Esse pequeno artigo busca jogar alguma luz sobre a relação nessa questão específica entre o pensamento e concepção de Hegel sobre essa problemática e sua crítica e superação por Marx, a partir de sua visão materialista e dialética da questão. Um breve resgate histórico dos debates dentro do idealismo alemão que precedeu Marx será necessário para realizar tal empreitada. A exposição do pensamento dos filósofos que precederam Hegel, portanto, será sumamente esquemática, apenas para tornar mais claro o contexto em que está inserido o pensamento do filósofo prussiano.
Os debates teórico/filosóficos muitas vezes são negligenciados no campo da esquerda, vistos como algo supérfluo, desnecessário. Grande equívoco. As classes subalternas quando se colocam a fazer história de forma consciente tendem a querer apreender todos os debates, tomar como suas todas as conquistas do pensamento. Se não fazemos nós esses debates serão os setores conservadores e reacionários, com maiores meios de produção e difusão de ideologia, que ocuparão esse espaço e darão respostas aos questionamentos que se colocam, com uma perspectiva de manutenção das relações opressivas e exploratórias, certamente. Então é chave que nos coloquemos a debater essas questões como forma de disputa de hegemonia ideológica. E não só, a compreensão teórica profunda realidade, mesmo muitas vezes de seus aspectos aparentemente menos imediatamente práticos é essencial para a atuação transformadora, pois como já dizia um grande revolucionário russo “sem teoria revolucionária não há prática revolucionária”.
Resgatemos, portanto, nessa nova etapa que se abre, essa tradição que foi tão cara à esquerda e deve voltar a sê-lo.
O “giro copernicano” de Kant, marco inicial do idealismo filosófico moderno na Alemanha
A publicação da obra de Emanuel Kant “Crítica da Razão Pura’’ é marco fundamental do idealismo alemão e de toda filosofia moderna. Acordado do “sono dogmático” (segundo sua expressão) pela leitura do filósofo empirista inglês David Hume Kant rompe com o paradigma anterior presenta na filosofia e coloca o sujeito do conhecimento como centro da reflexão filosófica. A reflexão filosófica deixa de ter como centro o pensamento sobre a realidade e passa a questionar principalmente as possibilidades do sujeito do conhecimento de apreender essa realidade que lhe é exterior.
O filósofo de Konigsberg, assim, tem como um dos temas centrais de sua grande obra o questionamento de quais são os elementos que permitem e dão base para a compreensão da realidade e a experiência.
A realidade e o mundo exterior são entendidos como ‘’coisa em si’’, incognoscível em última instância, sendo passível de conhecimento para o ser humano apenas o fenômeno, a interpretação subjetiva dessa ‘’coisa-em-si’’ pelo sujeito do conhecimento. Mas como é possível essa interpretação subjetiva da realidade, da coisa em si, como ela se torna fenômeno, apreensão subjetiva da realidade exterior? Como são possíveis juízos sintéticos a priori, não só juízos analíticos, ou seja, como é possível que das múltiplas induções que fazemos seja possível que façamos deduções (um dos problemas centrais colocados por Hume, e ao qual Kant busca dar uma resposta)?
A resposta de Kant será que a possibilidade de o sujeito do conhecimento apreender a realidade, sempre de forma muito limitada e parcial, apenas como fenômeno, a “coisa em si” sendo inerentemente incognoscível, se dá a partir das categorias do entendimento que existem de forma imanente no ser humano, no “sujeito transcendental”.
Assim, essas categorias do entendimento são a base para a possibilidade do conhecimento, são elementos fundamentais que possibilitam o conhecimento dos fenômenos. As categorias do pensamento são inerentes ao ser humano, parte de uma a-histórica essência que Kant atribui ao homem.
O grande problema filosófico que se colocará a partir da obra de Kant é que em seu pensamento a tal “coisa em si” aparece como algo totalmente supérfluo, desnecessário, posto que totalmente incognoscível, para além de qualquer possibilidade de apreensão e conhecimento. Entre essa fantástica “coisa em si” e as categorias de pensamento, o “sujeito transcendental”, não existe qualquer mediação ou relação.
Outro problema chave do pensamento kantiano é a a-historicidade das categorias de pensamento através das quais o ser humano apreende e conhece a realidade. Parte de um “sujeito transcendental” que se sobrepõe a cada um dos indivíduos particulares que compõe o gênero humano essas categorias são parte de uma natureza humana aparentemente anterior e exterior a história.
