Se a produção pode sobreviver, continuar a crescer sem obstáculos, isto é, se pode desenvolver as forças produtivas ilimitadamente,(...) desmorona um dos mais fortes pilares do socialismo de Marx.(...) Mas (...) o sistema capitalista éeconomicamente insustentável. (...) Se, no entanto, aceitarmos com os “especialistas ” o caráter econômico ilimitado da acumulação capitalista, o socialismo perde o piso granítico da necessidade histórica objetiva. Ficamos perdidos nas nebulosidades dos sistemas pré-marxistas que queriam deduzir o socialismo somente da injustiça e maldade do mundo
e da decisão revolucionária das classes trabalhadoras.[1]"
Rosa Luxemburgo
Resumindo o falso problema teórico em uma fórmula simples: estamos, em primeiríssimo lugar, diante da questão da longevidade do capitalismo. Porque sobreviveu ao impacto de sucessivas ondas revolucionárias no passado, e porque a restauração avançou em todos os países em que a revolução social tinha triunfado, o capitalismo passou a ser um intransponível horizonte histórico?
O movimento dos trabalhadores se afirmou como o mais importante movimento social em escala mundial, pelo menos desde meados dos anos oitenta do século XIX. No entanto, não há, no contexto de 2017, cem anos depois do triunfo da primeira revolução socialista, qualquer experiência em curso de transição ao socialismo. O tema do intervalo histórico de cento e cinquenta anos merece, portanto, reflexão.
Porque pode parecer muito razoável retirar conclusões teóricas quando consideradas essas escalas de temporalidade. Teria sido refutado pela história o prognóstico de que as crises recorrentes do capitalismo seriam, inexoravelmente, mais destrutivas? Teria fracassado a esperança marxista de que os trabalhadores seriam um sujeito social da luta anticapitalista capaz de lutar pelo poder?
A transição socialista, a passagem do poder de uma classe privilegiada para uma maioria despojada, algo muito diferente da passagem de uma classe proprietária para outra classe proprietária, prometia, previsivelmente, ser um processo extremamente difícil. E na história tudo que é muito difícil tende a ser longo, demorado, extenso. Porém, o que a história sugere, também, como padrão é que, enquanto existir, uma classe social não pode renunciar à defesa de seus interesses. Tampouco é possível desconhecer os impactos destrutivos das sucessivas crises do capitalismo contemporâneo.
Ainda assim, três paradoxos desafiam o marxismo para a compreensão das revoluções do século XX. O primeiro é que as revoluções sociais vitoriosas, à exceção da russa em 1917, não tiveram o proletariado como sujeito social. Foram revoluções agrárias e populares com forte conteúdo nacional anti-imperialistas que se radicalizaram em revoluções anticapitalistas. Não porque tenha faltado disposição revolucionária de luta à classe trabalhadora. Situações revolucionárias sacudiram os fundamentos da dominação capitalista em grande parte dos países centrais (na Alemanha em 1918/1923/1931, na Espanha em 1936/37, na França 1936 e 1968, por exemplo, além da Itália em 1944/45, ou Portugal em 1975), e em boa parte das maiores nações na periferia. A explicação histórica chave para este desenlace desfavorável remete a muitos fatores, mas para trotskistas, em primeiríssimo lugar, ao papel da social democracia e do estalinismo. Isto significa lembrar que o prestígio destes aparelhos com interesses próprios, portanto, diferentes dos interesses do proletariado, repousava em frações privilegiadas entre os trabalhadores. O que nos remete ao tema da heterogeneidade social e política dos trabalhadores.
O segundo é que a restauração capitalista triunfou, ainda que com particularidades nacionais de cada processo, como na China e na ex-URSS, em todas as sociedades em que a propriedade privada tinha sido expropriada, sem que tenha encontrado pela frente um proletariado com disposição revolucionária de luta, e sem instrumentos políticos independentes para desafiar a burocracia. Houve resistência, por suposto, como demonstrou a repressão contrarrevolucionária na Praça Tian An Men. Não obstante, a explicação histórica para esta dinâmica é mais complexa. Remete às consequências devastadoras das invasões na Hungria em 1956, Tchecoslováquia em 1968 e Polônia em 1981 e às políticas restauracionistas, Glasnot e Perestroyka, impulsionadas pela direção do PC da China com Deng Xiao Ping, e do PC da URSS com Gorbachev.
O terceiro é que todas as revoluções políticas que ocorreram depois de 1989, ou seja depois da queda do Muro, não se transformaram em revoluções sociais e, mesmo quando se radicalizaram na direção de revoluções sociais anticapitalistas, foram interrompidas. A explicação histórica desta dinâmica é ainda mais complexa. Exige uma compreensão do impacto que teve na esquerda mundial, em diferentes níveis, a restauração capitalista.
O intervalo de cento e cinquenta anos
Admitir que os três paradoxos são incômodos é só um dos problemas para um marxismo revolucionário do século XXI. O tema do intervalo histórico é ainda mais perturbador, se considerarmos que os últimos cento e cinquenta anos, pela sua intensidade qualitativa, valem por dois ou três séculos. As medidas da História não são lineares como as dos calendários e relógios, em que todas horas têm sessenta minutos.
O direito à inquietação é legítimo, mas o ceticismo é mal conselheiro. Do ponto de vista do método, a figura filosófica de um proletariado “ontologicamente” reformista, segundo a fórmula “terminal” de Jacob Gorender, fecha uma análise que não pode ser teoricamente conclusiva, pelo menos, enquanto o sujeito social existir e lutar.
