Publicidade

Diário Liberdade
Segunda, 24 Abril 2017 14:58

História de uma indocumentada: a travessia do deserto de Sonora-Arizona - Capítulo 3

Avalie este item
(1 Voto)
Ilka Oliva Corado

Clica na imagem para ver o perfil e outros textos do autor ou autora

Por Ilka Oliva Corado, Tradução de Raphael Sanz

Subimos em um táxi que durante seis horas nos conduziu pelas autopistas do deserto de Sonora. Os táxis que transitam por lá são camionetes Suburban e Hummer em sua maioria, e precisam usar o dobro da tração por conta do tipo de solo que dispõe o terreno.


Por sete vezes o motorista teve de parar em postos de registro da polícia estatal e as setes vezes atuei como uma total mexicana e tudo o que aprendi e estudei sobre o país me foi perguntado. Vi como detiveram dúzias de pessoas que se confundiram em uma ou outra pergunta e se auto delataram como centro ou sul americanos. Nos postos de registro juntam-se dezenas de migrantes que apostam na sorte para chegar aos povoados fronteiriços.

Há policiais que recebem dinheiro para favorecer a fazer vistas grossas aos sotaques e nacionalidades. Há outros que tomam migrantes como reféns porque sabem que lhes sairá melhor pedindo resgate. Há outros ainda que os fecham durante dias com a única finalidade de abusar sexualmente dos migrantes e estes estão entre os mais perversos - os vendem ao crime organizado após os abusos. Muitos dos indocumentados acabam caindo nas mãos de traficantes de órgãos, e também no tráfico humano com fins de exploração sexual e laboral. Outros são recrutados como mercenários para o crime organizado.

No último posto de registro eu não soube responder a uma pergunta mas uma mexicana que viajava com seus sobrinhos menores de dez anos de idade saiu a me resgatar e disse à polícia que eu era sua prima e que era veracruzana que viva há pouco tempo em Morelos. A coyota havia se afastado do grupo e esperava dentro da Suburban. Ao subir novamente, perguntei à moça que não passava dos 30 anos de idade: “por que você me ajudou?”. Ela respondeu: “hoje foi por você, amanhã pode ser por mim”.

As únicas pessoas que utilizam táxis que vão para os povoados de fronteira são os coyotes e os migrantes indocumentados. Isso ocorre porque esses povoados são lugares mortos onde há poucos habitantes, já que a maioria já emigrou para o outro lado da fronteira nos Estados Unidos ou a outros Estados mexicanos.

Faltando pouco para chegar a Agua Prieta, o motorista se deteve em uma taquería e nos deu 15 minutos para comer. Ali presenciei o estupro de uma adolescente que viajava indocumentada em outro grupo e ninguém se prestou a defendê-la.

Chegamos ao restaurante que era em um galpão, na beira da estrada, onde estavam estacionados vários táxis. Lá dentro vi um grupo de aproximadamente sessenta pessoas. Procurei pelo banheiro porque tinha vontade de urinar. Uma das garçonetes me apontou a parte lateral do lugar, o banheiro era do lado de fora. Abri a porta e me surpreendi ao deparar-me com um grupo de onze sujeitos que tinham jogada no chão uma jovem pelada a qual abusavam sexualmente, enquanto uns a sustentavam para que não se movesse, outros esperavam o turno.

Fechei a porta e disse a quem estava nas mesas próximas que ao lado do banheiro estavam abusando de uma moça. Me disseram que já sabiam porque eles haviam tirado ela do restaurante mas que não podiam fazer nada pois os abusadores estavam armados. A resposta me indignou ainda mais porque falaram com uma parcimônia como se tratassem de comida. Um homem de aproximadamente cinquenta anos de idade me disse que era o tio da menina, que tinha somente 19 anos, e que não pôde fazer nada quando o grupo “los batos” entrou no restaurante e a levou para o banheiro. “Todos estão armados e é melhor não se meter senão nos matam a todos. Ela se recuperará”.

Comecei a vociferar contra todos e o piloto do táxi se viu obrigado a me dar uma bronca, tapar minha boca com a mão e me enfiar dentro da Suburban. Dois homens que viajavam conosco se ofereceram como voluntários para assegurar que eu não sairia do carro. Me disse o taxista que era a única forma de garantir que eu não fosse abusada e assassinada ali mesmo, pelo grupo “los batos”.