Kant reflete no campo da filosofia um dos elementos chave do pensamento burguês do século XVIII, as robinsonadas, como Marx as chama, ou seja, a visão de que as formas de ser, pensar, sentir, do indivíduo burguês moderno são não fruto e resultado da história, mas seus pressupostos. Enquanto os economistas e pensadores sociais do século XVIII viam no ser humano pré-histórico o caçador e pescador isolados que por meio de uma decisão entrava em relação de troca, ou indivíduos isolados que a partir de um determinado momento contraiam um “contrato social” o filosofo de Konigsberg, na mais atrasada e idealista Alemanha, fazia das formas e categorias do pensamento moderno não resultado histórico mas formas inerentes e imanentes do pensamento. A tentativa de superar essas contradições do pensamento filosófico de Kant, tanto a relação entre fenômeno e a coisa em si incognoscível quanto inserir na história as formas de entendimento humano sobre a realidade, serão peças fundamentais para entender o desenvolvimento filosófico do idealismo alemão e sua crítica materialista.
Fichte, supressão da “coisa-em-si” e idealismo subjetivo
Uma ironia do desenvolvimento do idealismo alemão em seu período clássico, de Kant a Hegel, será que cada um de seus grandes representantes em um primeiro momento se verá como compartilhando parte do pensamento e discípulo de seu predecessor, como estando aprofundando aspectos de sua filosofia, quando na verdade o que está ocorrendo é uma efetiva ruptura, uma superação do antigo e criação de uma nova corrente filosófica.
Será esse aspecto que irá permitir a Hegel entender o desenvolvimento da filosofia alemã (e posteriormente o desenvolvimento de todo pensamento) como processo dialético com leis próprias, em que o próprio pensamento que se desenvolve é sujeito, que como tese, antítese e síntese, ou afirmação, negação e negação da negação, chega a um momento de cada vez maior autoconsciência.
Será essa a relação de Johann Gottlieb Fichte com a filosofia de Emanuel Kant. Buscando superar aspectos que vê como limitados na filosofia kantiana e romper com esses limites, mas ainda dentro dos marcos do pensamento de seu predecessor, na verdade Fichte está rompendo com Kant e propondo uma nova forma de filosofar, de apreender e conhecer a realidade.
O grande limite do pensamento kantiano para Fichte é sua incognoscível “coisa-em-si” que ele vê como uma execrância desnecessária, como uma concessão de Kant a metafísica e ao materialismo, que naquele momento exercia forte influência sobre o pensamento filosófico francês.
Assim, a tarefa que se proporá Fichte é eliminar do pensamento filosófico esse apêndice desnecessário, esse último elemento que julga metafísico, a incognoscível “coisa-em-si”; impossível de ser acessada pelos sentidos e pela experiência, transcendente em relação a qualquer relação concreta com os seres humanos a “coisa-em-si” seria uma partícula metafísica no pensamento kantiano, em seu idealismo crítico, pois como na antiga metafísica é algo acessível apenas ao pensamento puro, um ideal como o motor imóvel aristotélico.
A realidade, nesse sentido, é sempre para-si, sempre fenômeno, sempre a realidade tal como percebida e vivida pelos seres-humanos reais, não existindo nenhuma essência anterior que seja base para essa percepção, uma realidade em si que estaria para além e transcenderia a vivencia subjetiva, para-si, dessa realidade.
O mundo é portanto, dentro do pensamento fichteano, construção subjetiva do Eu que se exterioriza e se desenvolve nessa exteriorização. O subjetivismo extremado e uma pressão ao solipsismo serão os principais limites do pensamento de Fichte.
Schelling, idealismo objetivo onde “todos os gatos são pardos”
Entender as contradições do desenvolvimento da filosofia clássica alemã é entender que suas disputas e conflitos são reflexo ideal das disputas e conflitos sociais europeus e suas expressões na mais atrasada Alemanha. Fruto desse maior atraso social, político, econômico, os alemães, ao não poderem resolver suas contradições no mundo concreto, posto faltarem as forças e premissas objetivas e sujeitos sociais necessários, os “resolviam” de forma ideal, no plano do puro pensamento. Essa incapacidade prática e seu reflexo no pensamento são os verdadeiros motores do desenvolvimento do idealismo alemão clássico.
