São frases atemorizantes que circulam folgadamente de uns anos para cá, no webjornalismo alternativo, entre círculos partidários e não partidários progressistas, no seio de movimentos sociais, já alcançando certa força retórica elástica em demais círculos da sociedade.
Basicamente, as preocupações que dão suporte às denúncias giram em torno da observação de comportamentos marcados por ódio às classes populares, social e economicamente mais humildes e marginalizadas, por práticas de intolerância criminosa e agressividade contra as diferenças (sejam elas quais forem) e por um desrespeito, em geral, ao primado dos direitos humanos.
Nessa acepção, enquanto método cotidiano de sociabilidade é plausível que a denúncia ao “fascismo” guarde sentido. Do ponto de vista histórico, um dos traços mais salientes das experiências fascistas europeias e estadunidenses é a mobilização de comportamentos violentos enquanto ingredientes identitários, geradores de coesão interna de grupo.
O “inimigo” a ser “combatido”, vislumbrado como fonte das angústias e do mal-estar da coletividade, tende a ser algum grupo étnico minoritário e, em especial, agrupamentos sociais proletarizados e desapossados de direitos, identificados como sujeitos coletivos potencialmente “criminosos” e “perigosos”.
À maneira de Boaventura de Sousa Santos (“A difícil democracia”, ed. Boitempo, 2016), poderíamos afirmar que se tratam de manifestações de um “fascismo social”. Isto é, a inexistência, a baixa efetividade ou a suspensão de garantias constitucionais e judiciais, que promovem a inibição do exercício das liberdades e dos direitos, assim como submetem os estratos sociais mais desapossados ao arbítrio – seja dos patrões, seja das polícias, seja de círculos outros, agressivos e conservadores.
Marginalizados pelos sistemas sociais contemporâneos não faltam: imigrantes e sem documentos, trabalhadores precarizados, nos países do capitalismo central. Favelados, sem teto, sem terra, vasto contingente de subempregados e desempregados, na periferia capitalista, como o Brasil. O racismo e o preconceito de gênero incrementam o problema.
Os programas policialescos das TVs brasileiras são atravessados por enquadramentos noticiosos e pela difusão de valores tipicamente congruentes com o “fascismo social”.
Contudo, o fascismo, enquanto expressão política e cultural portadora de um projeto de sociedade, é profundamente assentado em uma visão nacionalista. Um nacionalismo agressivo, reacionário, de tonalidade imperialista, que busca responder aos desafios conjunturais do capitalismo, à agudização dos conflitos sociais e de classe no interior do Estado nacional, por meio de práticas coloniais ou imperialistas no exterior.
Mussolini, Hitler, a “doutrina Truman” (de “contenção do comunismo no mundo”, incidindo nas soberanias nacionais latino-americanas), adotada pelo governo dos Estados Unidos, a “guerra ao terror” de Bush Jr., foram alguns exemplos tipicamente fascistas, com significativa projeção na cena internacional.
Todos perseguiam os interesses, combinados, de ampliação da acumulação capitalista, de defesa das suas burguesias nacionais e de atenuação dos conflitos sociais internos. Em outras palavras: enquanto projeto de sociedade ou país, o fascismo só pode ser concebido como experiência dos povos do capitalismo central.
Cá na periferia, inexistindo a figura da “burguesia nacional” – na acepção de uma classe que possua projeto de nação, comprometido com o destino nacional e cioso com a resolução, parcial e tímida que seja, dos problemas sociais internos –, não há fascismo.
Menos ainda enquanto instrumento político com projeção internacional. Aqueles que ora são investidos no Brasil de suposta capa “fascista” nada mais são do que entreguistas.
Entreguistas. Isto é, atores norteados pela ideia de que o país e o seu povo são débeis e incapazes, devendo ficar na dependência da criatividade e dos capitais de fora. Docilmente moldar o país aos interesses alienígenas.
Esses entreguistas – chamemos a eles pelo nome verdadeiro – têm como “projeto de país” o desmonte absoluto de qualquer dispositivo de soberania, de internalização de recursos decisórios sobre os rumos e o destino nacional. Alienação integral do patrimônio público e das riquezas naturais. Desindustrialização, desnacionalização do parque produtivo. Impossibilitar o desenvolvimento educacional e técnico-cientifico do país. Semiescravidão do próprio povo.
