Resenha Livro – “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” – Karl Marx – Editora Boitempo
Durante algum tempo foi comum certa leitura das obras de Marx sem relacionar os seus trabalhos com a evolução do seu próprio pensamento, inicialmente voltado a temas do direito e da filosofia e ao término de sua vida com o estudo mais detido da história e da economia política. Há parcela de estudiosos de Marx, tendo como referência as ideias de Althusser, que entende haver um corte epistemológico entre um jovem Marx e um Marx maduro tendo como divisor o “Ideologia Alemã” de 1846, publicado somente em 1932 na URSS.
Este “18 de Brumário” foi escrito entre 1851-2, logo após os eventos em França narrados no trabalho. O livro aborda a 2ª República Francesa de 1841-51, um movimento que se iniciou com a deposição do Rei Luís Felipe, a edificação de uma Assembleia Constituinte para, numa dinâmica descendente, fazer com que a revolução tolha paulatinamente socialistas e trabalhadores, pequeno burgueses democratas, republicanos, para a posterior constituição de hegemonia do Partido da Ordem (formado por monarquistas) e o posterior golpe de estado do sobrinho de Napoleão Bonaparte. A história escrita por Marx já revela de forma nítida a aplicação do materialismo histórico e dialético sobre os eventos em França, destacando o movimento de lutas das classes e suas expressões políticas e partidárias.
“Sob os Bourbons haviam governado a grande propriedade fundiária com os seus padrecos e lacaios, sob os Orleans as altas finanças, a grande indústria, o grande comércio, isto é, o capital com o seu séquito de advogados, professores e grandíloquos. O reinado legitimo foi apenas a expressão política do domínio tradicional dos senhores de terra, assim como a Monarquia de Julho havia sido apenas a expressão política do domínio usurpado dos “parveneus” (novos ricos) burgueses. Portanto, o que mantinha essas frações separadas não foram os seus assim chamados princípios, mas as suas condições materiais de existência, dois tipos diferentes de propriedade, foi a antiga contraposição de cidade e campo, a rivalidade entre capital e propriedade fundiária”
Por sinal, algo que marca aquele período é uma dinâmica de opostos: o bonapartismo é a forma política do caos e da base social do lumpesinato e sua missão histórica aparente é garantir a ordem; o roubou é a forma de salvar a propriedade burguesa; o sufrágio universal elege um ditador (Bonaparte). Monarquistas dirigem a república e a eleição de Bonaparte pelo sufrágio universal coloca de joelhos a Assembleia Nacional. Nessa dinâmica são representadas as lutas das classes cuja expressão partidária revela frequentemente aspectos distorcidos da real arena de luta. Por exemplo. A crise interna do Partido da Ordem formado por monarquistas defensores das dinastias Bourbon (legitimistas) e Orleans, na revolução, expressam os interesses conflituosos da burguesia da cidade contra a do campo.
O livro em análise igualmente seria frequentemente recorrente no vocabulário dos marxistas quanto à apropriação de conceitos como cretinismo parlamentar e especialmente “bonapartismo”. Alguns inclusive analisam a dinâmica histórica do Brasil com a vitória eleitoral da extrema direita como a possibilidade da dinâmica de uma etapa política bonapartista. Parece-nos que tal conclusão não se sustenta comparando uma aspecto decisivo da constituição histórica francesa: crise da dominação burguesa aberta por um movimento que se inicia revolucionário mas que logo é dirigido pela contra-revolução. A base social do bonapartismo é o lumpesinato, os setores mais atrasados dos camponeses ainda influenciados pelo pensamento medieval, além das forças armadas e das classes burocráticas que possuem um interesse existencial na preservação do regime. Por outro lado, o texto de Marx sugere que a figura simplória e patética de Bonaparte é não só funcional mas necessária para garantir a dominação geral da burguesia e da propriedade. Em outras palavras a luta de classes na França criou as condições próprias para que um personagem medíocre e grotesco seja chamado a desempenhar papel de decisão. Tal fato culmina-se em 01.11.1851 com o golpe contra-revolucionário lupem de Bonaparte através de movimento regado à propina de álcool e salsichas:
“Cromwell, ao dissolver o Parlamento Longo, foi sozinho até o centro deste, tirou o relógio do bolso para que ele não subsistisse nem por um minuto além do prazo por ele estipulado e enxotou cada um dos parlamentares com insultos divertidos e bem humorados. Napoleão, não possuindo a estatura do seu modelo, ao menos foi até o Corpo Legislativo no dia 18 de Brumário e leu em voz alta, ainda que embargada, a sentença de morte dele. O segundo Bonaparte, que, aliás, estava sob um Poder Executivo bem diferente do de Cromwell ou Napoleão, não buscou o seu modelo nos anais da história mundial, mas nos anais da Sociedade 10 de Dezembro, nos anais da jurisprudência criminal. Em seguida, ele roubou 25 milhões de francos do banco da França, comprou o general Magnan com 1 milhão e os soldados, um por um, com 15 francos e cachaça, encontrou-se secretamente com os seus comparsas como um ladrão durante a noite, mandou invadir a casa dos líderes mais perigosos do Parlamento e sequestrar Cavaignac, Lamoricieree, Le Flo, Changarnier, Charras, Thiers, Baze etc. enquanto dormiam, ordenou que as tropas ocupasses os postos-chave de Paris bem como o prédio do Parlamento, e logo pela manhã mandou afixar cartazes vistosos em todos os muros, anunciando a dissolução da Assembleia Nacional e a decretação do estado de sítio no département de Seine. Pouco depois, inseriu um documento falso no Moniteur segundo o qual nomes influentes do Parlamento teriam se agrupado em torno dele numa consulta oficial”.
Se a história se repete, primeiro como tragédia e depois como farsa, poderíamos dizer aqui das dinâmicas das duas revoluções francesas – a de 1789 e a de 1848 – como ocasiões em que a classe burguesa na revolução teve direção contraditória. Na primeira a burguesia desempenha um papel histórico revolucionário para a derrubada do antigo regime criando as condições políticas e jurídicas para o desenvolvimento capitalista e se servindo de toda uma tradição filosófica iluminista que desafiou os preconceitos medievais e religiosos em diversos lugares do mundo. Já em 1848, a burguesia francesa teve em sua retaguarda os socialistas e democratas que em fevereiro daquele ano derrubaram a monarquia de Luís Felipe. Em pouco tempo a burguesia assumirá uma linha contra-revolucionário: naquele momento esta classe social não aspira a mudanças societárias mas à ordem. O sobrinho de Napoleão é uma paródia do tio, uma caricatura que diz respeito à uma nova etapa em que a burguesia revela ao mesmo tempo sua condição de classe dominante e ao mesmo tempo de uma classe frágil, dividida e que eventualmente cede à chantagem de lideranças ocasionais em nome da ordem e da segurança da propriedade. A caricatura de Napoleão deve nos servir como alerta de que já hoje nada de bom e progressivo poderá vir do capitalismo e da proposta societária burguesa.