A filosofia de Fichte, apesar de seu subjetivismo, inclusive por conta disso, é expressão da década revolucionária francesa após a revolução em 1789 e da esperança de que fosse possível algo análogo na Alemanha. Schelling começa seu filosofar numa relação com a filosofia de Fichte análoga a que esse teve com a filosofia kantiana; buscando superar seu subjetivismo e uma possível interpretação solipsista, vendo no desenvolvimento da subjetividade não o processo do Eu, mas do espírito, Schelling se vê num primeiro momento completando e desenvolvendo a filosofia fichteana, quando na verdade está rompendo com o idealismo subjetivo do primeiro para colocar os primeiros elementos de um idealismo objetivo.
O próprio processo de esclarecimento da ruptura entre Fichte e Schelling é ajudado pela intervenção de Hegel, em seu artigo “Sobre as diferenças das filosofias da natureza de Fichte e Schelling”, escrito quando Hegel ainda compartilhava vários dos pressupostos do pensamento de seu predecessor.
A ruptura de Schelling com o subjetivismo de Fichte, no entanto, se dá a partir da concepção de uma relação entre subjetividade e espírito irracionalista. O filósofo marxista húngaro George Lukács irá caracterizar Schelling como o fundador do irracionalismo filosófico alemão. Em sua crítica aos aspectos potencialmente revolucionários da filosofia de Fichte Schelling resgata e se apoia em elementos da terceira crítica de Kant, a “Crítica do Juízo”, para estabelecer entre sujeito e objeto uma relação estética, puramente artística; apenas ao gênio artístico, de forma quase mística, é acessível o absoluto, assim se colocando uma relação aristocrática, excludente, em relação ao conhecimento objetivo, pois esse é acessível apenas a uns poucos eleitos, os gênios, únicos efetivamente capazes de estabelecer um contato estético com o absoluto.
É essa supressão das mediações através das quais é possível um conhecimento racional do espírito absoluto que fará com que Hegel no prefácio de sua ‘Fenomenologia do Espírito’ afirme que a filosofia de Schelling é um idealismo absoluto onde “ como na noite todos os gatos são pardos”, sem nomear seu predecessor diretamente.
Hegel, síntese das contribuições do idealismo alemão
O grande representante da filosofia idealista clássica alemã, aquele que será o sistematizador de suas contribuições e desenvolvimentos é G.W.F.Hegel. O filosofo prussiano será, dessa forma, figura chave do desenvolvimento da filosofia alemã, a dissolução de sua escola marcando o fim de seu período clássico.
Assim como seus predecessores também Hegel começara sua reflexão filosófica ligado e em certos sentidos se vendo como parte do desenvolvimento da filosofia de um grande predecessor, em seu caso Scheling. Hegel partirá das formulações sobre o idealismo absoluto do primeiro como base de sua filosofia, para ir se afastando pouco a pouco dos elementos mais místicos e reacionários de seu pensamento e formulando respostas próprias.
A questão chave desse artigo, contudo, é a relação entre sujeito e objeto, como se dão as mediações que fazem com que as estruturas do pensamento, as categorias lógicas formuladas pelos seres humanos, reflitam e possam conhecer efetivamente a realidade. Como vimos até aqui para Kant existe um muro, um abismo, intransponível entre sujeito do conhecimento e a realidade em si, que entendida como uma metafísica “coisa-em-si” transcende e está para além de qualquer conhecimento; Fichte tenta superar essa contradição do pensamento kantiano eliminando a ‘’coisa-em-si” e estabelecendo que toda realidade é expressão da exteriorização do Eu; Schelling, contra o subjetivismo de Fichte, colocará a existência de um espírito que antecede o Eu, mas a relação entre o sujeito e essa absoluto se dá de forma puramente estética, quase-mítica, numa formulação que tende ao irracionalismo.
Qual será a resposta hegeliana, portanto, a essa questão crucial da filosofia moderna, a relação entre sujeito do conhecimento e objeto, e as possibilidades de o sujeito conhecer efetivamente a realidade objetiva?
