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Diário Liberdade
Quarta, 30 Novembro 2016 15:20 Última modificação em Sábado, 03 Dezembro 2016 12:45

A ’Era Trump’: reflexões sobre a economia que está por vir

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País: Estados Unidos / Laboral/Economia / Fonte: Esquerda Diário

[Paula Bach] No início de uma contrarreforma. Consequências políticas da economia. Contradições que queimam. A nova onda de gabinetes “sui generis”. Demagogia e programa.

O triunfo de Trump expressa o início de um giro politico altamente significativo para os Estados Unidos e provavelmente para o mundo. “A era Trump” é a frase de capa do semanário britânico The Economist enquanto o Financial Times não deixa de lamentar o que intui como as ulteriores desventuras da globalização. Comparando as vitórias de Trump e o Brexit com aquelas de Thatcher e Reagan de fins dos anos 70 e princípio dos 80, o jornalista argentino Siaba Serrate conclui que se naquele momento nasceu o “modelo neoliberal”, os triunfos de hoje anunciam uma “contrareforma” na qual os “protestantes” buscam reescrever as regras da globalização.

Um outsider na Casa Branca é expressão de que as consequências sociais e políticas de uma convulsão econômica contida e não catastrófica mas lacerante, começam a limitar a estratégia de controle da crise gestionada pelo establishment desde a queda do Lehman. O Brexit resultou sem dúvidas uma antecipação, salvo que agora as consequências da economia transformadas em política tomam o posto no país mais importante do mundo. No imediato se trata de investigar quais serão – ao menos no periodo próximo imediato – os verdadeiros caminhos de Donald Trump.

Dada a situação de desespero e repúdio à elite política que levou a setores de operários brancos tradicionalmente democratas do Rust Belt – o cinturão industrial em decadência do Meio Oeste norte-americano e em particular os estados de Ohio, Pennsylvania e Michigan– e até a alguns negros e mexicanos, assim como setores proprietários de pequena e média indústria, a alçarem Trump ao topo, é bastente impensável que o novo governo norte-americano deixe na pura demagogia o conjunto de suas promessas de campanha. Entre a demagogia de Donald Trump e seu programa de governo seguramente haverá um ponto médio que se pode arriscar analisando o estado das principais contradições da situacão econômica e política.

Alta tensão

A principal e mais ampla das contradições é a que faz as necessidades das elites econômicas – globalofílicas – se enfrentarem com amplos setores sociais golpeados pela globalização. Esta tensão expressa uma diferença significativa a respeito dos anos 30quando as frações hegemônicas do capital viraram rapidamente para o protecionismo. O salto na globalização do capital e o fato de que, em contraste com a Grande Depressão, a crise atual foi contida mas à custa de um crescimento econômico muito débil, explicam em grande parte aquela tensão.

Trump captou o sentimento de milhões com um discurso – nacionalista, protecionista e xenófobo – dirigido aos deslocados da globalização. Prometeu reindustrializar os Estado Unidos expulsando os imigrantes, eliminando os tratados de livre comércio, baixando os impostos às corporações para alentar o retorno de capitais e subindo as tarifas à entrada de produtos chineses e mexicanos para substituir importações. Chegou a insinuar o apoio a aumentos do salário mínimo e o repúdio ao sistema financeiro e aos extraordinários lucros bursáteis associados a baixas taxas de juros.

No entanto este programa, considerado em seu conjunto, não e compatível com a elite econômica norte-americana que, não por casualidade, apoiou contundentemente a Hillary. Grandes fábricas de origem estadunidense se encontram relocalizadas no Méxicoou na China precisamente pela diferença salarial – inclusive nos últimos anos muitas empresas se mudaram da China e Mexico ou do Vietnã, entre outros destinos, devido ao incremento dos salários chineses. Grande parte das importações chinesas e mexicanas que Trump disse querer taxar a 45 e 35%, respectivamente, provém de capitais norteamericanos localizados nesses países.

Inclusive grande parte dos insumos da indústria radicada nos Estados Unidos provém da China e México, assim como uma porção significativa dos bens de consumo. Um aumento tarifário na escala prometida por Trump, não somente significaria uma declaração de guerra a todas essas empresas, como também produziria o efeito colateral de uma escalada inflacionária com o consequente desbarranque do salário real e o incremento dos custos de produção. Por outro lado, setores produtores medianos ou pequenos – que apoiaram Trump -não simpatizam em geral com a expulsão de imigrantes, devido a que estão estabelecidos em território norte-americano e costumam superexplorar mão de obra estrangeira clandestina.

