Porém, as manifestações contrárias ao acontecido ainda são vulgares a ponto de colocarem a questão da arte e a questão da liberdade em um mesmo patamar, ou, o que é mais grave, de priorizarem a ofensa à arte em detrimento da afronta à liberdade. Mais do que não resolver o problema, sobrelevar a arte em relação à liberdade faz com que essa própria irresolução sirva (siga servindo) às forças reacionárias; ao próprio MBL. Por quê?
Em primeiro lugar, porque evitar tratar o autoritarismo do MBL apenas como uma censura artística, estética, mas, centralmente, como uma questão ética referente à liberdade enquanto tal, enfim, fazer isso permite apontar a contradição quiçá mais escandalosa desse vil inimigo: confrontá-lo com o fato de que, de um lado, ele se autodenomina liberal, ou seja, defensor das liberdades individuais, mas, de outro lado, furta, assumida e despoticamente, a liberdade tanto dos artistas quanto do público que quer fruir da arte deles. Focalizar na questão da liberdade permite metralhá-los com a crua verdade que lhes cabe: são nada além de conservadores; mais ainda, covardes, pois se disfarçam de não-conservadores mentindo que são “liberais”.
Se os integrantes do MBL realmente acreditam que são liberais, isso só pode se dar porque fazem uma confusão que, infelizmente, é muito comum: identificam totalmente os valores liberais com os valores burgueses. Porém, estes valores são e devem ser distinguidos. De uma parte, porque a burguesia não inventou a liberdade. Apenas precisou dela para alcançar seus propósitos capitalistas. A partir da modernidade os burgueses foram apenas mais uns a fazerem isso. Ademais, distinguir valores liberais de valores burgueses permite reconhecer mais claramente os burgueses que odeiam a liberdade. E há vários deles a serem reconhecidos... Se não o próprio MBL, sem dúvida o poder que o patrocina.
Razão mais importante para levar a discussão sobre o cancelamento da Mostra Queer do campo da arte censurada para o da liberdade ceifada é o fato de a liberdade ser a própria condição da vida civilizada e de todo progresso humano. Diante dela as demais coisas são e devem ser secundárias, inclusive a arte. Só havendo liberdade é que poderá haver arte livre – ciência livre, sexo livre, etc. Não seria absurdo, sem dizer ofensivo, uma arte livre em um mundo opressor? E quão abominável seria aquele que defende a liberdade da arte mas não luta com mais esforço pela liberdade enquanto tal? Só focando mais no valor da liberdade do que no da arte é possível levar o debate para um plano mais universal e efetivo.
Os verdadeiros liberais – não os do MBL, obviamente – sabem que a liberdade é um bem para a arte. E isso porque a liberdade é um bem para qualquer coisa humana. Agora, dizer o contrário, ou seja, que “a arte é um bem para a liberdade”, isso pode ser refutado apenas lembrando-se de que governos totalistas, como o nazista alemão e o comunista soviético, que usaram também a arte como ferramenta de poder, produziram tudo menos liberdade. Só se dá um verdadeiro primeiro passo para compreender e superar casos como o da mostra cancelada pelo Santander quando se deixa a esfera artística, estética, e se passa para a ética, colocando a liberdade como sumo valor humano a ser defendido.
Para mostrar que a liberdade importa mais que a arte, basta lembrar daquela máxima: “os maiores valores são aqueles pelos quais se está disposto a morrer”. Será que alguém, algum artista está disposto a morrer pela arte? Acho que não... Não se arrisca a própria vida por coisas que não valham tanto a pena. E não se arrisca a própria vida pela arte porque ela não é o valor último da humanidade, mas apenas um valor instrumental que, sem dúvida, colabora na obtenção, agora sim, do bem maior que a humanidade pode desejar: a liberdade.
Todos que são contrários ao mentirosamente liberais do MBL têm a obrigação de ser radicalmente liberais – todavia, sem serem burgueses! -, e por dois motivos. O primeiro, para deixar claro, por comparação forçada, que o MBL é absolutamente conservador. O segundo, de suma importância, porque defender a liberdade é lutar em prol do valor supremo da humanidade. Defender a liberdade da arte para o bem da própria arte é fazer metade do trabalho; é ser parcialmente humano apenas. Já aquele que defende a liberdade da arte para que a liberdade humana não seja comprometida, esse sabe o que é instrumentalizar o seu mundo em favor do que mais importa.
No caso Santander/MBL, muito antes da arte enquanto tal e das particulares obras de arte que foram censuradas, foi a liberdade que foi constrangida. Novamente: o problema não é estético, mas ético-político. A afirmação mais contundente, portanto, não é: “a arte deve livre”; mas sim: “deve haver liberdade, incondicionalmente”; pois havendo liberdade, fazer com que a arte seja livre é passo menor e mais fácil. Por isso, todo esforço sério contra autoritarismos como o do Santander/MBL deve se ater à questão da liberdade, apenas lembrada pela questão da arte censurada da Mostra Queer. Nada contra a arte. Mas tudo a favor da liberdade.