O silêncio da mídia brasileira a respeito do falecimento de Daniel Viglietti no último dia 31 é assustador, mas não contingente. Mais um caso que reflete, apesar da sua posição geográfica, o quão longe o Brasil ainda está da cultura hispano-americana. Essa postura de “isolamento” e rechaço com relação àquilo que é produzido nos países vizinhos gera o desconhecimento, por parte de nós, brasileiros, dos diversos sistemas simbólicos cultivados na região latino-americana, fortalecendo preconceitos.
Nascido no Uruguai, Viglietti dedicou sua vida a “semear sementes de utopia”, como registrou o ex-presidente José Mujica. Ao lado de nomes como Alfredo Zitarrosa, Violeta Parra, Atahualpa Yupanqui, Chico Buarque, Elis Regina, Silvio Rodrigues, Víctor Jara e Mercedes Sosa, Viglietti foi um dos maiores cantores da América Latina que, com sua voz e seu violão, entoou palavras carregadas de sonhos e de esperança de um mundo melhor.
Cancioneiro militante, Viglietti se ocupou de intervir na história latino-americana denunciando as opressões que pesam sobre a pátria latina. Quem não se lembrará de sua emocionante aparição em Manágua [1], capital da Nicarágua, em plena década de 1980, com seu violão cantando “A desalambrar”?
Por meio século, a voz de Viglietti rompeu as fronteiras dos continentes, levando com ele a imagem de um Uruguai, de uma América Latina que enfrentou as mais cruéis circunstâncias históricas. Cantou a escravidão pela canção anônima caribenha Duerme negrito, interpretada também por Atahualpa Yupanqui, a velha e nova colonização pelos versos de La senda está trazada, a força do povo latino em Canción para mi América.
A alienação do trabalho no modo como se estrutura a produção também foi tema dos versos de Viglietti em Mi matan si no trabajo, além, é claro, dos horrores dos regimes ditatoriais em diversas canções e interpretações, sendo ainda mais conhecido e emocionante o recital A dos voces [2], apresentado pela primeira vez em 1978, no México, no qual Viglietti canta suas músicas e Mário Benedetti recita seus poemas de maneira intercalada e por temas afins.
Seu compromisso com as lutas populares da região e sua canção militante, levaram Viglietti a permanecer por mais de uma década no exílio. Nos mais de cinquenta anos em que se dedicou à musica, mesclou as formas e os diversos conteúdos de uma realidade igualmente cambiante, sempre registrando sua crença na humanidade, nos jovens, estudantes e nos trabalhadores.
Aos setenta e oito anos Viglietti nos deixa para se juntar a outros nomes da cultura latina e revolucionários que pertenceram a uma época não tão distante, mas da qual restam poucos. Um violão e uma voz que foram capazes de semear utopias possíveis e que, mais cedo ou mais tarde, irão se realizar.
*João frequentou o curso de Ciência Política e Sociologia da Universidade da Integração Latino-Americana, Unila. Atualmente é estudante de Direito da PUC-SP e militante político.
Notas
[1] “Concierto por la paz en centroamerica”. Abril de 1983: https://www.youtube.com/watch?v=BBWVQF8C0yQ
[2] O primeiro recital é de 1978, mas outros foram gravados em diversos países da América Latina e Europa. É possível conferir tanto o livro de Mário Benedetti “Canciones del más acá” (Editora Seix Barral, 1993) como o recital organizado em 2002 pela Universidade de Alicante, na Espanha, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gCHCbtPDbno