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Diário Liberdade
Quarta, 27 Julho 2016 00:05 Última modificação em Sexta, 29 Julho 2016 12:05

Turquia: Nada mais feroz do que um sultão desprezado

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País: Turquia / Institucional / Fonte: Resistir

[Pepe Escobar] Deus aparentemente utiliza o Face Time. Foi através daquele vídeo icónico do iPhone, a partir de uma localização desconhecida e mostrado na CNN turca por uma apresentadora estupefacta, que Erdogan conseguiu apelar à sua legião de seguidores para que tomassem as ruas, desencadeassem o Poder Popular e derrotassem a facção militar que havia capturado a TV estatal e proclamado estar no comando.

Assim, Deus trabalha por misteriosos meios móveis. O telefonema de Erdogan foi correspondido mesmo por jovens turcos que haviam protestado furiosamente contra ele no Gezi Park; que foram gaseados ou atingidos por canhões de água pela sua polícia; que pensavam ser repulsivo o partido governante AKP; mas que o apoiou contra um "golpe militar fascista". Sem mencionar que virtualmente toda mesquita da Turquia transmitiu o apelo de Erdogan.

A versão oficial de Ancara é que o golpe foi perpetrado por uma pequena facção militar controlada à distância pelo clérigo Fethullah Gulen , exilado na Pennsylvania e um activo da CIA. Em que medida ele é responsável é discutível, o que é claro é que o golpe foi um relançamento turco de Os três patetas. Os patetas reais podem de facto ter sido o já detido comandante do 2º Exército, gen. Adem Huduti, o comandante do 3º Exército, Erdal Ozturk; e o antigo chefe da Aeronáutica Akin Ozturk.

Como antigos operacionais da CIA, super-excitados, estavam a trombetear em redes estado-unidenses – e eles sabem alguma coisa acerca de mudanças de regime – a regra número um num golpe é mirar e isolar a cabeça da cobra. Mas, neste caso, a ardilosa cobra turca não estava em parte alguma que se pudesse ver. Sem mencionar que nenhum general de topo que soasse a convictamente patriota foi à rede da TRT estatal a fim de explicar cabalmente as razões para o golpe.

O amor (de Erdogan) está no ar

Os que tramaram o golpe miraram os serviços de inteligência – cujas posições principais estão no aeroporto de Istambul, no palácio presidencial em Ancara e em ministérios das proximidades. Eles utilizaram helicópteros Cobra – com pilotos treinados nos EUA – contra estes alvos. Eles também miraram o alto comando do exército – o qual durante os últimos oito anos é designado por Erdogan e não tem a confiança de muitos oficiais de média graduação.

Quando eles ocuparam as pontes no Bósforo, em Istambul, pareciam estar em conexão com a polícia militar – a qual está espalhada por toda a Turquia e tem um sólido espírito de corpo. Mas no fim eles não tinham a quantidade [de gente] – e a preparação necessária. Todos os ministérios chave pareciam estar a comunicar-se entre si próprios enquanto a trama se desenvolvia, bem como os serviços de inteligência. E na medida em que a polícia turca como um todo é afectada, ela agora é uma espécie de guarda pretoriana do AKP.

Enquanto isso, o Gulfstream 4 de Erdogan, número de voo TK8456, decolou do aeroporto de Bodrum às 01h43 da manhã e voou durante horas sobre o noroeste da Turquia com o seu transponder [1] ligado, sem ser perturbado. Foi do avião presidencial, enquanto ainda em terra, que Erdogan falou no Face Time e, a seguir, no ar, conseguiu controlar o contra-golpe. O avião nunca deixou o espaço aéreo turco – e esteve totalmente visível para radares civis e militares. Os F-16 dos que tramaram o golpe poderiam tê-lo facilmente rastreado e/ou incinerado. Ao invés disso enviaram helicópteros militares para bombardear a moradia presidencial em Bodrum muito tempo depois de ele ter deixado o edifício.

A cabeça da cobra deve ter estado 100% segura de que entrar no seu avião e permanecer no espaço aéreo turco era tão seguro como comer uma baklava [2] . O que é ainda mais surpreendente é que o Gulfstream conseguiu aterrar em Istambul em segurança absoluta nas primeiras horas da manhã de sábado – apesar da noção predominante de que o aeroporto estava ocupado pelos "rebeldes".

Em Ancara, os "rebeldes" utilizaram uma divisão mecanizada e dois comandos. Em torno de Istambul havia todo um exército; o 3º comando está realmente integrado com forças de reacção rápida da NATO. Eles forneceram os [tanques] Leopard posicionados em pontos-chave de Istambul – os quais, a propósito, não dispararam.

E além disso os dois exércitos chave posicionados na fronteira síria e na iraniana permaneceram no modo "esperar e ver". E então, às 02h00 da manhã, o comando do 7º exército, também chave, baseado em Diyarbakir – encarregado de combater as guerrilhas do PKK – proclamou sua lealdade a Erdogan. E este foi o momento exacto, crucial, em que o primeiro-ministro Binali Yildirim anunciou uma zona de interdição de voo sobre Ancara.

Isso significava que Erdogan controlava os céus. E o jogo estava acabado. A história move-se por caminhos misteriosos. A zona de interdição de voo durante tanto tempo sonhada por Erdogan para Aleppo ou a fronteira sírio-turca no fim concretizou-se sobre a sua própria capital.

