incluindo Albert Einstein, como a pedra angular da ciência moderna.
Stephen Hawking nesse sentido abriu sua biografia sobre Galileu retomando o que é tido por alguns como um mito , por outros como uma verdade, mas que não deixa de ser um emblema fantástico da vida de Galileu. Conta-se que depois de Galileu fazer seu juramento ajoelhado com as mãos na Bíblia, em que rejeitava a teoria de que a Terra se move ao redor do sol, ele teria resmungado as célebres palavras: Eppur si muove, “no entanto ela se move” – ou seja, Galileu teria renegado baixinho o juramento falso contra a teoria copernicana.
Ainda que é sabido que essa frase apareceu num retrato a óleo de Galileu datado do 1640 e também no relato de Giuseppe Baretti sobre o episódio em 1757 , sem dar demonstrações acabadas de que Galileu teria pronunciado aquela frase, o mais interessante é que ainda que fosse um mito, seria um mito que representaria maravilhosamente a vida e a luta de Galileu pela verdade.
Agora para nós é ainda mais fantástico retomar essa passagem à luz da reflexão sobre nossa época. Eppur si mouve, a frase amplamente comentada na ciência, diz mais do que o movimento da Terra: ela diz também que, embora a classe dominante naquele momento estava disposta a obrigar um gênio da ciência a renegar uma verdade história, embora uma ideologia (no caso da Igreja) das instituições mais fortes politicamente possa prevalecer por dezenas ou centenas de anos à força, contra a verdade que já havia surgido, o que não se pode fazer é impedir o movimento do mundo.
A íntima beleza da frase de Galileu é essa: podem o fazer jurar algo falso, podem impedir que ele falasse a verdade sobre o movimento da terra, mas não puderam impedir o movimento real. Digam que não, vençam momentaneamente a batalha comprada nos livros, “no entanto ela se move”.
Se olharmos para as três décadas neoliberais até a grande crise capitalista de 2008, podemos entender um pouco que a irracionalidade neoliberal tem seus paralelos na história. A chuva de artigos para dizer que havia acabado o socialismo real, o marxismo, a classe trabalhadora, as utopias, em suma, a própria história....o triunfalista discurso burguês de que o capitalismo venceu e o comunismo fracassou não pode esconder duas coisas: que na realidade o próprio sistema capitalista para sobreviver levou a guerras, à miséria e fome em escala de bilhão, a desigualdade incomensurável, a destruição da natureza, a depressão como doença de época, a perda de sentido da humanidade; e de outro lado, que o comunismo, a luta pela emancipação do trabalho, da humanidade, da lógica perversa do sistema em que opera a lei do valor, é uma luta justa, é uma verdade história incontornável.
Puderam comemorar a noite de 30 anos neoliberal, mas não puderam evitar que objetivamente o sistema capitalista contém contradições insuperáveis. Puderam fazer todos seus belos discursos de que a luta de classe e as crises capitalistas acabaram, “no entanto ela se move”, no entanto, o mundo material capitalista foi aprofundando suas contradições até estampar nas capas dos principais jornais do mundo em 2008 novamente o caráter falho do sistema, a “crise do capitalismo”.
Galileu morreu em 1642, mas apenas exatos 350 anos depois a Igreja Católica, a partir do Papa João Paulo II, ratificou a comissão de investigação que confirmava que era equivocada a punição que fizeram à Galileu. Tardou muito para essa instituição reacionária confirmar, mas mesmo ela teve de dizer que Galileu estava certo. Entretanto, sua teoria não dependeu disso e influenciou os maiores gênios a avançarem a humanidade, mesmo durante sua própria vida e nas décadas seguintes a sua morte.
Na nossa época, a etapa onde predominou a qualquer custo o discurso oficial da Inquisição neoliberal morreu com a queda de Lehman Brothers. A burguesia treme perante a ideia que mais e mais, em distintos locais do mundo, a juventude comece a se simpatizar com o socialismo e vai retirando com delicadeza as teias de aranha da teoria oficial neoliberal.
“A revolução morreu. Viva a revolução”, dizia Marx em 1848. “O Comunismo morreu. Viva o comunismo” dizemos nós agora diante da barbárie capitalista.
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De outro ângulo, não bastou que a teoria de Copérnico tivesse surgido na história para vencer: a vida de Galileu Galilei, Giordano Bruno, Johannes Kepler e tantos outros, em sua luta pela ciência, foi fundamental para vencer a batalha.
No caso do comunismo, como “movimento real que anula e supera todas as coisas”, não basta que reconheçamos sua validade objetiva para além das ideologias burguesas, da etapa neoliberal ou da manutenção miserável do sistema capitalista. É preciso um gesto de luta, não só pela ciência, mas pela liberação da humanidade.
E em se tratando de uma luta contra um sistema internacional, é necessário apropriar-se da ciência e arte dessa luta...e principalmente entender que o comunismo não é apenas expressão de antinomias objetivas do capitalismo, mas também é um gesto subjetivo da classe trabalhadora: é preciso compreender e atuar com a estratégia do comunismo se quisermos apontar para o caminho da vitória dos trabalhadores.
Continua...