A China representa assim um dos exemplos do êxito de um sistema fundiário que repousa nos direitos de todos os camponeses no seio da aldeia. Isso corresponde a uma igualdade no acesso à terra e na utilização desta, com um Estado presente in fine enquanto proprietário único e uma distribuição igualitária das terras entre as famílias beneficiárias do usufruto. Estudar a evolução histórica e a situação presente do campesinato chinês exige portanto examinar primeiramente a trajectória deste sistema fundiário fundamentado na supressão da propriedade privada e a sua capacidade de resistir aos ataques que sofre na época actual.
É verdade que nos dias de hoje numerosos camponeses chineses sofrem exploração e injustiça. Mas certas práticas socialistas residuais continuam a subsistir, inclusive a herança das grandes reformas agrárias. Em meados dos anos 1980, a adopção de um crescimento orientado para as exportações provocou fluxos de trabalhadores migrantes das regiões rurais para as cidades – fluxos constituídos sobretudo pelo excedente de força de trabalho das famílias rurais possuidoras de uma pequena parcela, sem expropriação de terras. O sector rural suportou o custo da reprodução social do trabalho e serviu de tampão para absorver nas cidades os riscos sociais provocados pelas reformas pró acumulação de capital. Ele mostrou igualmente sua capacidade de estabilização regulando o mercado de trabalho e reabsorvendo os trabalhadores migrantes desempregados nas cidades durante os períodos de crises.
Alguns entretanto apoiam a linha neoliberal – no exterior do Partido Comunista Chinês, mas também por vezes no interior, nomeadamente na rica região de Shangai – e preconizam uma mercantilização das terras. Sob a pressão de projectos de construção conduzidos por governos locais e orçamentos constrangidos e especuladores imobiliários, a expropriação das terras acelerou-se no decorrer da década de 1990. Cerca de 40 a 50 milhões de camponeses perderam assim suas terras; camponeses sem terra surgiram nos anos 2000, especialmente após a lei de 2003 que modifica a legislação sobre as terras aráveis colectivas e exclui uma nova geração da alocação de terras por redistribuição. Os perigos de tais evoluções são reais e enfraquecem os mecanismos de gestão dos riscos por internalização na comunidade rural, num momento em que 200 milhões de trabalhadores migrantes camponeses vivem na cidade e estão activos no interior da classe operária. Eis porque a propriedade fundiária colectiva em zona rural deve ser vista como a herança mais preciosa da revolução começada em 1949.
O arranque da China apoiou-se amplamente nas transferências de recursos extraídos do sector rural. No momento presente, a opção de ser orientar para a exportação tornou-se um modelo tão dependente e portador de desequilíbrios internos que a China tem de fazer enormes esforços para modificar sua trajectória de desenvolvimento investindo na sociedade rural, a fim de garantir o progresso social e preservar o ambiente. Soluções para promover uma via alternativa poderiam consistir em reactivar e revalorizar o estatuto do campesinato, redescobrir as ideias pioneiras dos movimentos de reconstrução rural e sustentar as experiências de revitalização das regiões rurais actualmente praticada no país, enquanto tentativas renovadas e poderosas, simultaneamente populares e ecológicas, de ultrapassar os aspectos mais destruidores do capitalismo mundial contemporâneo.
Depois de 1949, o novo regime aplicou uma industrialização de tipo soviético, que instala um sistema dual assimétrico em desfavor do campesinato. Entretanto, apesar desta estratégia de industrialização, o campesinato pôde beneficiar-se de reformas agrárias radicais. Se bem que os modos actuais de organização, produção e distribuição agrícolas estejam totalmente penetrados pelos mecanismos de mercado e já não tenham mais grande coisa a ver com aqueles da época maoista, a propriedade fundiária permanece estatal ou colectiva na China – ainda que formas degradadas sejam frequentemente encontradas, por vezes com um controle privado efectivo sobre terras. Mas a persistência da propriedade pública é uma chave que permite distinguir a situação – e o êxito – da China em relação aos outros países que têm uma dimensão continental comparável e pretensamente são "emergentes", tais como a Índia ou o Brasil, ou países regionalmente dominantes (África do Sul), para os quais a questão agrária está longe de ter encontrado condições, mesmo parciais, de solução.
