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Diário Liberdade
Quinta, 30 Junho 2016 11:45

És um escravo assalariado? Destaque

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/ Laboral/Economia / Fonte: SPGB

Por Stefan | Tradução de Alejandro Garcia para o Diário Liberdade

É certo que ter que trabalhar por uma remuneração ou um salário é uma forma moderna de escravatura?

Nós, socialistas, gostamos de referir-nos ao trabalho assalariado como “escravatura assalariada” e chamar aos trabalhadores de “escravos-assalariados”. Os não socialistas talvez assumam que usamos estas expressões como figuras de estilo, para efeitos de retórica. Não, usámo-las literalmente. Estas reflectem a nossa visão da sociedade capitalista.

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Os socialistas usam o termo “escravatura” num sentido lato, para abranger tanto a escravatura tradicional e escravatura assalariada como medidas alternativas de exploração do trabalho. Estamos conscientes das diferenças entre ambas, mas também queremos atrair a atenção para o seu propósito comum. A linguagem capitalista oculta este propósito comum ao equiparar os escravos como propriedade com escravatura e mistura trabalho assalariado com trabalho livre. Os socialistas apenas consideram o trabalho como livre onde os trabalhadores, individualmente ou colectivamente, sejam donos e controlem os meios com os quais trabalham (terra, ferramentas, maquinaria etc.).

Por que foi a escravatura-propriedade abandonada?

A relação entre a escravatura como propriedade e a escravatura assalariada como modos alternativos de exploração é visível nos debates dentro da classe dirigente britânica e norte-americana que levaram à abolição da escravatura como propriedade. Enquanto os abolicionistas religiosos condenavam o escravo-propriedade como um pecado moral, o argumento conclusivo contra a escravatura como propriedade era de que já não era mais o modo mais efectivo de explorar a população trabalhadora. Foi abandonada porque estava a impedir o desenvolvimento económico e especialmente o desenvolvimento industrial — ou seja, a acumulação de capital.


O estatuto legal, social e político dos escravos assalariados é superior ao dos escravos-propriedade. No entanto, quando comparamos a sua posição no processo laboral, vemos que a diferença entre ambos não é substancial. São todos obrigados a obedecer às ordens do patrão que é dono dos meios de produção com os quais trabalham ou quem representa aqueles que são donos destes. Numa pequena empresa o patrão pode passar as suas ordens directamente, enquanto que numa grande empresa as ordens são passadas para baixo através de uma hierarquia empresarial. Mas em todos os casos é o patrão quem, por fim, decide o que produzir e como o produzir. Os produtos do trabalho escravo (propriedade ou assalariado) não lhes pertencem. Nem, de facto, a sua própria actividade.


O local oculto

Uma diferença óbvia entre a escravatura como propriedade e escravatura assalariada é que como escravo-propriedade estás escravizado — completamente sujeito à vontade de outro — em todos os momentos desde que nasces até à morte, em todos os aspectos da tua vida. Como escravo assalariado, estás apenas escravizado naqueles tempos em que a tua força de trabalho está ao dispor do teu empregador. Nos outros momentos, em outros aspectos da tua vida — como consumidor, eleitor, membro de família, talvez jardineiro — desfrutas de uma certa medida de liberdade, respeito e equidade social. Assim, o escravo assalariado tem alguma margem de auto-desenvolvimento e auto-realização que é negada ao escravo-propriedade. Uma margem limitada, para ser mais preciso, porque o escravo assalariado tem que regressar regularmente ao mundo desconfortável do trabalho assalariado, que espalha a sua influencia sobre o resto da vida como uma névoa pestilenta.

Como resultado desta divisão, o capital confronta o trabalhador num estilo esquizofrénico, como Dr. Jekyll e Mr. Hyde de Robert Louis Stevenson. A mesma pessoa a quem o capital diligentemente bajula e corteja como consumidor e eleitor é exposto sem misericórdia ao assédio, ameaças, gritos e insultos no local de trabalho.

