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Diário Liberdade
Terça, 18 Julho 2017 18:27 Última modificação em Quarta, 19 Julho 2017 19:02

“Eu não sou o seu negro”, mas você é o meu monstro

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Rafael

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Laboratório Filosófico [Rafael Silva] Uma das muitas, profundas e verdadeiras frases do filme “Eu Não Sou o Seu Negro” (2016), do produtor Raoul Peck sobre o livro inacabado do romancista, ensaísta, dramaturgo, poeta e crítico social afro-americano James Baldwin, e que é referida diretamente aos brancos racistas norte-americanos, diz que: “Vocês não podem me linchar e me manter em guetos sem se tornarem algo monstruoso”.


Você é o meu monstro

O predicado teratológico de Baldwin, no entanto, não pretendia traduzir algum ódioreativo à histórica violência branca contra os negros daquele país. Ele dizia com todas as letras que não odiava os brancos, pois não era racista. Sua “filosofia” ativista, na verdade, é muito mais uma exposição algo psicanalítica da ignorância e da bestialidade dos sobrinhos brancos do Tio Sam na busca desesperada deles pelo talAmerican Dream.

Baldwin não era tão pacífico quanto Martin Luther King, ou seja, não acreditava que era o amor o caminho para a conquista da igualdade entre as raças. Entretanto, também não era apólogo da violência como os Panteras Negras. Sua percepção do racismo nos EUA se apresentava em termos assaz marxistas. Baldwin dizia, por exemplo, não era “negro”, mas simplesmente um homem. E que “branco”, prossegue o ativista, “é apenas uma metáfora de poder; é simplesmente uma maneira de descrever o Chase Manhattan Bank”.

Para Baldwin, o racismo era fruto tanto da falta de paixão humana, quanto daexcessiva preocupação com números, lucros, vantagens e privilégios de uma parcela – branca – da população em busca de segurança; de ter uma casa com uma cerca branca e de que os filhos pudessem cursar a universidade para, da mesma forma, terem suas casas com cercas brancas e seus filhos estudando em uma universidade. O “virtuoso” sonho americano, da perspectiva do ativista afro-americano, era um maldito círculo vicioso.

O racismo, na visão de Baldwin, era produto do mais desumano patrimonialismo, levado adiante por um povo convencido de sua própria ficção de felicidade. Na verdade, aprisionado por ela. E, prossegue o autor, era justamente a ignorância desses brancos em relação à sua escravidão diante de sua própria ficção que os levava a escravizar os negros; para que estes encarnassem a contradição que os brancos não tinham coragem para enxergar em si mesmos e no seu sonho americano.

A genialidade de Baldwin está em ter percebido que os negros, escravizados e violentados pelos brancos, materializavam extrinsecamente a escravidão e a violência nas quais os próprios brancos estavam imersos, fazendo com que os brancos, subjetivamente, prosseguissem acreditando que seus sonhos eram possíveis. Os brancos eram vistos por Baldwin mais como idiotas do que como indivíduos essencialmente maus. Todavia, tal idiotice os levava à bestialidade. Por isso ele os considerava monstros.

Para Baldwin, contudo, os brancos não desejavam ser monstros, mas qualquer um que, deliberada ou inadvertidamente, linchasse e segregasse um outro, seja por que razão fosse, não teria como deixar ser considerado como tal. A chave da revolução racial baldwiniana, aliás, dependia de os brancos compreenderem que quem faz com um outro o que eles fizeram – e ainda fazem! – com os negros não tem como ser outra coisa senão um monstro.

O primeiro homem na história a racionalizar a monstruosidade, isto é, a fazer umateratologia, foi Aristóteles. Para o filósofo grego, “terathos”, ou seja, monstro, é aquele que não consegue realizar plenamente a sua própria natureza. Por exemplo: alguém que nascesse sem as pernas não realizaria algo da natureza humana: andar; da mesma forma, quem sofresse de alguma deficiência mental não conseguiria fazer o que, para Aristóteles, era o mais próprio do humano: pensar racionalmente. Para o maior gênio da Antiguidade, aquele que não pudesse realizar a potencialidade da natureza humana era um “terathos”.

Baldwin, ao predicar os brancos racistas de monstros, foi astutamente aristotélico. Para o ativista afro-americano, a monstruosidade dos seus conterrâneos violentadores estava no fato de não conseguirem realizar, atualizar em si mesmos, algo indispensável à humanidade, que, segundo Baldwin, era a paixão, ou seja, a capacidade de se apaixonar pelo outro – de outra cor – assim como por si próprios. E nessa carência, que se converte em ignorância, tratavam estes outros como números,como coisas, em suma, como meio de realizarem a sua nunca alcançada, nem tampouco alcançável, felicidade.

A teratologia de Aristóteles está presente em Baldwin quando este faz-nos ver que osracistas são monstruosos na medida em que não conseguem reconhecer o outro racial como igualmente humano. Os brancos violentadores e escravizadores de que fala o afro-americano ativista são bestas incapazes de conhecer o tamanho e a diversidade que é essa coisa chamada humanidade. Entretanto e infelizmente, o realismo de Baldwin – que se confunde com pessimismo – coloca o fim da violência racial dos brancos contra os negros na dependência de os brancos tomarem consciência de sua própria monstruosidade.

Se não é infeliz essa conclusão a de Baldwin, ao menos é ingênua. E isso porque o próprio American Dream, produzido pelos brancos e para os brancos, os impossibilita de tomar qualquer verdadeira consciência, seja do outro oprimido por eles, seja de si mesmos enquanto escravizados por sua própria ficção de felicidade. Baldwin, em “Eu Não Sou o Seu Negro”, apresenta, traumática e objetivamente, o histórico problema do racismo no EUA. Todavia e infelizmente, não propõe um meio para acabar com ovil poder que chama a si mesmo de “branco” sem depender imediatamente de uma – improvável – tomada de consciência desse mesmo vil poder.

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