Momentos depois chegou a coyota que estava pagando os tacos.

Da janela do táxi vi como um por um passava sobre a jovenzinha, satisfeitos todos se retiraram como quem vai a uma loja, compra um doce, paga e vai embora. O tio com mais dois homens foram lá levantar a menina, subiram todos no táxi e partiram pra fronteira.

A imagem da menina sendo violada por esses homens não me deixou dormir durante anos. Eu acordava de madrugada, falando impropérios, suando frio e com as pulsações a mil por hora, aquela cena foi parte dos meus pesadelos, que me perseguiram durante noites inteiras.

Dentro da Suburban eu agarrei a manga da jaqueta que levava vestida e gritei com todas as minhas forças. Mordi a jaqueta até me cansar, todos guardaram silêncio e perderam os olhares entre seus próprios pensamentos e na paisagem do deserto.

O piloto disse que isso era normal e que ainda que denunciássemos, a polícia não faria nada a respeito. Me disse para me sentir privilegiada pois mesmo com os tremendos gritos que dei no restaurante eles não tenham vindo me violar também.

No caminho entre Agua Prieta e Napo desceu a moça de Morelos com seus sobrinhos. Demos um abraço e com ela foi meu agradecimento por haver intercedido por mim diante da polícia estatal.

Ao toque das cinco da tarde chegamos ao hotel El Girasol onde me entregaria à coyota e seria outra a organização que iria se encarregar da travessia pelo deserto para, enfim, me entregar a outra organização, já no Arizona. O que vi nesse hotel também me perseguiu por anos.

Quartos repletos de pessoas apinhadas que deliravam no transe das drogas que haviam ingerido, algumas com comprimidos, outras injetadas. Orgias. Indocumentadas que com sexo pagavam a travessia, outros orando à Virgem de Guadalupe, que tinha altares por toda parte.

Se supunha que tinha de partir essa mesma noite com o grupo de mulheres, mas chegamos com uma hora de atraso e elas já tinha partido. Dessa forma, eu teria de esperar até o dia seguinte para ir com o grupo de homens. As portas dos quartos estavam de par em par, realmente a ninguém importava que fossem vistos regozijando-se e àqueles sob efeito das drogas muito menos. Enumerar as nacionalidades estaria demais porque havia pessoas de várias partes do mundo. O hotel se oferecia como o melhor do lugar e de fato era, em outras pocilgas a sorte era ainda mais incerta.

Essa noite dormi em um quarto com a coyota que conhecia o pai de quem estava encarregado do hotel. Por essa razão tivemos o privilégio de dormir sozinhas sem que nos incomodassem. Nos deram o quarto no segundo andar, bloqueamos a porta com a cama e nela deitamos. O coyote disse que abríssemos a porta somente para ele. Passamos a noite em vigília porque batiam na nossa porta a cada cinco minutos convidando-nos para participar em variedades de orgias que ofertavam álcool e drogas.

Pela manhã fomos tomar café e conhecer o povoado morto de Agua Prieta, recém saído de um filme de faroeste: casas abandonadas com buracos de balas nas portas, hotéis caindo aos pedaços, ruinas de restaurantes, postos de gasolina e farmácias. Ruas vazias com banquinhos banhados por sangue seco. Uma desolação total naquele inferno fronteiriço.

Comemos tacos a dois metros da fronteira que é dividida por uma vala e mais adiante uma muralha de metal que é a famosa “linha” por onde cruzam os que pagam mais de vinte mil dólares.

Na única farmácia disponível comprei três litros de soro, duas maçãs, dois biscoitos doces e uma laranja. Da Guatemala havia levado vendas e unguento para lesões musculares. Às cinco da tarde vesti minha calça preta, meu gorro de montanhista e as luvas pretas, pendurei a mochila nos ombros e me despedi da coyota, que me disse que dormiria ali para esperar notícias de que eu havia cruzado. Faltando cinco minutos para sair chegou o grupo de mulheres que saiu na noite anterior, aquele que eu deveria ter seguido. Foram pegas na fronteira já em território estadunidense e as deportaram. A Patrulha Fronteiriça as deixou na “linha” a uns metros de onde eu havia tomado o café da manhã.

