A crença nessa “boa burguesia” pode receber as formulações brilhantes e com “átomos de verdade” de Nelson Werneck Sodré ou estar na vulgaridade de um Bresser Pereira. Na atual quadra histórica, os defensores dessa “tese”, transitam entre o cínico e o vulgar. Funcionando, objetivamente, como intelectuais da classe dominante para manter a hegemonia burguesa e retirar da perspectiva política dos trabalhadores e suas organizações qualquer horizonte de autonomia de classe e projeto radical de enfrentamento à ordem.
É curioso que, no atual momento no Brasil, nessa guerra de classe com o fim de conquistas de quase 100 anos de existência, ainda se busque uma “boa burguesia” para fazer alianças. É uma espécie de “Síndrome de Estocolmo” política onde, quanto mais a classe dominante ataca, mais se reforça a existência de um setor – nunca demonstrado empiricamente – que é nacional, democrático e popular. No presente conjuntural brasileiro, em pleno início de campanha eleitoral, os dois candidatos que apresentam essa “ilusão” de maneira mais acabada são Ciro Gomes e Lula. O primeiro, com um pouco mais de consistência e o segundo, como sempre, com sua retórica característica de um semideus crente que é capaz de transformar a burguesia industrial no que ela não é.
Já tive a oportunidade de escrever e debater muito sobre a impossibilidade de qualquer projeto nacional com qualquer setor da classe dominante dado seu caráter estruturalmente antinacional, antipopular, antidemocrático, colonial e subordinado ao imperialismo em uma estrutura de cooperação antagônica (mais cooperativa que antagônica). Nesse escrito pretendo aproveitar um tema do momento para mostrar, partir de uma análise no calor da hora, qual é o comportamento político e a consciência de classe de um segmento expressivo da burguesia industrial brasileiro: o setor de produção de aço.
O governo Trump, buscando conter a ascensão chinesa ao papel de protagonista mundial na produção industrial e maior detentor da ciência e tecnologia de ponta [1], assume uma agressiva e contundente política de reindustrialização através de uma série de iniciativas políticas, entre elas uma ampliação gigantesca do histórico protecionismo estadunidense. Recentemente, anunciou “novas taxas de 25% nas compras americanas de aço produzido em outros países” [2] e taxas de 2% a 10% na compra de alumínio de outros países [3]. A medida visa reduzir a demanda interna dos EUA sobre o produto e fortalecer a produção das aciarias do país. Como isso afetaria o Brasil (todas as citações são de matérias que estão nas referências ao final do texto)?
Somos é o segundo maior exportador de aço para os EUA, depois do Canadá, e o primeiro em vendas de aço semiacabado – matéria-prima para produtos laminados – ao mercado americano. Em 2017, a indústria brasileira faturou US$ 2,6 bilhões, ou R$ 8,3 bilhões, em vendas totais de 4,7 milhões de toneladas de aço para os americanos, segundo dados oficiais do setor.
Temos 70 mil trabalhadores no setor da produção do aço que seriam afetados, provavelmente perdendo o emprego, se essa política protecionista do Governo Trump se consolidasse. O governo dos EUA usa o expediente previsto na seção 232 da Lei de Expansão do Comércio de 1962, alegando prevenção a segurança nacional. O principal alvo, por suposto, é a China, mas países como Brasil e Canadá, serão fortemente afetados. Frente a essa ameaça qual é a postura da burguesia do setor? Vejamos.
Em primeiro lugar, a burguesia produtora de aço, representada pelo Instituto do Aço Brasil, afirma que os EUA não precisam se preocupar com nosso país pois “no nosso entendimento, o Brasil não é parte do problema, mas da solução. Em torno de 80% das nossas exportações são de aço semi acabado, que são relaminados pela indústria siderúrgica americana. Os EUA têm superávit na balança comercial com o Brasil”. O Governo Brasileiro, através da presidência e Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, na busca por retirar o Brasil da política protecionista, argumentam a mesma coisa: não somos um concorrente, mas um fornecedor de matéria-prima para as aciarias dos EUA.
E realmente somos isso mesmo. Nas últimas décadas, com o brutal processo de regressão da estrutura produtiva do país, o nosso papel na divisão internacional do trabalho é fornecer produtos com graus sempre menores de processamento industrial para as indústrias dos países centrais do capitalismo e sudeste asiático. A burguesia do setor e os representantes do Estado [burguês] brasileiro não apenas estão totalmente adequados à essa posição, como declamam gritos lacrimoniosos lembrando nosso papel subalterno aos EUA:
“A indústria de aço do Brasil não é uma ameaça”, afirma a carta assinada pela BIC (Brazil Industries Coalition), principal grupo de defesa das indústrias brasileiras em Washington. O material é acompanhado de gráficos sobre a balança comercial entre os dois países (positiva para os americanos) e o número de empregos gerados pelas siderúrgicas brasileiras nos EUA (pouco mais de 70 mil).
