Dixi et salvavi animam meam.
Assi conclui umha pequena obra escrita por Marx em 1875, no mesmo ano em que foi realizada a talvez mais conhecida fotografia do génio de Tréveris. Aquela em que aparece, com as longas barbas e o cabelo quase totalmente branco, sentado numha cadeira de braços, de mao ao peito, com um monóculo sobre a lapela e a outra mao na perna, a olhar para a objetiva.
Refiro-me aos chamados “Comentários marginais ao Programa do Partido Operário Alemám”, mais conhecidos como Crítica do Programa de Gotha, em que o velho “Mouro”, calejado por umha vida de inteira entrega ao estudo e à militáncia, parece antever a degenerescência do movimento revolucionário. Um temor à deriva que iria culminar na tendência revisionista que, convertida em social-chouvinista, apoiaria os créditos de guerra na Alemanha e, com poucas exceçons, no resto da Europa, na I Guerra Mundial. Nesse texto, Marx fai a crítica da desconexom ideológica com as bases do socialismo científico que acabava de ser aprovada no congresso de fusom entre o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores, de Liebknecht e Bebel, e os lassalleanos da Associaçom Geral dos Trabalhadores Alemáns, da qual surgiu o Partido Social-Democrata da Alemanha.
A questom do Estado tem máxima atualidade, quando a esquerda descambou para leituras weberianas, contratualistas ou outras mistificaçons sobre umha suposta neutralidade daquilo que Marx e Engels denominárom “comunidade ilusória”, n’A ideologia alemá.
Poderíamos dedicar estas poucas linhas a sintetizar a génese histórica da categoria “Estado”, segundo foi exposta por Engels, cumprindo umha tarefa comum logo após a morte de Marx, a partir dos apontamentos da sua leitura do mais avançado antropólogo da época, o norte-americano Lewis H. Morgan. O resultado foi A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884). Apesar de muitas das informaçons concretas ali manejadas serem posteriormente ultrapassadas polo desenvolvimento da ciência, ficou clara a tese, até hoje incontestável, do surgimento do Estado como desdobramento da divisom social do trabalho, das classes sociais, da família patriarcal e da propriedade privada.
Desse “pacote”, interessa-nos agora falar do Estado, esteio da contraditória organizaçom social em classes; tam racional no seu nascimento, como na sua inevitável desapariçom, que poderá vir de umha exigência do seu próprio desenvolvimento histórico, com a superaçom da forma societária classista. Segundo a tese de Marx (e de Engels), a classe que trabalha, responsável pola produçom da riqueza social, fica nesse processo histórico progressivamente relegada por quem se apropria dessa riqueza sem trabalhar. Dito por outras palavras, a classe dominante ocupa posiçons de comando político e consegue pôr o Estado ao seu serviço, por cima da sociedade civil; e fai-no com tanta habilidade que o converte na única instituiçom social que passa por ser “de todos”. Daí o seu carácter de “comunidade ilusória”.
Mais próximo do que hoje é, podemos situar o nascimento do Estado moderno na reaçom da classe dominante numha feudalidade em crise, que obrigou à centralizaçom de poderes até aí dispersos, num aparelho com novas atribuiçons, comandado por um rei “de todos”. Como costuma acontecer na história, a açom teleológica humana cruza-se com outras teleologias e com as causas objetivas presentes na temporalidade histórica, favorecendo, no fim das contas, um resultado inesperado. Neste caso, será a burguesia que, progressivamente, tomará conta do aparelho estatal, transformando o Estado Absolutista em Estado-Naçom, totalmente funcional às novas relaçons de produçom capitalistas.
A racionalidade desse longo processo histórico que conduziu à hegemonia mundial burguesa ainda pode ser detetado na organizaçom estatal, com a sua administraçom, a sua burocracia, justiça e demais aparelhos de controlo e planeamento político-económico.
Porém, frente à formulaçom hegeliana da racionalidade absoluta do Estado como máximo desenvolvimento harmónico da sociedade, Karl Marx fai a crítica materialista dos limites da forma estatal a partir do seu oculto conteúdo de dominaçom de classe.
Tendo assistido à experiência da Comuna de Paris de 1871, Marx interpretou-na como marco para umha nova fase na luita inevitável da classe operária contra a burguesa e contra o seu Estado, o que abre novas expetativas para a sua superaçom dialética (nom mecánica).
É, com efeito, nos momentos de crise, quando fica mais clara a condiçom contraditória do Estado como aparelho erguido por cima da sociedade, de carácter parasitário, com toda a sua maquinaria, organismos, corpos burocráticos e exércitos de segurança ao serviço da classe dominante. A contradiçom está em que, ao mesmo tempo, expressa o conflito na correlaçom de forças no interior dessa classe dominante; entre ela e as restantes classes que formam a sociedade civil; e em relaçom a outros estados que disputam o mercado mundial. Isso explica que nom todos os estados sejam idênticos, pois o desenvolvimento das luitas de classes é desigual em cada espaço nacional-estatal e na pugna entre estados.
