O que assistimos entre Lula e seus oponentes é um círculo – virtuoso para aquele; vicioso para estes – no qual quanto mais Lula é atacado, como objetivo claro de ser excluído do próximo pleito presidencial, mais ele repete que não só concorrerá à presidência da república, como principalmente a vencerá. “Que eles rezem para eu não concorrer à presidência em 2018, porque se eu concorrer, eu vou ganhar!”, diz o ex-presidente, seguro de si. Em resposta, seus inimigos recrudescem ainda mais, lançando contra ele novas e maiores ofensivas e difamações, e assim por diante. De “ladrão de pedalinho” à “chefe da maior organização criminosa da história do país” Lula foi e é chamado pelos que o querem fora da política brasileira.
Agora, por que Lula não se cala, momentânea e estrategicamente, deixando de repetir, reativa e provocativamente, que concorrerá à próxima eleição presidencial e a vencerá, se, com isso, atiçaria menos os pavores e as investidas de seus inimigos elitistas? Por que Lula coloca, ativamente, mais lenha na fogueira, justamente no seu momento mais ardente? Por que anuncia com tanta antecedência uma provável candidatura se isso faz apenas com que seja mais e mais “massacrado”?
Seguindo a lógica do “quanto mais apanha, mais cresce”, “dar a cara a tapa”, em se tratando de determinados “agressores” – no caso atual: uma elite desavergonhadamente corrupta e antidemocrática, é, para um animal político do calibre de Lula, “dar a cara ao povo”, “dar a cara à lei”, e, consequentemente, “dar a cara ao voto”. A “reação” pública de Lula ao “massacre” outrossim público que sofre é estrategicamente proativa: é uma ação antecipada que evita ou resolve problemas futuros. Expor-se e elevar-se intrepidamente é o passo que até aqui mantém Lula na dianteira. “Quem não deve não teme” é o lema que ele parece levar a cabo.
Não obstante, qual seria “o problema futuro” que Lula estaria tentando evitar com sua proatividade política? A resposta quiçá mais política de todas, dita pelo próprio Lula, é a seguinte: “Mais do que nunca, sou um homem de uma causa só. E esta causa se chama Brasil”. Contra os críticos do “populismo de esquerda” do ex-líder sindical, temos que depois de se eternizar como “o maior presidente da história do Brasil” e como “o maior líder mundial do início do século XXI”, Lula pode sim, mais do que nunca, esquecer de si e colocar o Brasil na frente; coisa que oligarca algum jamais conseguirá fazer.
Experiência empírica não tem preço. Passar fome e sede na infância; ser impedido, social e economicamente, de estudar; ser um autêntico – explorado! – proletário já na adolescência; ser marginalizado, e até mesmo preso por se dedicar à construção de uma força sindical potente no Brasil; e, como se não bastasse, no meio do seu longo e árduo caminho à presidência, ser “golpeado eleitoralmente” para que o “Marajá caçador de marajás” Fernando Collor de Melo vencesse o pleito presidencial de 1989; tudo isso só contribui para que Lula soubesse muito melhor do que seus ímpares o que é o Brasil de verdade, e, sobretudo, que outro Brasil precisa ser construído para que o povo – isto é, para que gente como o próprio Lula – não permaneça sistematicamente excluído.
Último capítulo da exibição pública do que me atrevo a chamar de “a ciência empírica de Lula” em respeito à realidade brasileira se deu nesse domingo, 19 de março de 2017, na “Inauguração Popular” da Transposição do Rio São Francisco. Obra prometida ao povo nordestino desde a época do Império que, entretanto, somente Lula, que sofreu concretamente com a carência hídrica daquela região, foi capaz de tirá-la do mundo das ideias; mais ainda: do mundo das mentirosas promessas eleitoreiras. Só ele não é demagógico ao dizer que “nenhum doutor” – referindo-se aos governantes sempre bem-hidratados vindos das elites – “jamais teve consciência da real necessidade de se levar água ao nordeste”.
E, quando, setenta anos depois de passar sede no nordeste, o ex-presidente, com os pés dentro do “novo rio” que ele construiu a partir do “Velho Chico” (o Rio São Francisco), encheu seu chapéu com a água que fez o “Sertão virar mar” e a jogou para cima, qual chuva republicana, Lula fez, mais uma vez, a façanha de juntar inextricavelmente o real e o simbólico em um único ato. E é essa a singular visceralidade do um autêntico animal político que deve ser “abatida” selvagemente por aqueles – as elites – que tanto mais se beneficiam quanto mais distantes estiverem a realidade do Brasil e a ideia de Brasil.
Lula estar se “presidencializando” novamente diante da atual ofensiva das elites é a sua virtuosa estratégia de trazer a luz o fato incontestável de que quem menos merece decidir o futuro do país são justamente os seus algozes. Pode ser que Lula, devido ou à idade ou aos escusos estratagemas de seus oponentes, morra antes das próximas eleições. Mas ser presidente não parece, melhor dizendo, não precisa mais ser o grande e final objetivo de Lula. O fundamental de sua atual pecha pública talvez seja mostrar ao povo, a todos, a violência, o despotismo, a injustiça com que as elites o tratam, que, com efeito, é a mesma com que tratam o povo, e historicamente.