A burguesia de cá é uma apaniguada e sócia subalterna, mesquinha e minoritária da espoliação das burguesias forâneas. Com seus representantes de turno, não possui o menor pudor em afirmar que se dedica a “vender o Brasil”.
Como Atílio Borón argumentou acerca da oposição de direita na Venezuela (1), chamar de “fascistas” a burguesia brasileira e os reacionários de outros estratos sociais, que renitentemente almejam ver o Brasil de joelhos ao império, seria um “elogio”. Seria emprestar uma identidade mais imponente aos vende pátria. Com efeito, estes setores sociais conseguem a proeza de situarem-se abaixo do nefasto e desumano fascismo.
A rigor, o Brasil nunca possuiu correntes políticas fascistas, por mais que os eventuais atores coletivos buscassem se espelhar e demonstrar sintonias simbólicas e comportamentais.
O próprio Plínio Salgado, talvez o agente político e intelectual mais expressivo do que se pretende(u) representar como “fascismo tupiniquim”, mesmo com a sua erudição, parcas possibilidades teve para transformar o seu integralismo (dos anos 1930) em pouco mais do que uma mimese colonizada do nazifascismo europeu.
Para quem já leu algum texto de Salgado, veria que o intelectual conservador se apropriava do instrumental marxista para diagnosticar o panorama internacional, a crise capitalista mundial, de modo a pensar as vicissitudes brasileiras. Por óbvio, “rejeitava” as “soluções” propugnadas pelo marxismo.
Os obtusos adeptos do “Escola sem partido” ficariam pasmados em saber que um ícone do pensamento político brasileiro de direita lia, estudava de tudo. Inclusive o marxismo.
No entanto, o personagem não escapava das restrições tipicamente conservadoras de uma nação mergulhada na dependência e na inserção subordinada na divisão internacional do trabalho. Ao modo do que a economia inspirada nas “vantagens comparativas” do clássico liberal britânico, David Ricardo, preconizava, Salgado considerava que o Brasil possuía “vocação agrária”. À produção primário-exportadora deveria se dedicar. Nisso em nada se diferenciava de um símbolo do pensamento entreguista e liberal brasileiro: Eugênio Gudin.
A ditadura civil-militar instaurada em 1964, acriticamente classificada por muitos como nacionalista e fascista, não era uma coisa nem outra. Foi entreguista. Um dos seus primeiros atos foi a proscrição dos nacionalistas nos meios militares, sindicais, estudantis, políticos.
Acabou com a lei da limitação das remessas de lucros do capital estrangeiro, a pedido dos EUA e das multinacionais. Se a ditadura não foi tão entreguista como o governo FHC e a turma reacionária de hoje deve-se à correlação de forças, herdada do período Jango, e às características da época. Mas, a questão não é de grau e sim de essência.
Isso posto, a assimilação colonizada dos cânones neoliberais, que tratam o sujeito humano de maneira unidimensional – exclusivamente como consumidor –, e abstraem variáveis decisivas como Nação e classe, é a verdadeira matriz de pensamento dos reacionários dos nossos dias, a que muitas valiosas companheiras e companheiros designam como “fascistas”.
Estes, em nossas terras, não possuem qualquer sentimento de pátria, qualquer compromisso com o país e o nosso povo. São meros entreguistas. Cabeças de ponte – deliberadas e, em boa medida, irrefletidas – do imperialismo, que almejam destruir o Brasil.
Seguramente um personagem como Mussolini iria cair em gargalhadas ao ver aqueles setores sendo chamados e, sobretudo, projetando imagens de “fascistas”. Os entreguistas tupiniquins conseguem a proeza de ficar abaixo disso. Em qualquer escala moral e política de avaliação.
Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.
(1) Consultar: http://www.cubadebate.cu/opinion/2017/04/25/la-oposicion-democratica-en-venezuela-peor-que-el-fascismo/#.WW7ULoTyvIW