Se o capitalismo viesse a evoluir, hipoteticamente, no sentido de um novo modo de produção, sejam quais fossem as novas relações sociais de produção, de tal forma que prescindisse do trabalho assalariado, então sim, seria possível, retrospectivamente, um balanço dessa natureza. Nesse sentido, a última palavra ainda não foi dada. O proletariado pode voltar a agir, revolucionariamente, como já fez inúmeras vezes no passado. Não importa examinar, agora, se o mais provável serão derrotas ou vitórias nas lutas futuras, mas considerar se é possível, e até provável ou não que elas venham a ocorrer. A luta é sempre uma aposta no futuro.
As lutas decisivas, portanto, a revolução, poderiam tardar, mas seriam certas, inevitáveis; a solução política, a conquista do poder, a vitória, seriam possíveis, mas incertas, ou imprevisíveis. Os medos, as vacilações e as inseguranças do proletariado diante dos confrontos decisivos permanecem sendo o argumento final que sustenta, quase sempre, o desalento, a desesperança e o cepticismo nas perspectivas de triunfo de uma estratégia revolucionária: a classe operária teria faltado ao encontro com a História.
Cento e cinquenta anos teriam sido mais que o bastante. O argumento é forte, mas não é novo. Essas posições não surpreendem em períodos de refluxo prolongado, ou depois de derrotas muito sérias. O impressionismo é, no entanto, perigoso em política e fatal em teoria. Os receios e as angústias diante dos desafios da luta de classes se alimentam na força de inércia que atua, poderosamente, no sentido de manutenção e conservação da ordem. As forças de inércia histórica, se apóiam, por sua vez, em muitos fatores (materiais e culturais). Eles não devem ser subestimados. É porque são grandes, que as transformações históricas foram sempre lentas e dolorosas.
São, em geral, necessários grandes intervalos para que a classe trabalhadora possa se recuperar da experiência de derrotas, e consiga gerar uma nova vanguarda, recuperar a confiança em suas próprias forças, e encontrar disposição para arriscar de novo pela via da organização coletiva, da solidariedade de classe, e da mobilização de massas.
A História está repleta de episódios de rendição política de forças, movimentos, frações, partidos, lideranças e chefes. Mas as classes em luta “não se rendem”. Recuam, interrompem as hostilidades, diminuem a intensidade dos combates, duvidam de suas próprias forças, mas, enquanto existem, acumulam novas experiências, reorganizam-se sob novas formas e voltam à luta. As classes podem agir, por um período, maior ou menor, contra os seus próprios interesses. Nenhuma classe social faz“haraquiri”. As batalhas, os combates, cada luta, são nessa escala e nessa proporção, em uma perspectiva histórica, sempre batalhas parciais e transitórias, vitórias ou derrotas circunstanciais e momentâneas.
As relações de forças se alteram, e podem ser mais desfavoráveis ou menos, com seqüelas mais duradouras ou mais superficiais. Entretanto, não existe “suicídio” político para uma classe social. Uma classe social pode ser “destruída materialmente”, para usar uma expressão brutal, em função de um processo de desenvolvimento ou regressão histórica profunda, e deixar de existir enquanto sujeito social. Isso também já ocorreu variadas vezes na História. Mas, sempre, de forma involuntária: enquanto existir, ou seja, enquanto for econômica e socialmente necessária, resistirá e lutará.
Se o fará com disposição revolucionária ou não é uma outra questão, e esse é, em nossa opinião, o foco apropriado para a discussão dos vaticínios marxistas sobre o papel do proletariado.
Uma aposta na política, para o marxismo, em nossa opinião, significava que o proletariado, mesmo com todas as imensas limitações objetivas e subjetivas que o condicionavam, mais cedo ou mais tarde, se veria diante daúltima alternativa, o caminho da luta pelo poder. Poderia precisar de um longo período de aprendizagem sindical parlamentar para esgotar todas as outras vias, para vencer as ilusões, por exemplo, nas possibilidades de reformar o capitalismo. Poderia, também, dispensar ou abreviar, as décadas de experiência na colaboração de classes: porque as lições se transmitem por variadas formas, e mais intensamente, na medida em que a dinâmica internacional da luta de classes se acentua.
Os proletariados aprendem com os processos de luta de classes uns dos outros, em diferentes países, e não necessariamente teriam que repetir sempre os mesmos caminhos. Mesmo em um mesmo país, as “vantagens do atraso” permitem que destacamentos da classes trabalhadora, aprendam com a experiência dos sectores que se lançaram à luta na frente de forma pioneira.
Há, todavia, momentos na História em que as massas, exasperadas por décadas de exploração e perseguição, perdem o medo. E se inclinam, então, perante a “última alternativa”. É aí que a revolução surge aos olhos de milhões não só como necessária, mas como possível. Quando e em que circunstâncias, é um dos temas mais difíceis. Mas esses momentos são mais freqüentes do que se pensa. Quando o proletariado perde o medo ancestral de se rebelar, perde até o medo de morrer, toda a sociedade mergulha em um turbilhão, em uma vertigem da qual não poderá emergir sem grandes convulsões e mudanças. E se esse sentimento for compartilhado por milhões, então, essa força social se transforma em força material, maior do que os exércitos, do que as polícias, do que as mídias, as igrejas, maior do que tudo, quase imbatível. Esses momentos são as crises revolucionárias. Que a maioria das revoluções do século XX tenham sido derrotadas não demonstra que não venham a ocorrer novas ondas revolucionárias no futuro.
[1]LUXEMBURGO, Rosa, “El Problema en discusión” in La acumulacion de Capital, México, Cuadernos de pasado y Presente 51, 1980, p.31. Este ensaio é também conhecido como a Anticrítica.
Fonte: Esquerda Online