As greves param mais de 200 centros de emergência em toda a França. Os enfermeiros e profissionais de saúde alertam contra a negligência nos hospitais públicos. Eles não querem interromper os serviços vitais, mas impedir que Emmanuel Macron acabe com eles.
A enfermeira Laurent Gleizes, 47 anos, que trabalha no sistema de hospitais públicos de Nice desde 1994, onde representa a Confederação Geral do Trabalho (CGT), diz que as condições nunca foram tão terríveis devido ao congelamento dos salários, superlotação, e a resistência dos pacientes contra o pessoal. Por isso, diz, entrou em greve na quarta-feira passada (17/06), juntamente com dezenas de colegas em centros de emergência nos quatro hospitais públicos de Nice, unindo-se a milhares de trabalhadores no país (no artigo "A Strike to Keep Us Working" - "Uma greve para nos manter trabalhando", em tradução livre -, do jornalista Cole Stangler, na revista eletrônica Jacobin). "Estamos alertando a administração e o governo para a falta de apoio humano e material necessário para cumprir nossa missão de serviço público". Muitos enfermeiros concordam - não só em Nice, onde cerca de um terço dos 200 funcionários de prontos-socorros do hospital público entraram em greve.
As greves também ocorrem em 203 centros de emergência em toda a França, como mostrou neste final de julho uma contagem do Comitê Coordenador Nacional dos Trabalhadores. É uma parte considerável dos 478 centros de emergência em toda a França. Eles mantêm o serviço funcionando parcialmente pois as chamadas leis de serviço mínimo proíbem a paralização total do atendimento. Por isso muitos dos que se declaram oficialmente “em greve” na verdade param o trabalho por curtos períodos, garantindo que o atendimento não seja interrompido. Outros tiraram licença médica em protesto, enquanto outros ficaram no trabalho, mas demonstram sua solidariedade de diferentes maneiras: indo a manifestações, usando braçadeiras e assinando petições.
A onda de greves nos serviços de saúde cresce desde março, tornando-se uma forte dor de cabeça para Emmanuel Macron. Estas paralizações chamam a atenção para uma das questões políticas fortes na França: a defesa dos serviços públicos atacados como nunca ocorreu.
Há uma percepção generalizada de que a qualidade do atendimento diminuiu nos últimos anos. Em 2000, a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou o sistema de saúde da França como o melhor do mundo, mas estudos recentes reavaliam aquela classificação. Um estudo de 2018 divulgado pela revista "Lancet" mediu o “acesso e a qualidade” dos serviços de saúde e colocou a França em vigésimo lugar, atrás do Canadá e de vizinhos como a Itália e a Espanha. O mais recente relatório anual "Euro Health Consumer Index" apresenta a França em décimo primeiro lugar entre os trinta e cinco na Europa. Este estudo leva em conta os direitos dos pacientes, o tempo de espera, os serviços e a prevenção.
Os grevistas atribuem o declínio da qualidade a uma razão muito simples: falta de dinheiro. Desde 2010, o governo tem procurado controlar os custos fixando a meta anual de crescimento do gasto com saúde em menos de 3%, enquanto crescem num ritmo mais acelerado - cerca de 4% ao ano -, refletindo o envelhecimento da população e o fato de que mais pessoas procuram atendimento. Mas, em vez de aumentar os recursos, o governo apertou os parafusos - forçando os hospitais a ficar com menos recursos e menos funcionários. Juntamente com o restante do funcionalismo público, os funcionários dos hospitais públicos não têm aumentos salariais desde fevereiro de 2017. O salário-base havia sido congelado por seis anos antes disso. Ao mesmo tempo, os funcionários do hospital enfrentam novas técnicas de gerenciamento para lidar com a crise. Agora têm planos de desempenho individualizados com metas específicas.
A tensão é muito palpável no local de trabalho, diz Stéphane Gauberti, líder da CGT que começou como assistente de saúde em Nice em 1993. “Hoje, estamos focados em orçamentos e contabilidade", enquanto naquela época a atenção era o local de trabalho e a visão de saúde pública. "Não nos perguntávamos: Quanto isso vai custar?"
O movimento começou em um hospital de Paris em março. De janeiro a março houve, entre os funcionários do pronto-socorro do Hospital Saint-Antoine, em Paris, oito incidentes que levaram ao protesto - e o pano de fundo foram os longos períodos de espera e a falta de leitos para os pacientes. A greve rapidamente se espalhou para outros centros, e os ativistas criaram um coletivo para melhorar a coordenação: o Inter-Urgences.
Os funcionários dependem dos sindicatos para legalizar as greves, com apoio legal para as faltas ao trabalho. Eles coordenaram demandas e várias ações por meio do coletivo. Suas demandas centrais incluem aumento salarial de 300 euros, contratação de dez mil funcionários e o fim da prática de internação de pacientes em macas - que oorre quando não há leitos disponíveis. Em abril, cerca de 25 hospitais estavam em greve, a maioria em Paris. No início de junho, esse número chegou a 80 em todo o país. Em junho o ministro da Saúde, Agnès Buzyn, anunciou um bônus mensal de 100 euros para trabalhadores de pronto-socorro e prometeu recursos para mais contratações. Mas isso foi pouco. As greves cresceram e alcançaram mais de 130 serviços até o final de junho.
Os trabalhadores em greve também desfrutam da grande simpatia do público. Uma pesquisa da Odoxa no final de junho revelou que nove em cada dez franceses apoiavam a greve. É um apoio maior do que os Coletes Amarelos tinham no pico de seu movimento no final de 2018 ou dos trabalhadores ferroviários na primavera de 2017.
Esta aprovação pública não é uma surpresa para Gleizes. Para ela, trata-se de uma “batalha ideológica para manter um sistema financiado por contribuições sociais, e não apenas um sistema de seguro privado que penaliza as pessoas mais precárias”.
À medida que o movimento avança, uma questão fundamental é se o governo fará novas concessões. Mas não importa o resultado final - é um lembrete de que a ação coletiva está viva na França, mesmo sob Emmanuel Macron. Os sindicatos se preparam para uma dura batalha sobre o aumento proposto pelo governo, neste outono, na idade de aposentadoria. Esta greve pode encorajar e fortalecer a luta contra os ataques à aposentadoria.
(*) Com base no artigo "A Strike to Keep Us Working" ("Uma greve para nos manter trabalhando", em tradução livre), do jornalista Cole Stangler, na revista eletrônica Jacobin.