O presidente do Instituto do Aço Brasil afirmou em inúmeras entrevistas que caso as negociações para retirar o Brasil da política protecionista não deem certo, pode recorrer à Organização Mundial do Comércio (OMC) que é controlada… pelos EUA. Entidade que o governo Trump vem esvaziando e paralisando sua capacidade de exercercer qualquer papel de regulação real do comércio capitalista mundial.
Nos últimos dias, nas páginas da Folha de São Paulo, governos e burguesia já falam em política de “retaliações” colocando a compra de carvão dos EUA (as siderúrgicas brasileiras usam o carvão gringo como combustível), venda da Embraer para a norte-americana Boeing e “pressionam” o empresariado [burguesia] gringo para convencer Trump a “aliviar” para nosso país. Paralelo a isso, as centrais sindicais da ordem (CUT, Força Sindical, CTB, NCST, UGT, CSB) lançam manifesto na posição de retaguarda política da burguesia onde dizem:
“anúncio da medida causa enorme preocupação de que, se a taxação for confirmada, as exportações brasileiras de aço e alumínio serão afetadas, com diminuição da produção e, consequentemente, dos empregos no Brasil. A intenção é preservar milhares de empregos que serão perdidos na cadeia produtiva do setor e a cota de exportação; é importante também o governo brasileiro buscar negociação com governo americano, acionar a OMC (Organização Mundial do Comércio) visando diminuir os impactos da adoção da tarifa imposta pelos Estados Unidos” [4]
As centrais, o governo, a burguesia e os monopólios de mídia trabalham tendo como premissa inquestionável – versão tupiniquim do “fim da história” – que a posição subordinada do Brasil na produção siderúrgica não pode ser mudada ou questionada, mas no máximo negociada em “melhores termos”. Não está na agenda, por exemplo, um plano de substituição de importações criando demanda interna ao aço semiacabado brasileiro forjando as condições para completar o ciclo de produção da mercadoria em solo nacional e ampliando a demanda interna para manter vivo o setor. Caso estivesse em jogo romper essa dependência, enquanto política imediata, a primeira medida do governo poderia ser forçar a indústria instalada no país que importa aço dos EUA a suspender a importação e comprar da indústria “nacional” instituído uma política de conteúdo local – criando as condições para a indústria local, através de crédito, subsídio e parcerias comerciais com países como a China, por exemplo – e a longo prazo, dentro de um plano de expansão de ciclo industrial, procurar realizar essa cadeia produtiva nacionalmente.
Note que a “divagação” sobre essa “solução” não parte de um prisma revolucionário, socialista, radical, mas uma política industrial nacional totalmente compatível desde uma perspectiva ideal com a ordem burguesa. Por que isso não é feito? A economia brasileira, enquanto capitalismo de tipo dependente, não pode buscar uma “emancipação econômica nacional” em um setor sem buscar articular toda uma política coerente e sistemática de enfrentamento à dependência e o subdesenvolvimento. As pressões dos EUA e das multinacionais instaladas no Brasil, através de vários mecanismos, poderiam forçar um recuo fácil do governo brasileiro.
Segundo, um projeto de rompimento com a dependência e o subdesenvolvimento passa, necessariamente, por enfrentar, por exemplo, o fechamento do ciclo do capital voltado para fora atacando o raquitismo do mercado interno. Ampliar o mercado interno de forma real, sem bolhas de crédito de curta duração, passa por medidas como combate à superexploração da força de trabalho, mudança na política tributária (desonerando os trabalhadores e camadas médias e acabar ou reduzir imposto sobre bens de consumo popular), reforma agrária, redirecionamento do fundo público etc. Evidentemente, sempre há espaço para ampliar o consumo interno via distribuição de renda reversa privilegiando os altos segmentos das camadas médias e a burguesia incitando o consumo suntuário (como no ciclo de crescimento do “milagre econômico” e o primeiro Governo FHC), mas essa faixa de consumo também têm limites evidentes.
Temos um aparente paradoxo: não é possível enfrentar aspectos da dependência sem colocar toda estrutura das relações de produção dependentes em jogo – enfrentar de maneira séria e consequente, quero dizer. Como a burguesia interna brasileira, não importando o setor, não pode questionar a dependência e o subdesenvolvimento, dado sua existência está fundamentada nessas relações, sobra, apenas, negociar os níveis de dependência procurando “melhorar” nossa posição na divisão internacional do trabalho – como defendeu FHC durante toda sua vida.
Nesse caso, considerando todas as variações da correlação de forças, vamos imaginar que o Governo Trump não retire o Brasil do seu pacote protecionista (a retirada do Brasil daria força para outros países pleitear o mesmo), qual será a consequência? A elite da produção de aço junto ao Governo não irá até às últimas consequências no enfrentamento e morrerá fazendo muito barulho, mas de forma patética.
Que consequências estratégicas tirar de mais esse episódio? Aceitar a realidade dos países de capitalismo dependente, em primeiro lugar, dando fim a esperar de uma burguesia “à la revolução inglesa” que nunca virá e entender, a partir disso, que todo projeto nacional terá que impreterivelmente ser socialista, única perspectiva possível de romper com o subdesenvolvimento e a dependência na periferia do sistema.
*Militante do PCB de Pernambuco
Fonte: PCB.