Quando me viram e lhes contaram que eu era a mulher que faltava e que por haver chegado tarde não fui com elas, em um ato sumamente estranho se lançaram sobre mim e me abraçaram todas, choravam e diziam que iriam comigo, porque eu tinha sorte.

A palavra sorte me acompanhou por toda a vida, quando nasci me receberam as mãos de Mamita – minha bisavó materna –, as da minha avó e as da comadrona. Conta a história familiar que eu nasci a columbrón, como nascem os homens e que meu corpo estava coberto por uma manteiga branca como ao nascer das bestas. Em Jutiapa quando as vacas e as éguas dão a luz e se o bebê vem envolvido em manteiga branca; “vê? Esta Chilipuca nasceu com sorte!” E é algo no que acreditei por puro amor à minha bisavó que teve a ousadia e me batizou como Chilipuca. Chilipuca é o feijão preto que em outras partes da Guatemala é chamado de piloy. Fui a filha que mais pesou ao nascer e a única dos quatro que nasceu com comadrona. Essa coisa da comadre é um privilégio que me enche de orgulho.

As mulheres não passavam de trinta anos de idade, estavam cansadas pois levavam uma semana tentando cruzar a fronteira e sempre a Patrulha Fronteiriça as pegava e devolvia para a “linha”. Queriam dormir e tentar cruzar em outra ocasião mas quando me viram desistiram, e não havia forma de fazê-las me soltarem. Me mantinham abraçada, completamente entre muros.

Estavam certas de que comigo cruzariam a fronteira, o coyote lhes deu cinco minutos para que fossem comprar garrafas de água pura. Novamente me despedi da coyota e abordamos três táxis tipo sedan. A forma de fazer isso tinha sido estudada e ensaiada: na porta do hotel estaríamos estacionados e nós íamos sair correndo e nos sentaríamos nas poltronas. De fora, o táxi pareceria vazio, apenas tripulado pelo motorista. Isto era para não levantar suspeitas com a polícia.

Com minha mochila no ombro e minha roupa negra, eu corri e saltei dentro do táxi. Assim foi como o grupo de 17 indocumentados – 8 mulheres e nove homens – cruzou, ou melhor, foi como nós cruzamos o povoado de Agua Prieta até chegar ao deserto, onde foi adentrando o automóvel sem se deter até saltarmos nas escassas moitas onde o coyote encarregado nos daria instruções. Estava por começar minha titânica travessia dos desertos de Sonora e Arizona.

Glossário:

Veracruzana – mulher natural do estado de Veracruz, México.

Coyota – Coyote feminino: pessoa que em troca de dinheiro auxilia migrantes a cruzarem a fronteira entre México e EUA.

Taquería – lanchonete que vende tacos, prato típico mexicano.

Nascer “a columbrón – Nascer primeiro com os pés e por último a cabeça.

Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Doaçom de valor livre:

Microdoaçom de 3 euro:

Adicionar comentário

Diário Liberdade defende a discussom política livre, aberta e fraterna entre as pessoas e as correntes que fam parte da esquerda revolucionária. Porém, nestas páginas nom tenhem cabimento o ataque às entidades ou às pessoas nem o insulto como alegados argumentos. Os comentários serám geridos e, no seu caso, eliminados, consoante esses critérios.
Aviso sobre Dados Pessoais: De conformidade com o estabelecido na Lei Orgánica 15/1999 de Proteçom de Dados de Caráter Pessoal, enviando o teu email estás conforme com a inclusom dos teus dados num arquivo da titularidade da AC Diário Liberdade. O fim desse arquivo é possibilitar a adequada gestom dos comentários. Possues os direitos de acesso, cancelamento, retificaçom e oposiçom desses dados, e podes exercé-los escrevendo para diarioliberdade@gmail.com, indicando no assunto do email "LOPD - Comentários".

Código de segurança
Atualizar

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: diarioliberdade [arroba] gmail.com | Telf: (+34) 717714759

O Diário Liberdade utiliza cookies para o melhor funcionamento do portal.

O uso deste site implica a aceitaçom do uso das ditas cookies. Podes obter mais informaçom aqui

Aceitar