A voz da consciência (ou Dr. Jekyll e Mr. Hyde)

Trump – um magnata imobiliário enriquecido com a especulacão financeira – não pode – nem quer – governar contra os setores hegemônicos do capital norte-americano, incluídos Wall Street e a elite tecnológica congenitamente globalofílica como Apple, Google, Facebook, entre outras.

A princípio a ruptura entre Trump e o establishment Republicano começa a fechar. Assim o mostra a recente designação de Reince Priebus – presidente do comitê nacional do Partido Republicano e figura de amplo consenso no partido – como chefe de gabinete de seu governo. Enquanto ao mesmo tempo, e reafirmando sua “identidade, Trump nomeou o racista Steve Bannon – ex-chefe do portal de notícias de extrema direita Breitbart – como principal estrategista e assessor da Casa Branca. Por outra parte, o atual presidente republicano da Câmara de Representantes, Paul Ryan, terminou reeleito por unanimidade, e depois ter se diferenciado diversas vezes de Trump durante a campanha, afirmou agora que o que passou, passou... e que conversa com Donald “praticamente todos os dias”. E assim segue se entrelaçando uma equipe de insiders e outsiders – inclusive o ex-chefe do Goldman Sachs que, se diz, poderia ir para o Departamento do Tesouro. As tensões pela conformação da equipe continuam e estariam desatando uma espécie de guerra interna no interior do Partido Republicano.

O resultado daquela guerra terminará fornecendo definições mais claras, porém o que se conhece até agora da armação – que ressalvando as distâncias recorda um pouco o ornitorrinco que terminou comandando o Brexit – faz pensar que Trump governara para as frações dominantes sem esquecer de todo suas promessas de campanha. Os outsiders do establishment – muitas vezes insiders da elite econômica – parecem estar operando como uma espécie de voz da consciência das elites políticas em tempos “estranhos”, obrigando-as a conformar gabinetes mistos. Esta síntese parece descartar tanto a execução do “programa máximo” como a ideia de que o conjunto das promessas eleitorais fique em pura demagogia. Faz-se necessário então arriscar alguns elementos do que poderia ser o “programa de ação”.

“Intermezzo”

É provável que o programa efetivo de Trump busque responder ao cenário intermediário de múltiplas combinações que caracteriza a situação atual norte-americana. Um vasto desenvolvimento de fenômenos políticos – com mais força pela direita, o que é resultado, em parte, da subordinação de Sanders ao Partido Democrata- e um revigorar de movimentos sociais, por um lado, com escassa luta dos trabalhadores, por outro. Uma conjunção de estancamento econômico sem crise catastrófica, que redunda em variados contrastes. Entre eles, um crescimento do PIB norte-americano de 2,2% em média durante os últimos oito anos, claramente superior ao da Europa ou Japão, ainda que significativamente inferior a sua média histórica superior a 3%. Um baixo desemprego em termos de população economicamente ativa – diminuiu de 10% em 2009 para 4,9% atual – mas novos trabalhos criados de baixa qualidade, empregos de meio período e um desemprego estrutural arrastado durante as últimas décadas – resultado da combinação de deslocalizacão e mudança tecnológica. A restrição de acesso ao crédito por parte das famílias, que chegaram à crise de 2008 com endividamento equivalente a 130% de suas rendas, completa o quadro. Esta última condição obstruiu a possibilidade de um boom de consumo semelhante ao que operou nos anos 90 ou 2000, apesar das extremamente baixas taxas de juros.

A combinação desses elementos desnudou a elevação extraordinária da desigualdade e as posições perdidas em décadas anteriores.

A ala neokeynesiana do establishment econômico democrata ou pró-democrata, incluindo a Lawrence Summers, Paul Krugman, Martin Wolf, o FMI e o setor hegemônico da própria Reserva Federal norte-americana, faz tempo está indicando a necessidade detrocar gradualmente as atuais medidas expansivas monetárias por políticas fiscais - de alento a obras públicas e gastos em infra-estrutura. E aparentemente não são os únicos: segundo um estudo da Associação Nacional de Negócios Econômicos – parte interessada, se é que ela existe, 43% dos “experts” consideram que o gasto do governo norte-americano é demasiado restritivo, comparado com 29% que pensavam da mesma forma há um ano. Fazem falta “estradas, pontes, saneamento, água. O que seja, estamos ficando para trás”, dizia faz uns poucos meses o presidente da firma de inversões Cumberland Advisors, quem por sua vez estimava que os Estados Unidos necessitam entre 3 e 4 bilhões de dólares de gasto em infra-estrutura. Por sua vez, as taxas de juros extremamente baixas sustentadas durante tanto tempo, começam a prejudicar o lucro dos bancos, anulam a política monetária como contratendência frente a muito prováveis recessões, e criam tensões financeiras potencialmente explosivas.