Tampouco a origem dos estados-naçom modernos é única. Nem sequer nos que som fruto direto de revoluçons burguesas, pois, admitindo a possibilidade de abstrair modelos, podemos diferenciar o modelo clássico (francês, inglês), do americano (anticolonial), ou do que Lenine irá chamar “prussiano”, em referência às “revoluçons” dirigidas de cima para forçar a adaptaçom do aparelho de poder feudal às necessidades do novo mercado capitalista (Alemanha, Japom, Itália…). Em todos os casos, haverá particularidades e identidades.
Marx realiza, estando ainda na casa dos vinte anos, a sua análise da natureza do Estado (Crítica da filosofia do direito de Hegel, Sobre a questom judaica, A ideologia alemá…), esclarecendo, como já indicamos, o inevitável confronto com a sociedade civil, ao elevar-se sobre ela, para lhe impor a sua iniciativa de classe, mas apresentando-a como “gestom dos interesses comuns”. Daí passa a um nível mais concreto, na análise das luitas que se desenvolvem diante dos seus olhos, em obras como o 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852).
É verdade que n’O Capital nom chegou a desenvolver devidamente o tema do Estado, que estava pensado para completar o tomo inacabado da sua magna obra. No entanto, como noutros temas, a categoria estatal pode ser detetada num plano mais abstrato já desde o livro primeiro.
Na sua indagaçom sobre as origens do capitalismo e sobre o papel dos estados ao serviço do mercado e dos diferentes capitais confrontados, assi como sobre a vocaçom mundial do sistema, Marx abre as portas para estudos posteriores sobre o imperialismo, quer na etapa colonial (Lenine), quer nas relaçons de dependência que continuam após as descolonizaçons (Rui Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e demais representantes da Teoria Marxista da Dependência).
Porém, nesta rápida aproximaçom à questom do Estado em Marx, começamos e acabamos no texto a que figemos referência no início: Crítica do Programa de Gotha. Porquê?
Porque nele detetamos a ligaçom entre a teoria filosófica de partida, representada por Marx, e a orientaçom política concreta da questom do Estado hoje, em que a esquerda perdeu o norte da perspectiva revolucionária e da superaçom da forma estatal como núcleo do seu programa histórico.
Nesse texto, Marx critica as posiçons democratistas que a corrente de Ferdinand Lassalle transmitiu ao programa aprovado no congresso unificador de Gotha, com base na idealizaçom hegeliana do Estado. Recorrendo a umha fraseologia radical, a corrente lassalleana propunha a integraçom do movimento revolucionário nos parámetros da institucionalidade burguesa, reclamando-lhe frutos que ela nom podia dar: “absoluta equidade”, “direito igualitário”, “Estado livre”... A crítica de Marx é profunda: “Em vez de tomar a sociedade existente (e o mesmo podemos dizer de qualquer sociedade no futuro) como base do Estado existente (ou do futuro, para umha sociedade futura), considera o Estado como um ser independente, com os seus próprios fundamentos espirituais, morais e liberais”.
Idêntica crítica, com base no flagrante desconhecimento lassealleano do funcionamento da sociedade burguesa, é atribuída à suposta “lei de bronze dos salários” e a outras proclamas aparentemente esquerdistas que carecem de sentido, ficando num “praticismo” carente de qualquer perspetiva transformadora. O livrinho a que fazemos referência é breve, de fácil leitura e revelador da integraçom no sistema que já iniciava a principal corrente socialista da época, o que alarmava o velho Marx.
Com efeito, o novo partido revolucionário alemám acabou por liderar a degeneraçom social-democrata, tal como Marx temia. Assumindo os pressupostos e natureza do Estado burguês, a esquerda fijo suas as regras de um “jogo” em que o Estado se apresenta como “bem comum” com umha funçom “autónoma” das forças sociais em disputa. Umha ficçom em que a esfera económica responderia unicamente às normas espontáneas que o “livre-mercado” impom.
A importáncia da compreensom crítica do Estado está na explicaçom que a sua natureza nos dá sobre o caminho transitado pola esquerda, em direçom à sua absoluta derrota pola via da integraçom nessa ilusom democrática burguesa. Isso explica que os atuais programas da grande maioria das forças de esquerda, “pró-” e “anti-sistema”, tenham como principal conteúdo “a radicalidade democrática” no plano político. Nom no plano económico, porque isso suporia pôr em causa o “livre-mercado”, a propriedade privada dos meios de produçom e a compra-venda de força de trabalho… muito mais do que os limites democráticos burgueses iriam permitir.
A alternativa? Para Marx, a crítica radical da forma estatal burguesa e a conquista de umha nova, que chama ditadura do proletariado, entendida como transiçom democrática levantada sobre as ruínas da velha ordem, ao serviço de umhas novas relaçons de produçom sob hegemonia da classe trabalhadora. Isto é, o socialismo, entendido como socializaçom dos meios de produçom e o fim da exploraçom, convertendo-se, aí si, os interesses da nova classe revolucionária, o proletariado, nos verdadeiros interesses do conjunto o género humano.
Talvez este seja o momento, para quem nom o tenha feito ainda, de traduzir a frase inicial deste artigo, com que Marx concluía, como que transmitindo um estado de ánimo, a sua Crítica do Programa de Gotha: “Dixem e salvei a minha alma”.