A abertura anunciava um discurso inclinado à esquerda, sacudindo o marasmo parlamentar do cenário político espanhol dos últimos tempos. Começou bem, golpeando pela esquerda. Terminou como era esperado, de mãos dadas com a direita.
A alocução do Podemos articulava um ataque certeiro contra o PP, aparecendo como a “oposição” mais consequente. Um relato que tecia a história política espanhola como um enfrentamento entre uma tradição golpista e conservadora, onde está localizado Rajoy, contra um campo ’constitucional e democrático’ onde localizou a si mesmo.
O discurso contra Rajoy foi afiado, acusou o líder do PP de naturalizar a corrupção como forma de governo, “onde mandam os que não se apresentam nas eleições". As medidas do pacto do PP e Cidadãos contra a corrupção são uma farsa e as medidas trabalhistas "fortalecem o pior da reforma trabalhista", assinalou Iglesias. A única pretensão de Rajoy é "continuar no caminho da ineficácia econômica, da injustiça social e da corrupção".
"Não nos vendemos nem cedemos aos insultos dos poderosos nem a seus empregados", assegurou Iglesias, complementando que "merecer o ódio dos que envenenam o povo é a maior das honras".
Para finalizar, Iglesias fez uma piada engenhosa contra o Cidadãos: "gatopardismo* das elites", ou, para que se compreenda melhor, a goma de mascar de MacGyver, sempre disponível e serve para tudo. Aplausos.
Todo esse desenvolto discurso, porém, se mostrou vazio quando chegou o momento de se referir ao PSOE. À Sánchez, líder do PSOE, apenas interpelou que ele não se "decide" entre as "duas espanhas" a dos poderosos do IBEX 35, em contraposição a Espanha "democrática" que escuta "nossa gente". Não fez nenhuma critica aos socialistas, nem mesmo uma tímida referência ao papel do partido neoliberal que por mais tempo, desde o fim da ditadura, governou na Espanha, não mencionou o histórico de Felipe Gonzales e Zapatero sobre os ataques às conquistas trabalhistas, o ingresso na OTAN, a entrega da "soberania" por meio das privatizações e do endividamento externo. Pelo contrário, elogiou Sánchez por "resistir" desntro e fora do PSOE às pressões para a abstenção.
Iglesias fez um discurso maniqueísta no qual todos o males do regime de 78 estão magicamente concentrados no Partido Popular, enquanto o problema do PSOE é sua "ambiguidade" e "indecisão" para criar uma alternativa. "Decida-se, senhor Sánchez", arrematou.
“Ya es hora de decidirse, sr Sánchez.Estamos dispuestos a intentarlo con ustedes” @Pablo_Iglesias_#investiduraRajoypic.twitter.com/L5bmvtqTtn
— PODEMOS (@ahorapodemos) 31 de agosto de 2016
O líder do Podemos, ágil em gestos simbólicos, terminou sua intervenção levantando o punho e não faltaram apelações à "nossa gente": àqueles que trabalham, aos desempregados, ao pequeno comerciante, ao imigrante, às famílias despejadas, aos professores e professoras, ’aos cidadãos de uniforme’ (sic!), aos estudantes sem beca, às mulheres...
Ainda que Iglesias tenha levantado o punho pela "esquerda", estendia a mão direita ao PSOE para reconstruir uma lógica dos campos parlamentares separados entre os ’conservadores’ em oposição aos ’democratas’, nada muito diferente da velha história do bipartidarismo e a lógica conformista do "mal menor".
Porém, onde foi possível ver mais claramente o caráter restaurador do discurso de Podemos, não por acaso, foi na figura escolhida para sua conclusão. Iglesias dirigiu suas palavras finais para "homenagear" nada menos nada mais que Julio Rodríguez, máximo representante da "respeitabilidade e da decência" a qual aspira o Podemos. Dizer que o general Rodriguez, ex-chefe do Estado-Maior da Defesa, "um homem da guerra e da OTAN" como denunciaram alguns de seus próprios aliados do Unidos Podemos, é o representante da "gente decente", não deixa dúvidas sobre o espírito conservador da política do Podemos. Uma organização que - pegando emprestado as palavras de Monedero de alguns dias atrás - não deixa dúvidas que tem se dedicado tão bem em somar mais ladrilhos a "parede" para sustentar o regime e frear as forças sociais dos trabalhadores e da juventude que se expressaram nas ruas.
"A política não é somente isso", Iglesias deveria recordar suas próprias palavras. Ou melhor, haveria de dizer que a política reformista, socialdemocrata e parlamentarista é somente isso, já a política para defender os interesses dos trabalhadores, da juventude, das mulheres e do povo é outra coisa.
* Expressão que significa "Mudar para que tudo fique igual" [Nota de Tradução].