O programa neokeynesiano - conselheiro do capital com fortes laços globais- martela sobre a necessidade de conter pelo menos parcialmente a sede de lucros das multinacionais permitindo recuperar certa sensação de “poder” aos setores mais prejudicados pela globalização. Estas orientações, complementares com privilegiar as políticas fiscais frente às monetárias, perseguem o objetivo de salvar a globalização, realizando algumas trocas inadiáveis para que finalmente nada mude.
Em geral tudo soa muito tímido em termos estratégicos para o quadro que se está gestando. Sem dúvidas, na atual situação “intermediária”, é provável que o programa de Trump termine impulsionando pela direita – ou seja, com fortes elementos xenófobos, racistas, repressivos e antissindicais, além de profundas reduções de impostos – aspectos chave do programa neokeynesiano.

“Incrivelmente irônico”

Martin Wolf assinalava faz uns poucos dias que “seria incrivelmente irônico que Trump aplicasse, com o apoio republicano no congresso, precisamente o tipo de estímulo fiscal keynesiano que os legisladores de seu partido se opuseram quando a administração de Barack Obama o sugeriu em 2009”. Não tao irônico... um dos membros da equipe econômica de Trump apontava que “podemos acabar com a diferença de riqueza na america sbustituindo os niveis de taxas de interesse de emergencias por estimulo fiscal”. O assessor agregava que tendo agora a câmara de representantes e o senado, aumentam as probabilidades de que o plano fiscal seja aprovado pelo congresso.

Há poucas dúvidas a respeito de que a administracao Trump aplicará enérgicas reduções de impostos. Fala-se de uma redução de entre 15 e 20 pontos pencentuais para as corporações, uma taxa de repatriação única de 10% para os lucros obtidos no estrangeiro, a completa eliminação dos impostos federais sobre heranças e doações. Segundo um dos assessores econômicos de Trump, uma redução impositiva de 15 pontos percentuais representaria um montante por volta de 600 bilhões de dólares. Uma redução dos ingressos fiscais em torno de 4% do PIB, segundo The Economist. O acessor afirma, ao mesmo tempo, que Trump propõe um plano de infra-estrutura de 1 trilhão de dólares – ainda que outros falem de 550 bilhões – financiado mediante uma combinação de dívida e associação de capitais públicos e privados. Em qualquer caso se trata do dobro ou muito mais que o dobro com relação à promessa de Hillary. Provavelmente aspirem a que ao menos parte dessa soma subtraída ao fisco, se volte à construção de infra-estrutura, o que poderia incluir políticas para expandir a produção de gás, petróleo e carvão, a criação de novos gasodutos e a abertura de terras públicas a novas perfurações da mineração, como também assinala The Economist. E não é nada absurdo pensar que para isso o estado se comprometa a garantir um mínimo de lucro.

Martin Wolf aponta que “a união do populismo de Trump com a obsessão por cortes fiscais dos republicanos, poderia ocasionar enormes e permanentes aumentos nos déficits fiscais”. The Economist sugere que provavelmente tenha que se esperar de Trump algo intermediário entre Reagan - baixos impostos, baixa regulação e livre mercado – e um projeto mais nacionalista, populista e inclusive estadista com questões de lei, ordem, identidade e tradição cultural, ao estilo dos politicos demagógicos europeus. Vale recordar que Reagan combinou fortes recortes impositivos com acelerado gasto em defesa e por isso muitos falam de um giro “ronaldreaganesco” na política fiscal norte-americana. Como tambem assinala o semanário britânico, ainda que grande parte dos republicanos preferiria a opção liberal, Ryan agradeceu a Trump por proporcionar os laços eleitorais suficientes para criar o primeiro governo republicano unificado desde 2007. Se Ryan e seus companheiros líderes do congresso vão sebreviver a esta nova ordem, terão que abraçar algumas posições desconhecidas, conclui The Economist.

Quanto à política de “normalização” de taxas de juros – também uma recomendação neokeynesiana –, é esperado que ela ocupe um lugar destacado – ao menos tendencialmente - na “era Trump. Tanto como necessidade associada aos atores assinalados mais acima, como ao maior ingresso de capitais necessário para financiar um endividamento que se percebe crescente, e a um possível aumento da inflação vinculado a modificações tarifárias – seguramente mais moderadas que as prometidas em campanha. Evidentemente, a política de taxas de juros terá importantes repercussões no cenário internacional e na América Latina, em particular.