A “Fenomenologia do Espírito”
Para Hegel as categorias e formas através das quais o sujeito do conhecimento apreende e conhece a realidade são formas do desenvolvimento do próprio espírito absoluto que em seu processo de alienação na história se reconhece como ao mesmo tempo sujeito e substância da realidade. As categorias e formas lógicas do conhecimento, assim, são expressão do próprio processo de auto-conhecimento do espírito absoluto em seu desenvolvimento histórico.
Hegel, dessa forma, rompe com a visão kantiana de um sujeito transcendente e a-histórico para introduzir a história nas formas através das quais os seres-humanos apreendem e conhecem a realidade, e talvez seja esse seu grande mérito filosófico.
Será na ‘Fenomenologia do Espírito’ que Hegel exporá pela primeira vez essa concepção de desenvolvimento do espírito absoluto na história. Publicada em 1807, durante a invasão francesa a Alemanha, essa obra marcará a ruptura definitiva de Hegel com o pensamento de Schelling.
Entendida como uma teodiceia do espírito absoluto a história é espaço onde essa substancia/sujeito se expressa, se aliena, e que no reconhecimento dessa alienação vai se tornando cada vez mais consciente de si. No conflito entre as consciências por reconhecimento, na busca para que uma se imponha como senhora em relação à outra, na dialética entre senhor e escravo, nos conflitos gerados, o espírito se eleva a auto-percepção.
A consciência infeliz, o estranhamento do sujeito em relação a realidade, são momentos preparatórios para a formação de novas formas de pensar e sentir, para um momento de superação (no sentido da Aufhebung, como ruptura, conservação e superação) das antigas configurações fenomênicas do espírito e realização de novas e mais elevadas.
A ‘Fenomenologia’, dessa forma, é o estudo das formas através das quais o espírito absoluto se exterioriza/aliena na história, suas formas de expressão e realização, num processo de desenvolvimento rumo à autoconsciência. Assim, a história, apesar do aparente caos e desordem que parecem reinar na realidade, é essencialmente esse movimento racional do absoluto.
A “Ciência da Lógica”
Consequência direta do desenvolvimento da filosofia hegeliana a partir da ‘Fenomenologia’ será a publicação de sua obra “A Ciência da Lógica”; enquanto a ‘Fenomenologia’ expressava o processo de desenvolvimento do espírito rumo a autoconsciência, através de sua alienação e superação dessa alienação na história, a ‘Lógica’ representa um momento posterior e superior, por assim dizer, no pensamento de Hegel pois é expressão do momento em que o espírito absoluto já é consciente de si como substância e sujeito da realidade.
É em sua ‘Lógica’, portanto, que Hegel dará sua resposta à problemática da filosofia moderna sobre a relação entre o sujeito do conhecimento e a realidade exterior, problema que tem como marco na filosofia alemã o pensamento de Kant.
Enquanto para o filosofo de Konigsberg existia uma separação insuperável entre sujeito e objeto, um muro intransponível entre dois momentos totalmente paralelos e distintos, e que nunca se tocavam, fazendo com que a realidade se torna-se uma “coisa-em-si’’ impossível de ser conhecida, para Hegel as categorias do conhecimento são diretamente e imediatamente formas de ser e expressão do real, real esse que é o próprio espírito absoluto que em seu devir na história vai se tornando consciente de si.
Através de sua categoria de sujeito-objeto idêntico, portanto, Hegel supera o problema kantiano da relação entre o ‘sujeito transcendental’ e a ‘coisa-em-si incognoscível’ o negando como problema efetivo, posto que entre o sujeito do conhecimento e a realidade, longe de existir uma barreira intransponível o que existe é identidade.
A ’Lógica’ de Hegel é, nesse sentido, sua verdadeira metafísica/ontologia, pois as categorias lógicas, as formas e estruturas do pensamento através das quais o sujeito conhece a realidade, não são categorias do pensamento puro, como para Kant, mas são estruturas da própria realidade, são a própria realidade tornada consciente de si mesma no pensamento humano.
Assim, no pensamento hegeliano deixa de haver distância entre categorias e realidade, posto que as categorias do pensamento são a própria realidade, o espírito absoluto, consciente de si mesma como sujeito/substância do real. O encadeamento das categorias de pensamento, dessa forma, é para Hegel o próprio encadeamento do real.
