Hoje, 200 anos depois, o aspirante a Sultám otomano, Tayyeb Erdogan, está a sujeitar numha mao a cabeça do príncipe herdeiro da Arábia Saudita Mohammed Bin Salman (MBS), e com a outra mantém umha daga abaixo do seu pescoço. Mas, Tranquilos! nom vai matá-lo: hoje, o autor intelectual do magnicídio de Istambul vale mais vivo do que morto.
O presidente turco adotou a estratégia de Sherezade, a contadora persa de histórias da Mil e umha noites: narra, noite após noite, os seus relatos previamente cortados, para tirar vantagens a um assassino, enquanto guarda algum (ou vários) ás na manga.
Erdogan e Milli Istihbarat Teskilati (MIT), a Organizaçom Nacional de Inteligência turca começárom a filtrar os mórbidos pormenores do assassínio do jornalista islamita Jamal Khashoggi, a partir do dia 4 de outubro, ignorando a dor da família, com o único objetivo de tirar o máximo proveito da situaçom, enquanto negociava em segredo com os EUA e Arábia saudita. Polo que, na noite número 999, e apesar de ter prometido ao mundo contar a verdade “em toda o seu crueza” sobre o assassinato, suspendeu a seguinte entrega que ia ser a publicaçom de umha fita de áudio de 11 minutos sobre o crime.
É mais que provável que Ancara tivesse conhecimento sobre o trágico fim de Khashoggi desde o minuto um, e decidisse dosificar a informaçom, e passar à seguinte entrega dependendo da reaçom oficial de Riad e dos resultados de negociaçons que estám a levar a cabo com Khalid Ao Faisal, o emir da Meca designado polo Rei Salman como representante dos sauditas.
Desconhece-se se tal informaçom procedia de algum espiom turco no consulado, da captaçom das conversas de um dos assassinos polas escuitas ao seu telemóvel, ou os microfones instalados dentro e fora do consulado. A partir dali, começa umha engenharia informativa que atribui ao Sultám Erdogan se impor à Alteza Bin Salman: precisamente quando este se distanciava do crime, publicou o video dos sicários, entre os quais se encontrava o assessor pessoal de MBS.
A estratégia turca de “pressom e paciência” funcionou: Os sauditas, após duas semanas de negarem qualquer ligaçom com o desaparecimento de Khashoggi e inclusive culparem a própria Turquia polo seu desaparecimento, admitírom o crime polos seus agentes, enquanto ambos os lados ignoravam o envolvimento de MBS, apesar das inegáveis evidências, como a conversa intercetada de Mohammed com a inteligência saudita nos EUA pola CIA.
Esta “coincidência” cheira a um pacto entre EUA, Turquia e Arábia Saudita, que deixaria escapar Mohammed pola janela agora que Ancara, habilmente, lhe tinha fechado todas as portas. Também chamam a atençom que até hoje Ancara nom expulse os diplomatas sauditas, nem sequer lhes tenha levantado a imunidade, ou que a polícia turca nom entrasse no consulado nos primeiros dias, apesar de ter plena jurisdiçom sobre a sede, presenteando aos sauditas 15 valiosos dias, para elaborar coartadas. Inspecionárom a sede diplomática após Erdogan ter ligado ao rei Salman e pedido educadamente a autorizaçom.
Pois, o malabarista turco, que com este assunto está a viver nos melhores dias do seu mandato, 1) nom quer deteriorar as suas relaçons com a Arábia e os aliados deste, polos seus grandes investimentos na Turquia (sobretodo no setor da construçom), e 2) precisa de Riad para alcançar um acordo sobre a Síria e a partilha das zonas de influência neste país, que agredírom juntos em 2015 utilizando os jihadistas: Há que negociar a partilha do botim sobre as cinzas daquela naçom. Além disso, com a lira polo chao, a economia turca precisa atrair investimentos dos países árabes da regiom. Daí Erdogan louvar a “sinceridade” do rei Salman em “chegar ao fundo da morte de Khashoggi”.
O presidente da Turquia tinha certa amizade com Jamal Khashoggi (sobrinho do traficante de armas Adnan Ao Khashoggi, envolvido no escándalo Irám-Contra, e primo de Dodi ao Fayet), que era de origem turca, e com quem partilhava a ideologia da Irmandade Mussulmana (HM), poderosa organizaçom sunnita que já governa na Turquia e Qatar, e conta com dezenas de milhons de simpatizantes no Egito, Tunísia, Líbano e outros estados "sunnitas".
