Desde Nicolau Maquiavel sabemos que a sociedade é composta pela relação conflitiva, e sobretudo amoral entre “grandes” e “povo”; cada um com sua natureza própria. Aqueles, dominar; este, não ser dominado. E o trabalho do filósofo renascentista foi justamente ter retirado dessa relação toda a velha moralidade que orbitava entre bem e mal, certo e errado, falso e verdadeiro. Moralidade esta que desde a antiguidade raptava a realidade da política. Retomando a nossa analogia, assim como a água, em determinada pressão e temperatura, entra em ebulição, assim também os grandes, em sociedade, oprimem o povo; tão necessariamente quanto as leis físicas! Dizer que isso é errado, convenhamos, é preferir quimeras em lugar do real. E o amargo preço dessa ilusão, pago inescapavelmente pelo povo, é justamente uma maior liberdade aos grandes dominadores, pois estes, em momento algum, alienam-se moralmente da – nem deixam de investir politicamente na – sua natureza dominadora.
Embora o desejo – e a ação objetiva! – dos grandes seja dominar o povo, e para isso precisem roubar descaradamente liberdades e direitos populares, a natureza do povo não é dominar os grandes, mas, assimetricamente, desejar não ser dominado. Entretanto, ensina Maquiavel, o desejo popular de não ser dominado, para se realizar, precisa se converter em luta política objetiva por liberdade. Não obviamente para circular livremente dentro do universo dos grandes – não como queria Lula: que o povo brasileiro fosse “livre” apenas para comprar eletrodomésticos e viagens ao exterior, coisa que em verdade só alimentava o bolso e o universo dominador dos grandes -, mas liberdade para lutar contra os grandes, contra o natural desejo deles de dominação.
O povo fica aquém de sua própria natureza enquanto reclama da dominação que sofre; enquanto apenas acusa os grandes – quase sempre vitoriosos – de serem maus, desumanos, gananciosos, etc. Ora, quando o povo, parte envolvida no conflito político, não atualiza a sua potência natural, ao passo que os grandes, a outra parte, o faz “sem dó nem piedade”, não é mistério algum qual parte sairá, e deverá sair vencedora. E, para além do ressentimento popular, não há nada de errado nessa vitória dos grandes, uma vez que o real é o conflito entre eles, e que vence quem realiza melhor a sua própria natureza.
Da perspectiva dos grandes empresários, banqueiros, latifundiários, por exemplo, só pode parecer patético, ignorância ou ressentimento impotente o povo crer que os grandes deveriam deixar de dominá-lo e desejarem, como o povo, o fim da dominação e a liberdade irrestrita. A imperdoável ingenuidade popular é precisamente crer que os grandes devam ser como o povo; que há algo de errado em os grandes serem como são. Não! O fato de os grandes desejarem dominar é como a água ferver a 100°C, ora bolas. Agora, o fato de o desejo último do povo ser a liberdade em relação à dominação dos grandes parece não ser tão claro assim para o próprio povo. “Em que mundo você pensa que vive?”; “Quem você pensa que nós somos?”; “Você conhece a realidade e sabe como lutar dentro dela?” – perguntariam justamente os grandes ao povo.
Algo realmente errado é o povo achar errado os grandes agirem como agem! Para sair desse erro, contudo, a primeira coisa que o povo deve fazer é reconhecer, e maquiavelianamente!, que os grandes, para muito além do bem e do mal, do certo e do errado, do falso e do verdadeiro, fazem unicamente o que a sua natureza prega. Fosse de outra forma, isto é, se os grandes ou não quisessem dominar, ou fossem definitivamente eliminados pelo povo, isso significaria o fim da sociedade ela mesma, que, como ensina Maquiavel, é o resultado do conflito político entre grandes e povo.
Desse modo, o desejo acertado do povo, ou seja, a realização plena de sua natureza, deve ser: ser tão ou mais forte que os grandes. Não, como seria ingênuo pensar, que os grandes devam ser fracos para serem finalmente vencidos. E isso porque é somente dentro dessa batalha, árdua e, como ensinou Maquiavel, amoral por natureza, que qualquer vitória do povo no sentido de sua liberdade terá algum valor; e, o mais importante, constituirá uma verdadeira sociedade. Não mais uma sociedade utópica, na qual o povo contaria com a benevolência de seus oponentes; na qual é errado os mais potentes vencerem os mais impotentes na luta da qual ambos não têm como escapar; mas sim uma sociedade onde cada lado do sempiterno conflito político atua com toda a sua potência contra a potência do outro lado.
A sociedade definitivamente não é o lugar de os indivíduos serem livres e felizes gratuitamente, como algum deus bom poderia ter desejado. Antes, ela é a árdua e humana conversão do combate bárbaro-animal, no qual uns aniquilam definitiva e violentamente outros, em conflito político, onde as diferenças podem coexistir, todavia ao preço de uma sempiterna luta de forças. O fato de os grandes liderarem esse conflito na maior parte das vezes não deve ser moralizado, considerado um erro, um mal, porquanto o moralismo custa sempre muito mais caro do que aceitar o real amoralmente. Todavia, muito embora o povo inadvertidamente predique moralmente a ação daqueles que o domina, seu primeiro “acerto” político deve ser reconhecer o “erro” enquanto seu. E esse erro é não ter feito o seu dever cívico básico, isto é, não ter sido, e a qualquer preço, tão ou mais forte que o seu oponente opressor.