As doutrinas do ser, da essência e do conceito, dentro dessa perspectiva, não são apenas expressão histórica das formas como os seres humanos apreenderam a realidade, mas expressão do próprio processo de autoconhecimento do espírito.
Hegel supera, portanto, a problemática kantiana ao propor que não há uma separação entre sujeito e objeto do conhecimento, muito menos um muro intransponível, mas antes uma identidade de momentos distintos, identidade de ser e não-ser, e que o pensamento pode conhecer efetivamente a realidade pois ambos são idênticos, as categorias do pensamento sendo forma consciente da própria realidade; supera a problemática de Fichte ao mostrar que a realidade não é produto do Eu puramente subjetivo, mas do espírito absoluto, realidade objetiva, que é ao mesmo tempo sujeito e substância; a problemática de Schelling, ao construir as mediações através das quais é possível o conhecimento racional do absoluto, não apenas um contato místico e estético.
O grande mérito do pensamento hegeliano, nesse sentido, é ter colocado o conhecimento da realidade como processo histórico, através do qual os seres humanos se aproximam cada vez mais da realidade objetiva; cada momento do pensamento sobre a realidade, cada grande escola filosófica, por exemplo, não é um dado isolado, uma descoberta da verdade, como era entendido até então, mas momento e parte do conhecimento da realidade como processo histórico. O grande limite é que ao identificar sua ‘Lógica’ com a realidade, fazer dela uma metafísica, nega essa historicidade do pensamento, pois naquele momento, na ‘’Lógica’’ de Hegel, o espírito absoluto teria se tornado consciente de si, não havendo mais espaço para desenvolvimento histórico.
Feuerbach, fim da filosofia clássica alemã
Sendo Hegel figura chave na filosofia clássica alemã, pensador que sintetiza suas contribuições e limites, a dissolução de sua escola será também fundamental na história do pensamento germânico, momento que marca o fim dessa era clássica. Não que a Alemanha não tenha continuado a contribuir para o desenvolvimento da filosofia, muito pelo contrário, grandes nomes do pensamento filosófico na modernidade, como Nietzsche, Heiddeger, os representantes da escola de Frankfurt, como Adorno, Horkheimer, para citar alguns, são desse país. Mas agora a filosofia alemã partiria de pressupostos distintos ao desse seu momento clássico.
Essa dissolução da escola hegeliana terá como marco a publicação alguns anos após a morte do mestre da obra ‘A Vida de Jesus’ de David Strauss. Com a publicação dessa obra começa uma luta intestina no seio da esquerda hegeliana, expressão filosófica da luta contra o absolutismo prussiano, pela herança do pensamento de Hegel.
Seus diferentes representantes, o próprio Strauss, Max Stiner, Bruno Bauer, etc, isolam determinados momentos ou aspectos da filosofia hegeliana os contrapondo, de forma unilateral e empobrecedora, aos outros aspectos e seus representantes. A substância, a crítica, o único, passam a ser os sujeitos e motores da história, cada um dos contendores escolhendo um desses elementos como sua arma.
Dentro dessa disputa teológica, escolástica mesmo, quase um debate sobre o sexo dos anjos, será Feuerbach aquele que dará uma contribuição marcante ao desenvolvimento filosófico. Rompendo com o idealismo do mestre Feuerbach reivindicará a natureza e a matéria, anteriores e independentes da ideia, como pressupostos e bases de todo o pensamento e filosofia, e não como resultados, como no idealismo. No pensamento de Feuerbach o homem volta a ser sujeito, e não mero instrumento do processo de autoconhecimento do espírito absoluto.
Contudo, apesar dessa sua importantíssima contribuição ao desenvolvimento filosófico que é reivindicar e reafirmar a materialidade e a base natural do pensamento, o reconhecer o óbvio, que a natureza e a matéria precedem e são independentes do pensar e filosofar, Feuerbach o faz suprimindo uma contribuição central do hegelianismo, a demonstração da historicidade radical das formas de entender a realidade, a dialética através das quais se desenvolve o pensamento. Não contente com o pensamento abstrato Feuerbach apela ao conhecimento sensível, mas não entende que esse mundo sensível é expressão da atividade prática dos seres humanos, nos diz Marx em suas teses.
