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Diário Liberdade
Sábado, 11 Fevereiro 2017 04:52 Última modificação em Domingo, 12 Fevereiro 2017 20:55

Do antimachismo de hoje ao antifascismo de amanhã

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Rafael Silva

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[Rafael Silva; Laboratório Filosófico] Assim como ignorar os machistas nunca teria levado as feministas às suas muitas vitórias, assim também, deixar de interpelar o fascismo não fará com que o superemos.


“Como conversar com um fascista”, título do livro da filósofa brasileira Marcia Tiburi, embora soe manualesco, na verdade é a pergunta mais candente da atualidade. Apesar das boas reflexões da autora, os fascistas resistem inconversáveis. No imperativo de driblar esse impasse, avento a hipótese de o virtuoso antimachismo que vejo nas mais jovens feministas apontar um caminho. Quanto mais não seja, sexismo e fascismo compartilham do mal do patriarcalismo; a luta contra o machismo pode muito bem ajudar no combater ao fascismo.

Àqueles que desmerecem essa pecha, sustentando que “com fascista não tem conversa”, é preciso dizer que essa máxima, além de covarde, é fascistoide par excellence, pois quem se nega ao diálogo é o fascista. Então, quando alguém se recusa a conversar com um fascista porque é ele fascista, torna-se aquele que critica. O antifascista tem por obrigação, não só propor, como principalmente manter o diálogo com o fascista. Assim como ignorar os machistas nunca teria levado as feministas às suas muitas vitórias, assim também, deixar de interpelar o fascismo não fará com que o superemos.

Marcia Tiburi, que também é feminista, relembra-nos de que, pelo fato de o diálogo ser “uma prática de não violência”, ele tem o poder de instaurar o comum, a priori negado pelo fascista. E Também pelo machista! O diálogo, diz Tiburi, “deveria ser a base de uma ética do dia a dia”. Entretanto, os fascistoides cada vez mais presentes nas ruas e redes sociais desestimulam sobremaneira essa ética dialógica. “Dialogam” apenas consigo próprios, descartando o outro. Monólogos verticais, e não diálogos horizontais. E isso porque, complementa a filósofa, “o outro negado sustenta o fascista em suas certezas”.

O ódio anima o fascismo. E, para piorar, ressalta Tiburi, “há algo assustador no ódio contemporâneo ... não se tem vergonha dele; ele está autorizado hoje em dia e não é evitado”. Para combatermos esse ódio desavergonhado, e consequentemente o fascismo que dele se alimenta, a autora prescreve o “diálogo que não apenas mostre que o ódio é impotente, mas que o torne impotente”. O título do livro de Tiburi, depois de transformado em pergunta, agora deve ser parafraseado na seguinte maneira: Como conversar sobre a impotência do ódio justamente com quem se potencializa nele? É porque a pragmática de Tiburi não me deu essa resposta que sondo aqui a atual prática antimachista, para adaptá-la contra o ódio fascistoide.

O feminismo tem pouco mais de cem anos, e se divide em três “ondas” históricas: final do século XIX, 1960 e 1990. No entanto, fico tentado a dizer que há uma quarta onda, iniciada na década de 2010, que, a meu ver, está empoderando as mulheres de forma muito mais efetiva, pelo menos na luta delas contra o machismo. E é esse novo poder que quero emprestar delas para as minhas futuras investidas antifascistas. Oxalá eu seja tão competente.

Não tenho evidência científica dessa quarta onda feminista, apenas percepções empíricas, todavia de enorme valor. A mais pungente delas é pessoal: nos últimos quatro ou cinco anos as mulheres com quem eu convivo conseguiram fazer não só com que eu reconhecesse o machismo que eu carregava, furtando-me o subterfúgio de negá-lo, como principalmente constrangendo-me à superá-lo. Desafio com o qual comprometo-me cotidianamente, apesar de, confesso, desconfiar que talvez eu nunca me livre completamente desse mal. Entretanto, assim como o “ex-alcoolista” é um alcoolista que apenas não está bebendo agora, assim também o “ex-machista” é o machista que não está sendo sexista agora.

Eu era um machista que não se reconhecia como tal. Entre outras desculpas inócuas, a minha homossexualidade mentia absolver-me do pecado do machismo. Fascistoidemente, achava que as mulheres estavam erradas em apontar machismo em mim; equivocados estavam os outros, no caso, as outras: as mulheres. Porém, como bem coloca Tiburi, “a fala é a aventura no desconhecido”, e as constantes e determinadas falas delas finalmente me levaram a conhecer o limbo sexista que jazia ignorado sob o céu das minhas velhas certezas. O mesmo eu vi acontecer com muitos outros machistas: familiares, amigos e colegas.

As atuais feministas, quando tropeçam na besta do machismo que ainda assombra o mundo, vão além de suas antecessoras históricas. Não mais engolem-no silenciosamente, apenas reiterando a si mesmas que o outro machista não a respeita e reconhece, ou ainda levando-o às suas discussões intra-movimento. Hoje em dia, as feministas agem irredutivelmente contra o machismo assim que ele se apresenta; na face dele. E elas têm poder não só para desmontá-lo, até que ele se autorreconheça e se assuma em sua desumanidade, como principalmente para angariar cada vez mais homens à sua luta.

