A pergunta surge logo: Será que é possível manter umha militáncia revolucionária sem “acreditar” na vitória incontornável da revoluçom?
Por paradoxal que poda parecer, de maos dadas com o mecanicismo que afirma a existência de um plano histórico preestabelecido, situa-se o voluntarismo. Paradoxal, porque a crença num plano futuro já escrito e previsível permitiria esquecer a militáncia, à espera de que o inevitável vinhesse a acontecer.
No entanto, o mecanicismo costuma ser acompanhado polo hiperativismo, que pode chegar a ser compulsivo e irrefletido, geralmente seguidista e acrítico. É o típico comportamento das diversas famílias da ultraesquerda, especialmente em tempos de contrarrevoluçom como estes que vivemos. Com um grau elevado e crescente de alienaçom social, o ativismo voluntarista partilha com o resto da populaçom a superficialidade da sua praxe, submetida a forças fora do seu controlo numha vida social marcada por umha crescente mercantilizaçom de todo. Tal como os adeptos de vídeo-jogos, de desportos-espetáculo, de práticas “alternativas” diversas ou de séries e shows televisivos, a militáncia política transita pola realidade em bicos dos pés, na insatisfaçom das suas práticas alienantes e sem disponibilidade para aprofundar no estudo crítico da realidade.
Nem sequer as sucessivas derrotas impostas por umha correlaçom de forças desfavorável, assi como pola superficialidade das próprias abordagens políticas, motiva retificaçons, pois se renuncia ao estudo aprofundado do terreno da luita de classes. Em lugar disso, desenvolvem-se fantasias, mitos e tópicos recorrentes para autojustificar as derrotas do dia a dia, mantendo o ativismo instalado unicamente na fé e, portanto, no irracionalismo. Se a estratégia repetida nom bate certo com a realidade, deve ser culpa da realidade!
Se tivéssemos que recuar na história para detetar as raízes da corrente voluntarista, talvez chegássemos ao setecentista genebrino Jean-Jacques Rousseau, grande intelectual progressista dos primórdios da modernidade, representante na altura de setores gremiais e pequenos proprietários. Há quem considere Rousseau um dos primeiros líderes “anticapitalistas” nos tempos da burguesia ascendente, ainda em tempos pré-Revoluçom Francesa. Defensor do assemblearismo e do retorno à natureza, reivindica a vontade geral e o subjetivismo utópico, simbolizando a democracia radical burguesa, quando a burguesia ainda era revolucionária. Dele ficou o legado teórico do contratualismo como forma democrática de transaçom política entre setores com interesses sociais opostos.
Claro que, na atualidade, e desde 1848 segundo a análise de Karl Marx, a burguesia perdeu qualquer carácter revolucionário. O avanço imparável do desenvolvimento das forças produtivas alterna com a destruiçom periódica e parcial das mesmas, em ciclos bélicos de diversa dimensom com que se enfrentam as crises mais profundas. Garante-se assi a continuidade do esquema de exploraçom económica e o domínio político da classe burguesa. É essa ideologia alienante e decadente que mantém o potencial novo sujeito revolucionário, a classe trabalhadora, atrelado a práticas de reproduçom do sistema. Especialmente após derrotas históricas como a marcada polo fim do chamado “campo socialista”, o proletariado parece incapaz de assumir a consciência necessária para retomar a luita histórica por umha nova hegemonia de classe que a converta, como Marx previa, em “classe universal”.
O alemám Friedrich Wilhelm Hegel, de umha geraçom anterior a Marx e posterior a Rousseau, representa a visom objetivista e racional, embora tambem idealista, da burguesia ascendente. Monárquico constitucional, sacrifica a democracia e defende a meritocracia e a burocracia, atribuindo à sociedade civil o papel de mediaçom entre a família e o Estado. Defensor da Revoluçom Francesa, mas nom da corrente jacobina, torce mais pola que Lenine chamará mais tarde 'via prussiana' para o capitalismo (de cima para baixo, sem revoluçom). Quer dizer, o processo nom revolucionário, pilotado pola burguesia em aliança com a aristocracia agrária, que levou à unificaçom alemá. Formula o fim da história e os interesses particulares egoístas submetidos à autoridade do Estado, surgindo dessa dialética —na sua conceçom— o bem comum. Entre os seus importantes contributos, Hegel situa a nova leitura da categoria “sujeito” como coletivo, frente ao individualismo que acabará impondo-se na perspetiva analítica burguesa, umha vez assente no poder. Hegel representa, portanto, um importante antecedente da categoria ‘classe’ formulada por Marx.
Com efeito, Marx deteta em Hegel ambos os aspetos: o revolucionário que aplica a dialética à história, que compreende o carácter coletivo dos sujeitos históricos (as classes) atuantes na mesma; e o idealista-conservador que considera o poder da burguesia a perfeiçom e o fim dos antagonismos históricos. Daí a importáncia da superaçom desses limites hegelianos, pondo a dialética idealista “sobre os pés” materialistas, para quebrar qualquer ilusom no fim das contradiçons históricas após a Revoluçom Francesa... como a história provou logo. Daí partiu a formulaçom do novo sujeito revolucionário surgido do mundo burguês, único em condiçons de empurrar a história para a frente: o proletariado.
Se algo nom previu suficientemente Marx, talvez fosse a longa trajetória que ainda iria percorrer a burguesia no poder. Daí que, regressando ao presente, em tempos reacionários de decadência burguesa e sem alternativa revolucionária aparente à vista, a tendência da esquerda seja a de repetir a sua versom mais individualista, pobre e dependente em relaçom à ideologia da classe dominante. Aí estamos.
A esquerda nom vai além de um ativismo sem verificaçom, com doses crescentes de irracionalismo, romantismo e consignismo superficial, quando nom de aberto confronto com qualquer aspiraçom de cientificidade e progresso, entendidos como procura da refutaçom ou ratificaçom das próprias teses. Incapaz sequer de formular um programa de superaçom do capitalismo, as diversas famílias em que ficou fragmentada deambulam hoje entre o oportunismo direitista do cretinismo parlamentar e o desabafo voluntarista acima descrito, cobrindo ambas tendências as carências programáticas com constantes apelos éticos, mas sem perspetiva nem disponibilidade para um estudo e umha análise a sério da realidade que se quer transformar. No máximo e para além da autoconsideraçom da maior parte das correntes, a revoluçom foi trocada pola transgressom.
Na verdade, basta voltar à parte final do Manifesto Comunista para encontrar os diversos ingredientes dessa esquerda que, como a burguesia, ainda subsiste entre nós (irracionalismo, reformismo, humanitarismo, utopismo...). Também nisto, regressar a Marx dá acesso às ferramentas analíticas fundamentais para reativar a consciência de classe como o que ela é: parte constitutiva do ser social e nom simples reflexo da matéria. Como tal, integrante fundamental de um programa para o nosso tempo, imprescindível e pendente de construçom.
A formaçom, entendida como dialética entre a prática militante e o estudo teórico, precisa de umha recuperaçom urgente, se quigermos deixar de reproduzir os mesmos erros que já tantas vezes nos levárom ao fracasso. Nom porque assi garantamos umha vitória certa, garantia impossível num mundo sem teleologia histórica, mas si para que podam existir possibilidades de disputá-la na próxima crise sistémica que, empurrada polas legalidades internas do atual modo de produçom, essa si, sem dúvida virá.