Como toda a literatura distópica, a realidade estado-unidense, por mais sórdida e trágica, é sempre rica em benefícios pedagógicos. Seja ela surreal, como Trump a atirar rolos de papel higiénico a porto-riquenhos saídos de uma catástrofe natural enquanto lhes repreende o furacão que está a dar cabo dos resultados económicos, ou rente ao nosso mundo, como a greve de ontem dos funcionários públicos de Lane County, no Oregon, a actualidade dos EUA é simultaneamente horrenda e estranhamente familiar, como um mau presságio que já ouvimos nalgum lado.
Pelo menos 41 mortos, 400 desaparecidos e mais de 4000 quilómetros quadrados de área ardida, são o saldo provisório dos piores incêndios florestais da história da Califórnia que, há três meses, pintam de negro o «Estado dourado». Tanto quanto se sabe, para além da seca extrema e outras condições naturais adversas, o responsável directo é um pirómano contumaz e conhecido das autoridades: a Pacific Gas and Electric Company (PG&E), o monopólio privado que detém toda a rede eléctrica californiana. Condenada em 1994, 2010 e 2015 por falhas de negligência na manutenção da infra-estrutura eléctrica que estiveram na origem de outros incêndios, a PG&E habituou-se a pagar multas milionárias que, contudo, não beliscam os lucros anuais de milhares de milhões de dólares.
Bombeiros penitenciários
Enquanto as populações fogem das chamas, Trump e o governador democrata do Estado, Jerry Brown, apresentam os maiores cortes orçamentais de sempre nos apoios aos bombeiros e na prevenção de incêndios. No orçamento federal para 2018, Trump quer cortar 300 milhões de dólares ao Serviço Florestal, 50 milhões de dólares ao programa federal de prevenção de incêndios e 25 por cento dos apoios às corporações de bombeiros voluntários. Na mesma esteira, o Departamento Florestal e de Incêndios da Califórnia viu reduzido o seu orçamento de 91 para 41 milhões de dólares.
A resposta tem sido a substituição de bombeiros profissionais e voluntários por bombeiros penitenciários: actualmente quase 40 por cento dos 9000 bombeiros que combatem as chamas na Califórnia são presos a cumprir pena. Remunerados com 2 dólares por hora durante turnos de 24 horas, estes bombeiros condenados por delitos menos graves tornaram-se numa opção low cost de combate aos incêndios que, anualmente, permite poupar ao Estado 80 milhões de dólares. Afinal, porquê pôr os presos a limpar matas quando se pode pôr os presos a apagar as matas? A própria procuradora-geral da Califórnia, a democrata Kamala Harris, já avisou que durante a época de incêndios não se pode permitir que medidas de liberdade condicional e saídas antecipadas de presos ponham em causa o combate às chamas.
*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2290, 19.19.2017