Razons de umha profunda fenda
Desde a tomada do poder polo partido direitista-islamita da “Justiça e Desenvolvimento”, e sobretodo a partir do desprezo recebido da Uniom Europeia, a Turquia imperialista tenta aumentar a sua influência nos territórios “mussulmanos” do Império Otomano, desafiando a Arábia Saudita. De modo que as relaçons entre ambos estados passárom polas seguintes fases:
Em 2003, e depois da invasom liderada polos EUA do Iraque em 2003, Bush desmantela o governo árabe-sunita do Iraque e substitui-o por outro árabe-xiita e inclui umha autonomia curda no novo Estado, mudando o equilíbrio da regiom em favor do Irám. Riad e Ancara (e Tel Aviv!) decidem unir as suas forças para conter os iranianos.
2011 é o ano do fim da lua de mel entre o casal, polas “Primaveras” do Egito e Tunísia. Riad nom poupa dinheiro para derrotar as forças da IM (apoiadas por Barak Obama), e inclusive patrocina, junto aos Emirados Árabes Unidos (EAU), um golpe um estado militar no Egipto contra o presidente Mohammed Mursi, pertencente à IM. De facto, Erdogan autorizou as atividades dos dissidentes “irmaos-mussulmanos” egípcios no chao da Turquia, onde disponhem até de estaçons de televisom.
Em 2017, as ameaças de um ataque militar da Arábia Saudita e EUA ao Qatar e o embargo do pequeno país aliado de Ancara por mar, terra e ar por ditos países, enfurece tanto a Erdogan que decide instalar umha base militar em Doha, desafiando a hegemonia saudita inclusive nas águas do Golfo Pérsico.
O distanciamiento entre a Turquia e o governo de Trump é aproveitado por Riad, quem “compra” o presidente dos EUA por milhares de milhons de dólares.
Além disso, a Turquia opom-se às políticas sauditas em isolar o Irám e também à sua renúncia a Jerusalém Oriental como a capital de Palestiniana.
“Nom é possível que guardemos silêncio sobre o ocorrido” advertiu Erdogan aos Saud, insinuando-lhes que nom procurassem um “Salvador” na Casa Branca de Washington: ele estará na Casa Branca (Ak Sarayi) de Ancara.
As demandas de Erdogan a EUA e Arábia
O que Turquia pode obter deste drama é de tal magnitude que nom se deve descartar que a própria MIT, apesar de ter conhecimento prévio sobre os planos de MBS, deixasse que acontecesse. A decadência do Egipto, o peso pesado do mundo árabe-mussulmano, e a queda de Arábia Saudita ao fundo dos infernos, é umha grande oportunidade para que Turquia se apresentar se como líder mesurado e moderado do mundo islámico-sunnita. Além disso, com umha “fita” na sua caixa forte, pode apresentar as seguintes condiçons a Washington e Riad para resgatar a Casa Saud (que nom o herdeiro):
- Deixar de apoiar e armar aos curdos da Síria. É possível que Erdogan consiga algum compromisso ao respeito: díasdespues do assassinato de Khashoggi, Turquia libertou ao pastor norte-americano Brunson, encarcerado em 2016, e anunciou umha maior coordinacion com as forças de EUA na Síria.
-Levantar as multas impostas polos EUA à Turquia.
- Levantar as multas económicas ao Qatar pola Arábia e EAU.
- Realizar o julgamento dos criminosos em Turquia, o local do crime, para assim seguir sacando proveito do cadáver do desgraçado Khashoggi. Terá que se apressar, antes de que todos os envolvidos podam vir a perder a vida, como o tenente Meshal Saad al-Bostani, que morreu num “acidente” de tránsito dous dias após regressar ao seu país (nom podia ter este “acidente” no consulado em Berlim!)
Entre estas demandas está ausente pôr fim à guerra que destruiu o Iémen.
A viagem da diretora da CIA, Gina Haspel, a Ancara para ver com o chefe da inteligência turca Hakan Fidan tem como objetivos examinar as provas da Turquia e também fabricar umha coartada comum para impedir a desestabilizaçom da Arábia.
A novela turca sobre os gánguesteres sauditas continuará a emitir-se, fazendo tremer os alicerces do abalado Oriente Próximo.
- Ler a primeira parte da análise de Nazanin Armanian > Caso Khashoggi (I): o jornalista e o “Jack O Estripador”
- Ler a primeira parte da análise de Nazanin Armanian > Caso Khashoggi (III): a CIA, o M16 e a catarizaçom da Arábia Saudita