A greve dos motoristas tem todos os contornos para ser considerada estranha:
1) um grupo profissional que esteve "parado" durante 20 anos, de repente "acorda" e é capaz de fazer greves por tempo indeterminado (como se não precisassem dos salários) e durante um período pré-eleitoral, em que está em julgamento um governo apoiado à esquerda;
2) uma greve que surge mesmo após outra greve por tempo indeterminado – a dos enfermeiros dos blocos operatórios – que afectou apenas hospitais públicos (nos privados não havia blocos operatórios?) e que foi financiada porum fundo de greve pouco transparente, em que, nalguns dias, entravam a cada hora centenas de euros ;
3) um sindicato dos motoristas que nasceu com um dirigente que é advogado, especialista em offshores e até há bem pouco tempo desconhecido do movimento sindical; e
4) em todas as lutas, numa e noutra, com um apoio maciço das suas centenas de profissionais, capaz de ter efeitos generalizados sobretudo sobre a população e capaz de desestabilizar um país, tudo cheirando a demasiada organização,com traços semelhantes a outras manobras que já se viram noutros países, como no Chile em 1973, visando derrubar o governo legítimo do socialista Salvador Allende.
Por isso, primeiro, sente-se o seu embaraço. Em geral, os jornalistas andaram ao colo com os novos "sindicatos independentes" – que eram genuínos e renovados –, desvalorizando o velho papel sindical, sobretudo dos sindicatos "afectos" (não são capazes de usar a palavra filiados ) a uma central sindical, a CGTP. Mas agora parecem assustar-se. Hoje de manhã, o pivot da SIC designou-os como os sindicatos "ditos independentes" e em crónicas várias quase que se pede o regresso dos "civilizados" sindicatos "afectos" ao PCP. E não foram precisos muitos meses.
Antes, sentia-se que estavam a favor das lutas desses sindicatos independentes – talvez porque atingiam o Governo socialista. Antes da greve, um outro pivotda SIC, noutra emissão, quase trucidou em entrevista o representante da ANTRAM. Agora, aceitam a requisição civil que, claramente, dá força a um dos lados do conflito e põe em causa o direito à greve, mesmo que respaldado num parecer do conselho consultivo da Procuradoria-Geral da República, favorável à ideia da requisição preventiva, coisa que não existe no ordenamento jurídico .
No programa Praça Públic a desta manhã, na SIC, os dois jornalistas em estúdio questionavam-se sobre a quem mais favorecia esta luta. E dizia um deles:"Ao Governo: já não se fala de mais nada senão na greve. Nem se fala dos hospitais, nem dos fogos...". Veja-se bem: eles a queixarem-se de que os jornalistas não se preocupam com mais nada senão com a luta dos motoristas, porque aquilo com que se deviam preocupar era apenas... com a ruptura dos hospitais e com os fogos!
Segundo , os jornalistas não conseguem entender uma luta por jornadas de trabalho de 8 horas ou uma greve a trabalho extraordinário porque, eles próprios jornalistas, acham que isso faz parte de uma reivindicação do tempo da Revolução Industrial. Todos recebem subsídios de isenção de horário e aceitam que otrabalho seja "o que for preciso fazer". Mesmo que isso corresponda ao trabalho de duas pessoas!
Nas entrevistas aos membros do Governo, raramente ou nunca os jornalistas lhes perguntam como é possível que a Autoridade das Condições de Trabalho (ACT) não tenha – durante 20 anos – fiscalizado e posto na ordem um sector com jornadas de trabalho como as dos motoristas! A jornada de trabalho é tão adulterada que a própria requisição civil fortalece a greve em curso, ao impor um horário de 7 horas – que é o dos funcionários públicos –, que fura os próprios "serviços mínimos", estimados – pelo Governo – com base em jornadas de trabalho mais alargadas, porque verificadas no período homólogo!! Numa entrevista recente no programa 360, Ana Lourenço fez essa pergunta ao ministro Vieira da Silva e sentiu-se o seu embaraço.
Terceiro, em geral os jornalistas não entendem que um sindicato use a sua vantagem negocial de fechar a torneira do único combustível que move esta sociedade, ou de conter as exportações ou de parar o fluxo turístico (como foi o caso nos anos 90 dos pilotos da TAP cuja greve levou um ministro socialista a criticá-la em conferência de imprensa...). Na verdade, os trabalhadores são isso mesmo: o sangue de um sistema que o pode fazer parar quando tomam consciência disso.
Conviria que, na luta, se prejudicasse antes o lado patronal – não a população – e, neste caso concreto, não servir para justificar uma subida artificial dos preços dos combustíveis. Mas se essa é a sua força, por que não parar por causa de um acordo a três anos? " Não, isso é incompreensível ".
Quarto, os jornalistas não entendem o papel do Estado numa sociedade. Acham que se trata de "um assunto entre privados". No entanto, desde 1976 que assistem – sem protestar – a um PS que adoptou como seus, progressiva e inexoravelmente, os mecanismos legais laborais que o FMI e a direita sustentamcomo eficazes, mas que degradaram as condições de vida desse sangue do sistema, atacaram o papel dos sindicatos, sem ter trazido ganhos relevantes na competitividade externa.
O patronato e o Governo queixam-se de que os sindicatos estão a forçar uma negociação com "uma espada sobre a cabeça". Mas nem o patronato nem o Governo nem o próprio ministro Vieira da Silva nem o ministro dos Negócios Estrangeiros (que surge agora a querer alargar a requisição civil a todo o país) se lembraram disso quando, desde 2006, o fizeram para o lado dos trabalhadores, ao terem aprofundado as condições impostas pelo Código de Trabalho de 2003, desestabilizando ainda mais a negociação colectiva, hoje ainda mal refeita desse trambolhão tão bem aproveitado pela troica e o Governo PSD/CDS (2011/2015).
Os dois jornalistas à conversa no estúdio da SIC apenas julgavam: "Para haver a paz, tem de haver um cessar-fogo" ; "E que achas de dizerem querer parar por três meses?", questionava o pivot, "Eu não posso!" ; "o Governo não pode interferir e obrigar os privados a sentar-se", mas ao mesmo tempo defendia-se: "É preciso encontrar outros protagonistas que estes já não se entendem ". Face aos telefonemas dos espectadores que falavam dos imansna caixa de velocidade para não registar a duração da jornada de trabalho (!) e se questionavam por que não actuava a ACT, os jornalistas continuaram a falar do mesmo, sem ater-se ao problema dos horários de trabalho: "Também há pequenas e médias empresas no sector que não podem pagar..." !
Veja-se o programa e questione-se sobre em que mundo vivem os jornalistas. E pense-se por que razão, de repente, o mundo lhes parece ter caído sobre a cabeça.