É justamente essa virtuose antimachista do neo-feminismo que falta aos antifascistas de hoje. Estes, dentre os quais eu me incluo, até começam um diálogo com um fascista. Todavia, em pouquíssimo tempo o fascismo vence: o diálogo é suspenso, e o que prossegue, a exemplo dos fastidiosos comentários de Facebook, são discursos monológicos cada vez mais distantes de um lugar em comum. Também pudera, “o diálogo como hábito nos é roubado diariamente”, relembra Tiburi, para quem “a tarefa filosófica de nossa época implica devolvê-lo às pessoas”.

Nas vezes em que eu estava sendo convencido pelas feministas, sentia-me um sofista sendo derrotado por Sócrates nalgum diálogo platônico. Nestes, o filósofo que só sabia que nada sabia, conduzia os seus interlocutores sabidões do topo de suas certezas ao porão de suas ignorâncias. No diálogo Hipias Maior, por exemplo, no qual se investigava a beleza, Sócrates, dialogicamente, convence o sofista Hipias, que discursa muitos exemplos de beleza como se a conhecesse íntima e banalmente, não só de que ele não sabe o que é o belo, como também de que ninguém o sabe. Frustrando quem espera uma definição categórica da beleza, Sócrates encerra o diálogo dizendo apenas que “O belo é difícil”.

Se, todavia, o preço da maiêutica socrática era terminar afirmando que ninguém sabia de nada, a não ser que nada sabia, ao menos tinha o poder de produz um lugar em comum: o da ignorância em relação à verdade. Não que Platão estivesse fazendo apologia da ignorância. Ao contrário: uma crítica a ela mediante o seu presencial apontamento. É isso que senti na pele as neo-feministas fazerem comigo e com muitos outros machistas: dialogarem impiedosamente até que as verdades sexistas fossem derrubadas uma a uma.

Maiêutica, do grego “μαιευτικη”, significa “a arte de parir”. O que Sócrates trazia à vida com a sua era a igualdade entre os homens em relação ao conhecimento. E se a “maiêutica antimachista” com a qual topei na presente década foi capaz de trazer à luz o machismo que jazia ignorado em mim, fazendo com que eu não pudesse mais me alienar dele nem deixar de me envergonhar por ele, uma “maiêutica antifascista” que faça com que os fascistas se reconheçam como tais e se envergonhem de si mesmos é mais que desejada.

Uma maiêutica antifascista venturosa será aquela que não quiser calar o fascista – assim como a feminista não deve calar o machista. Do contrário, seria ela fascista – e machista. Uma dialógica antifascista potente deve suportar o fascista vomitando todas as suas verticais “certezas inabaláveis”. Conduzi-lo a isso inclusive. Claro, de modo que se possa, constantemente, ir minando tais certezas, até que o fascista trema em seus odiosos alicerces, e, por um átimo que seja, ser constrangido a considerar aquilo que ele mais ignora: o ponto de vista do outro.

Uma reflexão de Tiburi é fundamental à maiêutica antifascista: escapar da “falácia ad hominem que é aquela pela qual atacamos o sujeito que profere uma opinião e não a opinião mesma”. Em suma: atacar não o fascista em sua pessoa, mas tão somente as suas opiniões, por mais que ele não veja distância alguma entre si e elas. Atacando-o, o antifascista trata o fascista como um outro dialogicamente irredutível. É fascista sem percebê-lo. Aí é só esperar mais ódio de quem já é possuído por ele. Se o fascista não enxerga o outro por conta de seu ódio, o desafio do antifascista é, inicialmente, encontrar para si um lugar de outro não-odiável, para, finalmente, poder produzir um lugar em comum livre do ódio fascista para ambos.

O antimachismo contemporâneo já faz isso. As feministas que conseguem desmontar muitos machistas, e inclusive alistá-los na sua batalha, não teriam tanto êxito caso os tratassem como inimigos. Exemplo de guerreiras virtuosas, as atuais feministas o são não porque se conformam à – ou aumentam a – distância que os machistas há muito estabeleceram em relação às mulheres, mas porque, em troca, conseguem, dialogicamente, reduzi-la, quiçá anulá-la, reinstaurando assim um lugar em comum no qual os gêneros sejam reconhecidos e respeitados em suas alteridades.

A asserção de face manualesca do título do livro de Tiburi, que para mim ainda é uma pergunta: “Como conversar com um fascista?”, mutatis mutandis, está colocada pela filósofa em forma de questão: “como apresentar a experiência do outro a quem ainda não o conheceu? Como introduzi-lo na experiência da alteridade?”. Em outras palavras: como fazer o fascista reconhecer o outro agredido pelo seu “fascio”, que, se na antiguidade era “um feixe de varas amarradas por correias vermelhas” que simbolizava o poder de punir, contemporaneamente é um feixe de ódios firmemente amarrados por “correias ideológicas” que simboliza o poder de excluir?

A resposta aventurada aqui é a seguinte: assim como o antimachismo do mais jovem feminismo está finalmente conseguindo solapar a sitiada torre machista, minando-a precisamente com a alteridade que historicamente foi expulsa de seu interior, assim também o antifascismo deve abalar os fascistas: restabelecendo o diálogo sempre que eles sistematicamente o interrompem; insistindo contra eles a alteridade para a qual se fecham; até que não consigam mais ignorá-la; não só para que se solidarizem com ela, como principalmente possam vivê-la. Pois, como bem disse Tiburi, “aquele que não conhece a alteridade está morto”.

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