Recolha dos suspeitos habituais

A posição dos EUA foi extremamente ambígua desde o princípio. Quando o golpe foi desencadeado, a embaixada americana na Turquia chamou-o "levantamento turco". O secretário de Estado John Kerry, em Moscovo a discutir a Síria, também equilibrou as suas apostas (hedged his bets). A NATO esteve realmente muda. Só quando ficou claro que o golpe fora de facto esmagado é que o presidente Obama e os "aliados da NATO" proclamaram oficialmente seu "apoio ao governo democraticamente eleito".

O sultão retornou ao jogo com uma vingança. Ele imediatamente falou à CNN turca pedindo a Washington a entrega de Gulen, mesmo sem qualquer evidência de ele ter sido o cérebro do golpe. E isso veio com uma ameaça implícita: "Se querem manter o acesso à base aérea de Incirlik terão de entregar-me o Gulen". Não é difícil recordar a história recente – quando em 2001 o regime Cheney pediu ao Taliban a entrega de Osama bin Laden aos EUA sem apresentar prova de que fora responsável pelo 11/Set.

Assim, a possibilidade de o número um franzir as sobrancelhas é de considerar. Os serviços de inteligência de Erdogan sabiam que fermentava um golpe e o ardiloso sultão deixou-o acontecer sabendo que fracassaria pois os conspiradores tinham apoio muito limitado. Ele também provavelmente sabia – antecipadamente – que mesmo o Partido Democrático do Povo ( HDP ), pró curdo, cujos membros Erdogan tenta expulsar do parlamento, apoiariam o governo em nome da democracia.

Dois factos extras aumentam a credibilidade desta hipótese. No princípio da semana passada Erdogan assinou uma lei dando aos soldados imunidade quanto a processos por tomarem parte em operações de segurança interna – como naquelas anti-PKK. Isso esclarece a melhoria de relações entre o AKP governamental e o exército. E a seguir corpo judicial de topo da Turquia, HSYK, despediu nada menos que 1.745 juízes após uma reunião extraordinária após o golpe. Isto só pode significar que a lista estava mais do que pronta antecipadamente.

A grande consequência geopolitica imediata pós golpe é que Erdogan agora parece ter reconquistado miraculosamente sua "profundidade estratégica" – como o antigo primeiro-ministro Davutoglu, marginalizado, teria feito. Não só externamente – após o colapso miserável das suas "políticas" tanto do Médio Oriente como curda – mas também internamente. Para todas as finalidades práticas, agora Erdogan controla o executivo, o legislativo e o judiciário – e não está a fazer prisioneiros a fim de expurgar os militares para sempre. Senhoras e senhores, o sultão está em sua casa.

Isto significa que o projecto neo-otomano ainda está em curso – mas agora sob reorientação táctica maciça. O "inimigo" real agora são os curdos sírios – não a Rússia e Israel (e nem o ISIS/ISIL/Daesh; mas eles nunca estiveram em primeiro lugar). Erdogan está a perseguir o YPG, o qual para ele é uma mera extensão do PKK. Sua ordem do dia é impedir por todos os meios uma entidade estatal autónoma no nordeste da Síria – um "Curdistão" estabelecido como um segundo Israel apoiado pelos EUA. Para isso ele precisa alguma espécie de entendimento cordial com Damasco – como insistir em que a Síria deve preservar sua integridade territorial. E isso também significa, naturalmente, diálogo renovado com a Rússia.

O que é que a CIA está a tramar?

Não é preciso dizer que agora Ancara e Washington estão numa reconhecida rota de colisão. Se há uma mão oculta do Império do caos neste golpe – ainda não há fumo da arma – ela certamente vem do eixo neocon/CIA, não dos incapazes da administração Obama. No momento, o poder de Erdogan só põe em causa o acesso a Incirlik. Mas a sua paranóia está a inchar. Para ele, Washington é duplamente suspeito porque eles abrigam Gulen e apoiam o YPG.

Nada mais feroz do que um sultão desprezado. Por todas as suas recentes loucuras geopolíticas, o ballet simultâneo de Erdogan ao conectar-se novamente com Israel e Rússia é eminentemente pragmático. Ele sabe que precisa da Rússia para o Turkish Stream e para construir centrais nucleares; e ele precisa do gás israelense para consolidar o papel da Turquia como uma chave nas encruzilhadas Leste-Oeste da energia.

Quando sabemos, decisivamente, que o Irão apoiou a "corajosa defesa da democracia" da Turquia, como tweetado pelo ministro dos Estrangeiros, Zarif, fica claro como Erdogan, numa questão de poucas semanas, reconfigurou todo o quadro regional. E isso explica a integração euro-asiática a conexão profunda da Turquia à Nova Estrada da Seda – não à NATO. Não é de admirar que a Beltway [3] – para a qual, predominantemente, Erdogan é o proverbial "aliado errático e inconfiável" – esteja fora de si. Aquele sonho de coronéis turcos sob ordens directas da CIA está acabado – pelo menos no futuro previsível.

E quanto à Europa? Yildirim já disse que a Turquia pode reinstaurar a pena de morte – a ser aplicada aos que tramaram o golpe. Isto significa, essencialmente, adeus à UE. E adeus à aprovação do Parlamento Europeu a viagens livres de vistos para turcos visitarem a Europa. Erdogan, afinal de contas, já obteve o que queria da chanceler Merkel: aqueles 6 mil milhões de euros para conter a crise de refugiados que desencadeada basicamente por ele próprio. Merkel arriscou tudo o que tinha com Erdogan. Agora ela está a falar sozinha – enquanto o sultão é capaz ligar a Deus no Face Time.
17/Julho/2016

[1] Transponder: dispositivo para a localização e identificação de aviões
[2] Baklava: doce típico oriental
[3] Beltway: O governo federal dos EUA, a política e os lobbies que circundam Washington.

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