Os cerca de 120 ataques dos rebeldes jihadistas em que morreram mais de 200 civis e o bombardeio da própria aviação de EUA contra o Exército Árabe Sírio (EAS), tirando a vida de uma centena de militares, era previsível.
A declaração do cessar-fogo, sem dúvida, foi uma armadilha, e seu fracasso, absolutamente planejado.
Proposto pelos EUA e aceitado pela Rússia, o acordo chegou justo quando o EAS, em cooperação com as forças russas e iranianas, tinha libertado Homs, Qsayr e Palmira, ia recuperar Alepo e em sua exibição de força, até chegou a derrubar, a 1 de setembro, um avião israelense que tinha violado o espaço aéreo da Síria. Por que Moscou o assinou? Três dos artigos revelados do próprio texto diziam:
- “Que o EAS deve retirar-se da estrada Castello”. Trata-se da principal rota do fornecimento de armas e equipamentos aos jihadistas a partir da Turquia, que foi recuperada por Damasco no mês julho. EUA pretende tomar o controle sobretudo Alepo, plataforma de lançamento para um ataque sobre Damasco, na execução do plano B.
- ”Que nenhuma das partes deve tentar conquistar a zona ocupada por outras forças”. Este ponto só favorece os jihadistas, que mantêm ocupadas várias regiões, e insinua que as novas fronteiras da Síria desintegrada já estão desenhadas.
- “Que os ataques liderados pelos EUA e Rússia estejam orientados a destruir a coalizão al qaedista de Jaysh al-Fateh, o chamado “Exército da Conquista” e antiga frente Jabhat al-Nusra, e não outros grupos terroristas mais moderados” como Faylaq Al-Sham e o movimento Nour al-Din al-Zenki. De novo, Washington divide os terroristas em bons/aliados e maus/inimigos. Proposta impossível de executar, uma vez que os líderes da maioria dessas formações estão integrados na coalizão de Jaish al-Fatah, principal agrupamento vinculado com a Arábia Saudita. Segundo revelam os correios hackeados de Hillary Clinton por WikiLeaks, EUA enviava armas aos jihadistas da Síria a partir da Líbia em 2011, dos quais alguns tinham sido treinados no Camp Bondsteel do Kosovo, a maior base militar dos EUA em estrangeiro (por se alguém ainda pensa que a guerra contra a Iugoslávia tinha objetivos humanitários).
Ali aprendiam as táticas utilizadas pelo grupo terrorista Exército de Libertação do Kosovo. Utilizar os decapitadores e violadores na luta política não é nenhum segredo. O diretor do Centro israelense Begin-Sadat de Estudos Estratégicos afirma que o Estado Islâmico “pode ser uma ferramenta útil” no debilitamiento do Irã.
Assim, a coalizão liderada pelos EUA queria conseguir o que não tinha conseguido no campo de batalha. Por outro lado, o fato de que a intervenção da Rússia não gerasse nenhum avanço para uma solução política, amostra até que ponto foi um erro. Entre seus propósitos não estava a paz para a Síria, nem muito menos salvar Bashar al Assad.
Mudança no cenário
Vladimir Putin e Barack Obama já tinham acordado um plano de paz que deixava cinco opções a Bashar al Assad para sair do poder. É difícil imaginar que a Rússia seja enganada outra vez, embora sim seja possível que os responsáveis por sabotear o cessar-fogo seja o Pentágono e o próprio Secretário de Defesa Ashton Carter, que expressou publicamente sua oposição a tal acordo que, insta realizar ações conjuntas com a Rússia contra o terrorismo na Síria. Ashton, igual que Arábia Saudita e Israel, é partidário de alargar as ações militares para derrocar Assad.
O dinamismo do campo diplomático e militar traçou novos blocos:
A Rússia e a administração de Obama, que são partidários de isolar aoposição islamista mais radical, prepara a saída não violenta de Assad do poder nos próximos meses.
Arábia Saudita-Qatar, o Pentágono - a CIA e Israel advogam por uma ampla invasão terrestre, demolir o ultimo Estado secular da região e derrocar Assad, para depois dividir o país em vários cantões.
Entretanto, Tayyip Erdogan muda de prioridade e, sem deixar de fantasear com Alepo, centra-se em destruir as esquerdas curdas da Turquia, Síria e as montanhas do Iraque. Nesta batalha, poderá contar com o Irã, agora que os curdos sírios se puseram sob o comando dos EUA e os curdos iranianos declararam a guerra à República Islâmica.
A fação do presidente Rouhani opõe-se a se envolver em uma guerra perdida, ao mesmo tempo que o setor militarista, surpreendido pela traição de Putin a Assad, reprocha a quem se opôs à “associação estratégica” russo-iraniano e à cessão da base militar de Hamadão à Rússia para suas operações de combate na Síria. Seria um suicídio que as forças armadas sírio-iranianas pretendessem enfrentar o conjunto das forças militares da OTAN, Israel, quase todos os países árabes e Turquia. E isso, apesar de que o principal objetivo da guerra dos EUA contra Síria foi debilitar o Irã em benefício de Israel. Coincide com esta etapa do conflito o anúncio da maior venda de armas da história realizada pelos EUA a Israel, no valor de 3,8 mil milhões de dólares, pago do bolso dos contribuintes. Um Israel que, segundo Colin Powell, não só possui umas 200 armas nucleares, como também as tem orientadas para o Irã.
Prepara-se uma grande invasão
Com o fim de recuperar a confiança de Erdogan, perdida depois da desastrada tentativa do golpe de estado do passado julho, EUA permitiu-lhe bombardear a zona curda de Jarabulus, precisamente em um dia após que os curdos libertassem a fronteira desta cidade do controle do ISIS. Sob a chave “Escudo de Éufrates”, as tropas turcas entraram na Síria, bombardeando as posições curdas. Estes ficaram cheios de assombro, por ingênuos. Ninguém poderá acusar os EUA de cínicos por armarem em simultâneo os turcos e os curdos, ou por mandar estes combaterem contra o Estado Islâmico, armado também pelos EUA.
Desde o princípio do ano, EUA organiza a invasão da Síria por parte da Turquia e Arábia Saudita. Além dos 15.000 soldados turcos, estão os 35.000 homens nascidos em 20 países árabes que participaram no mês de fevereiro passado no maior exercício militar da história do Oriente Próximo, que foi realizado na Arábia Saudita. Juntos somam o número necessário que tinha pedido John Kerry para ocupar o norte da Síria e declarar zona de segurança. Obviamente, a invasão turco-saudita, apoiada pelas forças especiais dos EUA já instaladas na Síria, pode provocar a reação da Rússia e Irã no território sírio, colocando o mundo ante uma nova catástrofe de dimensões inimagináveis.
Além do dito, os sírios assediados não receberam nenhuma ajuda humanitária durante os dias do cessar-fogo. Mas enfim, quem se importa com isso?