Compreender as especificidades e progressos do campesinato chinês – que constitui a maioria da população – é importante a fim de medir, por oposição, o fracasso geral do capitalismo à escala mundial para resolver os problemas agrários e agrícolas. A deterioração da situação das agriculturas camponesas do mundo na sequência da exacerbação da dimensão alimentar da presente crise sistémica do capitalismo confirmou a incapacidade estrutural deste sistema para ultrapassar as contradições internas que ele gera. Estes problemas – os das famílias camponesas produtoras, os dos consumidores e mesmo os de todos os cidadãos – atingem os limites do suportável, nomeadamente em matéria de protecção do ambiente. No Sul, onde mais da metade dos países perdeu a capacidade de abastecer o seu povo em bens alimentares, onde três mil milhões de pessoas permanecem sub-alimentadas e onde as condições de vida dos camponeses – como nas favelas urbanas super-povoadas pelo êxodo rural – são dramáticas, os problemas ultrapassaram mesmo estes limites e são desumanos, inaceitáveis.
As disfunções que afectam os sectores agrícolas no sistema mundial capitalista são identificáveis através de paradoxos gritantes. Cerca de três mil milhões de pessoas sobre a terra continuam a sofrer fome (em um terço) ou desnutrição (em dois terços), enquanto as produções agrícolas ultrapassam as necessidades alimentares; daí uma super-produção de pelo menos 150%. Uma grande maioria destas pessoas vive em zona rural: os três quartos dos indivíduos que sofrem de sub-alimentação são camponeses. A extensão das áreas de cultivo agrícola no mundo é acompanhada por um declínio das populações camponesas em relação às populações urbanas. Uma parte crescente das terras é cultivada por transnacionais que não direccionam suas produções para o consumo alimentar e sim para destinos industriais ou energéticos mais rentáveis. Na África, um dinamismo das exportações agrícolas decorrentes de culturas comerciais de renda coexiste com o aumento das importações de produtos de base destinados a responder às necessidades alimentares. Obviamente, e com urgência, as coisas devem mudar.
O inimigo comum dos povos do Sul e do Norte é o capital financeiro, cada vez mais bárbaro e destruidor. E em crise. Para os povos em luta, o princípio director é o controle pelas comunidades da gestão das terras e da água enquanto bens comuns, que não devem ser privatizados nem mercantilizados. O que precisa ser buscado prioritariamente é a soberania alimentar – e uma condição para isso é o acesso à terra para todos os camponeses – a qual deve ser considerada como um objectivo para orientar a maior parte das lutas rurais. A reforma agrária visando redistribuir as terras aos camponeses está na ordem do dia na Ásia, África e América Latina.
A soberania alimentar está no cerne das lutas. Para atingi-la, um modo de produção diferente do capitalismo deverá ser praticado. É a própria modernidade que conviria repensar. O acesso à terra e aos recursos necessários à reprodução da vida, enquanto bens comuns, é um direito legítimo para todos os camponeses, para os trabalhadores e as pessoas do povo. Para que a soberania alimentar salvaguarde modos de gestão colectiva será preciso aceitar a presença dos agricultores familiares em qualquer futuro previsível do século XXI. Para resolver estas questões será preciso uma libertação da lógica destruidora do capitalismo. Para modificar as regras de dominação imperialista do comércio internacional, os camponeses, os trabalhadores e os povos do Norte assim como os do Sul deverão unir-se a fim de enfrentar em conjunto o capital financeiro e reconstruir estratégias alternativas para a longa e difícil transição ao comunismo.
Referências
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