Por sua vez, a especulação financeira desenfreada, vinculada em grande parte às políticas monetárias dos últimos anos, não são bem vistas por grande parte da população. A demagogia de Trump inclui a promessa de restaurar a lei Glass Steagall – que separa a banca comercial da banca financeira – implementada por Rossevelt em 1933 e anulada por Clinton em 1999. Como tambem indica Wolf, não se sabe se a lei Dodd Frank – uma regulação light implementada pós-Lehman e detestada pelas instituições financeiras – “seria substituída por uma alternativa mais eficaz ou por um regresso à situação anterior à crise, na qual tudo estava permitido.” Embora seja provável que nem mesmo Trump o saiba, a questão se tornará mais clara à medida que se resolva a guerra de gabinete. Wolf diz todavia, e com algum pesar, que “No entanto, em matéria de regulamentação financeira, ao contrário do comércio, o populismo de Trump poderia proteger a América dos piores instintos desregulamentadores dos parlamentares republicanos, e não o oposto".

“Antiglobalização”?

Em relação a acordos comerciais, é impensável um retrocesso significativo no Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA). Embora as mudanças não possam ser excluídas, parece altamente improvável um aumento nas tarifas da magnitude que Trump prometeu, o que resultaria em um violento ataque para empresas norte-americanas instaladas no México, com consequências inimagináveis sobre os preços e o emprego no interior dos Estados Unidos. O Acordo Transatlântico (TTIP), com certeza, nunca viu a luz e é muito provável que Trump retroceda claramente com o acordo transpacífico (TPP).

Como o TPP e uma “arma” desenhada para encurralar a China, não é absurdo especular sobre como sua retirada poderia soar como instrumento de negociação com o gigante asiático. Trocando por exemplo a eliminação do acordo pela modificação seletiva de algumas tarifas e inclusive a eventual exigência de uma maior abertura chinesa ao capital norte-americano. Desde que a China começou a deixar para trás sua fama de receptor de capitais, se apresentando cada vez mais como competidor pelos espaços mundiais de acumulação, emerge crescentemente como um fator que questiona por sua vez a legitimidade do status quo norte-americano. A princípio não se pode descartar uma política – ao menos num primeiro momento – em que os Estados Unidos busque melhorar sua posição relativa frente à China apelando a instrumentos de negociação. Deve-se levar em conta – entre outros aspectos – a dependência dos Estados Unidos ao financiamento chinês - principal dono de bônus do Tesouro – questão que se apresenta como mais premente se se pensa em um panorama de maior endividamento estatal.

Abordamos aqui o lado econômico de uma questão que não somente terá consequências internacionais como também faz parte de uma extensa lista de assuntos políticos e geopolíticos – ainda indefinidos – que poderiam alterar o mapa no próximo período.

Contudo, ainda há mais interrogações do que certezas. Mas se há algo que apresenta poucas dúvidas é a impossibilidade – ao menos sob as atuais condições – de recriar um processo de reindustrialização estrutural nos Estados Unidos com um reverdecer do “sonho americano”. Para falar a verdade, nem o New Deal de Roosevelt – que ao contrário da engendro trumpista, esteve acompanhado por múltiplos aspectos progressistas – alcançou o incremento de gasto suficiente para impulsionar uma enérgica ascensão da economia, cujo auge esteve finalmente associado ao início do armamento norte-americano para sua entrada na segunda guerra mundial. Inclusive Robert Gordon, a quem mencionamos em múltiplas oportunidades, sugere em The Rise and Fall of American Growth que também o auge do pós-guerra teria sido impensável sem o impulso da guerra.

O que se demonstrou com o triunfo de Trump, se é que faltava algo para isso, é que o processo de globalização – que é em grande parte de exportação de capitais e importação de mão de obra barata – característico da “revolução” neoliberal, operou como um temível instrumento de divisão das fileiras dos trabalhadores. O desemprego estrutural, a precarização do trabalho e a queda do nível de vida de amplos setores nos países centrais é a contracara da superexploração externa e interna de mão de obra estrangeira, mas também da perversa utilização capitalista dos avanços tecnológicos. Se a primeira questão se apresenta hoje como a arma central das direitas xenófobas – que as elites políticas tradicionais aproveitam – para fomentar o ódio sob a forma de nacionalismo protecionista nos países centrais, a segunda reaparece como ameaça permanente sob a forma da humanização das máquinas ou a robótica.

É urgente que os trabalhadores e os setores pobres enfrentem estas múltiplas formas de engano e lutem para conquistar a arma mais poderosa: a unidade de suas fileiras. Questão que inclui também a batalha por colocar a serviço das grandes maiorias essa grande conquista de toda a humanidade que representam os avanços da ciência e da tecnologia.

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