O materialismo contemplativo de Feuerbach, assim, se coloca numa posição passiva, não entendendo que a relação entre sujeito e objeto longe de ser meramente de contemplação e absorção é uma relação ativa, que o conhecimento mesmo só é possível como atividade prática, ligado a uma práxis transformadora, tanto do ambiente natural quanto da realidade social. Ao colocar o Homem abstrato e com uma essência inerente e imutável ao lado de uma natureza também entendida como realidade abstrata Feuerbach contradiz suas premissas materialistas para ceder novamente ao idealismo.
Marx
A ruptura de Marx com o idealismo alemão, no sentido da Aufhebung dialética, como ruptura, conservação e superação, ou seja, como apreensão e desenvolvimento de seus elementos mais importantes e superação dos elementos idealistas e ainda em certos sentidos místicos presentes em seus antecessores, é radical, profunda, multifacetada. Não é uma ruptura apenas filosófica, mas tem um sentido bastante mais amplo, é a ruptura com um ponto de vista de classe; enquanto todos os representantes do idealismo alemão clássico ainda se colocavam do ponto de vista das classes dominantes e exploradoras Marx será o pensador que se colocará a teorizar a partir do ponto de vista das classes subalternas, do proletariado como classe subalterna e explorada por excelência na modernidade.
Essa ruptura de Marx com o ponto de vista de classe da filosofia clássica alemã se reflete de diferentes formas também em uma ruptura teórica, filosófica, metodológica, política; nesse artigo, contudo, nos ateremos à ruptura de Marx com a forma como entendiam os filósofos alemães que o precederam a relação entre sujeito do conhecimento e objeto, as categorias e estruturas lógicas através dos quais mediamos o conhecimento racional do mundo e esse mundo objetivo, principalmente com o grande representante dessa tradição, Hegel.
“Hegel substitui a lógica das coisas pelas coisas da lógica’
Marx começa sua atuação teórico/política no contexto da dissolução do hegelianismo, na luta contra o absolutismo alemão e nos primeiros momentos de lutas independentes da classe operária em solo germânico. Serão esses os pressupostos de sua atividade teórica, uma superação crítica do pensamento hegeliano, ligando esse aos desenvolvimentos do pensamento socialista francês e da economia política inglesa, a luta pela democracia e superação do absolutismo em solo alemão e o reconhecimento prático cada vez maior da incapacidade da burguesia alemã de cumprir um papel ativo na luta contra a monarquia e o entendimento de que o novo sujeito social que começa a se colocar de forma cada vez mais independente, o proletariado, é o único sujeito capaz de levar a uma transformação radical na Alemanha, transformação, no entanto, que não pode ser apenas a conquista da democracia, uma revolução política, mas uma profunda revolução social, posto a posição objetiva que ocupa essa classe na estrutura social.
Já em uma de suas primeiras obras de juventude, ainda influenciado por Feuerbach e sem uma clara posição sobre a centralidade do proletariado para a futura revolução alemã, Marx expressa sua ruptura com os pressupostos teórico/metodológicos de Hegel, colocando a necessidade de uma inversão materialista das formas através das quais se deve compreender a realidade.
Em seus ‘Manuscritos de Kreuznach’, que tem como tema central a crítica a filosofia do direito de Hegel, Marx expressa essa ruptura teórica com o hegelianismo através de sua célebre frase: “Hegel substitui a lógica das coisas pelas coisas da lógica”.
Essa afirmação contém um elemento profundo de crítica ao pensamento hegeliano, pois, como já tínhamos visto, Hegel identifica o desenvolvimento da realidade ao desenvolvimento das formas ideais, das categorias, através das quais apreendemos a realidade. O desenvolvimento da realidade objetiva para Hegel, assim, é um desenvolvimento lógico, imediatamente racional, com sua efetividade sendo regida diretamente pelas mesmas leis com que se desenvolve a compreensão humana dessa realidade.
É essa visão logicizante da realidade, que identifica o real com a lógica através da qual o compreendemos, que será aqui alvo da crítica do jovem Marx. Assim como para Feuerbach antes dele para Marx a realidade objetiva, natural ou social, a matéria, é exterior e anterior, independente e irredutível, as categorias e formas lógicas através das quais os seres humanos apreendem e compreendem essa realidade; não há qualquer identidade entre a realidade material e o pensamento.