Os ideólogos capitalistas focam a esfera “pública” da vida na qual as pessoas são relativamente iguais socialmente e fazem o seu melhor para ignorar o que acontece na esfera “privada” da escravatura assalariada. Assim os economistas analisam a troca de recursos entre “os actores do mercado”, enquanto que os cientistas políticos falam sobre as relações entre o estado e a comunidade de cidadãos imaginária a que chamam “sociedade civil”. Mesmo os programas de televisão para crianças exibem o mesmo viés. Por exemplo, grande parte das personagens humanas em Rua Sésamo ganham a sua vida através de pequenas e familiares empresas (um negócio na esquina da rua, uma loja de pequenos arranjos, um estúdio de dança, uma clínica veterinária etc).

Portanto há um fosso enorme entre a aparência superficial e a realidade profunda. A servidão do trabalhador assalariado não é visível à superfície da sociedade capitalista; para a testemunhar o investigador deve entrar “no local oculto da produção, em cujo limiar se pode ler: “no admittance except on business”” (Marx, Capital).

Quem é o chefe?
Pode ser refutado que os trabalhadores assalariados não sejam escravos porque têm o direito legal de deixar um empregador específico, mesmo que na prática estejam relutantes a usar esse direito por medo de não encontrar outro trabalho.

No entanto, tudo o que isso prova é que o trabalhador assalariado não é escravo de um empregador em particular. De acordo com Marx, o dono do escravo assalariado não é o indivíduo capitalista mas a classe capitalista — “o capital como um todo”. Sim, podes deixar um empregador, mas apenas com a perspectiva de procurar um novo. O que não podes fazer, uma vez que não tens acesso a outros tipos de meios de vida, é escapar do poder dos empregadores como classe — isto é, deixar de ser um escravo assalariado.

É a escravatura assalariada pior?
Alguns têm argumentado — pelo menos na ausência de uma segurança social efectiva “rede de segurança” — que a escravatura assalariada é ainda pior que a escravatura-propriedade. Uma vez que a escravatura-propriedade é propriedade valiosa, o seu dono tem interesse em preservar a sua vida e força, enquanto que o escravo assalariado corre sempre o risco de ser corrido do trabalho e deixado a passar fome.

Na verdade, a severidade com que o escravo-propriedade é tratado depende do valor que este tem. Onde os escravos-propriedade eram abundantes e portanto bastante baratos — como em Saint-Domingue, onde uma rebelião de escravos em 1791 levou à abolição dos escravos-propriedade e à criação do estado de Haiti (C.L.R. James, The Black Jacobins) — eram comummente trabalhados, chicoteados, ou torturados até à morte. A maneira como o escravo assalariado é tratado depende, de forma similar, da disponibilidade de substitutos. Por exemplo, os capitalistas na China não vêem razão por que devem proteger os jovens trabalhadores campesinos nas fábricas de sapatos da exposição aos químicos tóxicos da cola, porque há imensas raparigas adolescentes a chegar das zonas rurais para substituir aqueles que caem doentes para trabalhar (Anita Chan, China's Workers Under Assault: The Explotation of Labor in a Globalizing Economy, M.E. Sharpe 2001).


Formas Intermédias

Como formas alternativas de exploração, a escravatura-propriedade e a escravatura-assalariada não estão separadas pela Grande Muralha da China. Sob condições desfavoráveis para a classe trabalhadora, a escravatura-assalariada pode facilmente degenerar para uma forma intermédia que mais se assemelha à escravatura-propriedade.

É comum para os pobres desesperados em países subdesenvolvidos serem induzidos a assinar contratos de trabalho (que estes, sendo iletrados, não conseguem ler) com mentiras sobre as atrozes condições que os esperam. Quando descobrem a verdade já é demasiado tarde: são, com recurso à força, impedidos de fugir. Tal é o drama de meio milhão ou mais de migrantes haitianos que labutam nas plantações da República Dominicana (ver http://www.batayouvriye.org/English/Positions1/dr.html)

Comparável, mas mais formalizado, era o sistema de trabalho forçado que prevaleceu na América colonial nos séculos XVII e XVIII e que foi gradualmente substituído por escravos-propriedade negros. Em troca por uma passagem pelo Atlântico, os europeus pobres comprometiam-se a servir um mestre por um determinado número de anos (geralmente sete). Alguns sobreviviam à sua servidão temporária, outros não.