A realidade, nesse sentido, não é lógica, não é racional, como para Hegel, sendo a lógica e a racionalidade reflexos na mente humana das regularidades e interações que acontecem na matéria, seja ela natural ou social. As estruturas e formas lógicas através das quais compreendemos a materialidade são para Marx, dessa forma, reflexos na mente humana dos movimentos próprios e independente de uma realidade objetiva nunca diretamente redutível a lógica.
A lógica e as categorias através das quais apreendemos a realidade são sempre aproximações, relativas e parciais, entre o pensamento e a realidade exterior. A independência, irredutibilidade, antecedência, da realidade objetiva em relação as formas através das quais entendemos essa realidade é um dos pressupostos centrais do materialismo filosófico de Marx.
“As categorias são formas de ser, determinações da existência”
Assim, para Marx não há qualquer identidade entre o sujeito do conhecimento e realidade objetiva, material, mas antes essa é sempre exterior e independente do sujeito, existe sempre uma distinção entre sujeito e objeto. Isso evidentemente não quer dizer que a realidade material não é passível de ser conhecida, como em Kant, ao contrário, a possibilidade da subjetividade apreender a realidade objetiva é um dos pressupostos do materialismo histórico/dialético. Contudo, esse conhecimento é sempre relativo e parcial, aproximativo, nunca estabelecendo uma relação de identidade com a realidade.
Também diferente do pensamento kantiano em Marx as categorias e estruturas lógicas através das quais conhecemos a realidade (lógica entendida aqui como síntese e articulação das categorias do pensamento) não são um elemento imanente a um ser humano abstrato, a um sujeito transcendental, mas são antes reflexos e projeções da realidade material mediados pela práxis e atividade humana através das quais atuamos sobre essa realidade de forma transformadora.
Dessa forma, Marx apreende de forma crítica o elemento legítimo e positivo da concepção hegeliana de lógica, fazendo das categorias do pensamento não algo estático e paralelo a realidade, existente de forma independente do concreto dentro da mente do sujeito cognoscente. Não, as categorias do pensamento são expressão da relação histórica e dinâmica dos seres humanos com sua realidade material, das formas ativas através dos quais os seres humanos apreendem e transformam essa realidade; se apropria desse elemento legítimo do pensamento de Hegel, contudo, superando dialeticamente seus elementos místicos e idealistas, de uma identidade metafísica entre sujeito e objeto.
As categorias são formas de ser, determinações da existência, pois são expressão da relação historicamente determinada entre seres humanos concretos e sua realidade material. Não são algo dado de antemão e realidades estáticas, mas são antes formas dinâmicas de sistematização na mente humana dos movimentos próprios da natureza, mediados pela práxis humana.
Como formas de ser, determinações da existência que são as categorias do pensamento são também realidades materiais, efetivas, não meros epifenômenos da materialidade. É evidente que são realidades materiais sobre-determinadas, momentos secundários frente a concretude do real, mas isso não apaga sua efetividade. São formas de ser, realidades efetivas, portanto, pois são independentes do individuo pensante, as categorias. Os indivíduos pensantes particulares não criam as categorias e estruturas lógicas a partir das quais apreendem e compreendem a realidade, ao contrário, são inseridos em um sistema de categorias pré-existente (lógica) a partir de um processo de socialização. As categorias são formas de ser sobre-determinadas e secundárias pois apesar de serem independentes de indivíduos pensantes particulares evidentemente não são independentes de uma comunidade de indivíduos pensantes. As categorias e formas de pensamento, a lógica, só podem existir dentro e através de uma comunidade de seres humanos que pensam e se comunicam, é muito claro.
As categorias são também formas de ser e determinações da existência em dois outros sentidos: 1) como expressão mental da realidade material que são se transformam com a transformação objetiva dessa realidade material, exemplo: as categorias que expressam uma realidade material feudal não podem ser as mesmas que as que expressam uma realidade capitalista, posto a diferença objetiva entre os dois momentos; 2) as categorias mudam também a partir das mudanças subjetivas, de paradigma, através dos quais os seres humanos conhecem a realidade que lhes é exterior; as categorias que compreendem a natureza antes e depois da publicação por Darwin de sua teoria da evolução das espécies não podem ser as mesmas, posto que os paradigmas através dos quais conhecemos a realidade mudam radicalmente.