Escravatura e violência

A palavra “escravatura” invoca uma imagem de um capataz cruel em uma plantação nas Caraíbas ou no velho Sul dos Estados Unidos, empunhando um chicote sobre as cabeças das suas vítimas indefesas. O látego é correctamente olhado como um símbolo da escravatura-propriedade.

No entanto, também aqui nenhuma Muralha da China separa um modo de exploração do outro. O látego também tem sido usado extensivamente contra trabalhadores forçados e certas categorias de trabalhadores-escravos. Só em 1915, por exemplo, é que passaram uma lei a proibir o chicotear de marinheiros. Mesmo após a lei, um marujo podia ainda ser posto a ferros ou ver as suas rações reduzidas por desobedecer a ordens.

As crianças, nas fábricas de têxteis na Bretanha do século XIX, eram fustigadas com cintos de couro por não trabalharem com suficiente afinco. Na China, a abolição de castigos corporais foi uma das demandas dos mineiros de carvão de Anyuan na greve de 1923. Tal como Anita Chan evidencia no seu livro, é uma prática novamente generalizada em fábricas controladas por capitalistas formosanos e coreanos.

Mesmo em países desenvolvidos, muitas pessoas são abusadas e atormentadas no trabalho, geralmente por uma pessoa que está acima na hierarquia. Algumas são levadas ao suicídio. Muitas sofrem sérios ataques físicos ou sexuais. Em um dos muitos sítios de Internet dedicados a este problema (www.worktrauma.org), encontramos a história de uma contabilista de uma empresa de ferramentas eléctricas cujo director lhe deu um pontapé nas nádegas com tanta força que esta levantou no ar, causando graves lesões nas costas assim como choque. Quando eu estive na Universidade Brown, uma assistente de laboratório foi violada no laboratório pelo seu supervisor. Tais actos de violência contra empregados não são mais sancionados pela lei e acontecem o tempo todo. A vítima, por vezes, consegue receber alguma compensação, mas acusações penais raramente são feitas contra o agressor.

Não se aplica a mim

Se estás afortunadamente bem situado, podes sentir que este argumento não se aplica a ti. O teu chefe, ou director trata-te bem, não sofres insultos ou abusos, estás satisfeito com as tuas condições de trabalho e até o próprio trabalho te pode dar satisfação. Pelo menos tu não és um escravo assalariado.

Ou pelo menos assim o imaginas. Alguns escravos-propriedade — em particular, os servos pessoais dos senhores e das senhoras — também tiveram a boa sorte de serem tratados bem. Mas estes não tinham qualquer garantia de que a boa sorte iria continuar. Podiam ser vendidos ou herdados por um cruel novo dono após a morte, partida para outra terra ou falência do velho dono. Também tu podes, de repente, encontrar um novo chefe ou director detestável. O assunto está fora das tuas mãos, precisamente porque és apenas um escravo-assalariado.

Se és um especialista técnico, um cientista ou analista de um tipo qualquer, até podes dizer: “Que tipo de escravo posso eu ser? Não me dão ordens o tempo todo. Pelo contrário, fui contratado pelo meu conhecimento e esperam que eu pense por mim mesmo, resolva problemas e ofereça sugestões. É verdade que não posso tomar decisões importantes por mim mesmo, mas os meus patrões estão sempre dispostos a me ouvir. E são sempre simpáticos comigo.”

Estás a iludir-te. Eu sei porque estive numa situação similar e iludi-me. Os teus patrões ouvem-te antes de chegarem a uma decisão. Assim que tomam uma decisão esperam que a aceites. Mas vamos supor que por uma vez te esqueces de quem és (que significa que esqueces o teu lugar) e continuas a argumentar contra a decisão que já foi tomada. Estás então pronto para um rude choque!

O que faz a tua ilusão possível é que cresceste habituado a analisar os problemas do ponto de vista do teu empregador. Estás exactamente tão alienado do teu próprio pensamento como o trabalhador da linha de produção está dos seus movimentos físicos. E se um processo que tu pensaste é patenteado, imaginas que a patente te vai pertencer?

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