A práxis como mediação entre sujeito e objeto
Assim, para Marx sujeito e objeto não são idênticos, mas momentos distintos de uma unidade superior, a natureza de conjunto; portanto apesar de não serem idênticos também não são linhas paralelas que nunca se tocam, como no pensamento kantiano. No materialismo marxista o pensamento fala sim da realidade, reflete e projeta de forma objetiva suas características, sempre de forma limitada e relativa, aproximativa.
Marx pode superar tanto a problemática kantiana da ‘’coisa-em-si’’ incognoscível quanto a identificação entre sujeito e objeto a partir da qual Hegel tenta responder a essa questão pela afirmação de uma nova categoria, a práxis, fazendo dela elemento mediador entre sujeito e objeto.
Não que essa categoria não estivesse presente já em Hegel; mesmo em Kant, em sua ‘Crítica da Razão Prática’ a práxis é uma categoria importante da relação entre sujeito e objeto, mas em Marx ela ganha um caráter radicalmente novo, sendo o centro de sua reflexão filosófica sobre as possibilidades do sujeito social apreender a realidade. E através da práxis, da atividade efetiva, sensível, material, dos seres humanos associados sobre a natureza e sobre eles mesmos, que é possível um conhecimento real da materialidade. É a práxis que permite a apreensão sensível e racional da realidade, é ela também critério que prova ou não a correção dos juízos que fazemos sobre essa realidade.
As categorias do pensamento e a lógica, assim, são sistematização mental, no plano da ideia, dos movimentos próprios e independentes da matéria, natural e social, mediados pela práxis. A natureza é refletida e projetada na mente humana de forma efetiva, no entanto nunca de forma pura, mas sempre pela mediação de uma determinada ação prática coletiva dos seres humanos sobre essa natureza.
A lógica para Marx, assim, não é nem um conjunto de categorias pré-existentes a experiência localizadas em algum sujeito transcendental e que dariam base a essa possibilidade de experiência, nem um metafísico reconhecimento da natureza idealizada como espírito absoluto que se conhece ao longo da história, mas expressão mental mais geral das formas através das quais os seres humanos transformam de forma prática seu ambiente natural e social.
A lógica dessa forma, também não é reconhecimento da natureza sobre si mesma, numa forma naturalizante de idealismo, mas é sempre e inescapavelmente uma interpretação humana sobre a natureza, sempre parcial, limitada e aproximativa, nunca encerrando o conjunto da natureza.
Lênin, o conhecimento como espiral que se aproxima sempre de seu centro sem nunca tocá-lo
Esse reconhecimento do pensamento como algo inerente e inescapavelmente humano, portanto parcial e limitado, nunca apreendendo o conjunto da natureza elimina qualquer base para uma concepção do conhecimento com algo absoluto, no sentido hegeliano, como um momento em que o conhecimento apreende a totalidade da realidade.
Sempre parcial, limitado, aproximativo, ao mesmo tempo que efetivo e concreto, é isso que é o conhecimento humano frente a natureza. Em seus ‘Cadernos Filosófico’, particularmente em seus estudos sobre Hegel, Lenin formulará uma imagem, uma metáfora, que expressa bem a relação do pensamento humano com a matéria. Para Lenin o pensamento humano é como uma espiral, que se aproxima sempre de seu centro sem nunca tocá-lo; cada um dos momentos do conhecimento (escolas filosóficas, culturas mesmo, por exemplo) é uma linha reta que forma essa espiral do conhecimento. Esses momentos particulares, linhas retas, quando isoladas de forma unilateral se tornam deformações de um conhecimento efetivo, mas quando articuladas dentro da totalidade são momentos particulares rumo a um conhecimento cada vez mais profundo do ser humano em relação a natureza.
A espiral nunca toca o centro na metáfora leninista pois o conhecimento nunca abarca o conjunto da natureza.
Crítica radical de todo o idealismo e misticismo, forma racional historicamente determinada de apreensão da realidade o marxismo se entende também como uma dessas linhas que fazem parte de uma cada vez maior compreensão humana sobre a realidade material. Nesse sentido, se vê claramente como momento histórico, particular, aproximativo, dessa relação entre conhecimento e realidade objetiva; se entende portanto como forma histórica também a ser superada do conhecimento, não como descoberta de uma pretensa verdade absoluta, mas verdade histórica, forma insuperável do conhecimento da realidade dentro de uma determinada estrutura social.