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Diário Liberdade
Terça, 16 Agosto 2016 17:28

Me escute, sou vítima de tráfico humano

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Ilka Oliva Corado

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[Ilka Oliva Corado, Tradução de Raphael Sanz] Quando vivia na Guatemala, escutei uma mãe de família dizer, referindo-se a uma jovem que trabalhava em um bar (em Guatemala se chamam “bares” os centros noturnos parecidos com as cantinas onde também se oferecem serviços sexuais, também podem ser chamados de “prostíbulos”) de garçonete e havia tido três filhos de distintos pais, ou seja, uma mãe solteira: “essa está aí porque é uma puta e gosta de pica”.


As mulheres que participaram da conversa, todas mães de família, casadas pela Igreja e por todas as leis, referendaram o comentário e também tripudiaram da jovem, a qual cumprimentavam com beijos amáveis e chamavam de sobrinha quando a viam. Eu que não posso ficar calada diante de injustiças como essa, perguntei: “e vocês não são putas e não gostam de pica?” E responderam que era diferente, pois eram casadas e mulheres da casa. Mas todas somos putas, casadas ou não!

A jovem havia emigrado de sua cidade natal para a capital a trabalhar como empregada doméstica. Na sua cidade se apaixonara por um chucro que quando a engravidou fugiu covardemente, ela tinha 15 anos. Seus pais a expulsaram de casa, com um filho para sustentar e assim se foi em busca de trabalho. No seu caminho, sozinha, sem conhecer ninguém na capital, deprimida, angustiada, caiu em uma dessas redes de tráfico humano que a enganou oferecendo teto, comida e um trabalho; foi parar em um bar. Conhecidos diziam que a haviam visto trabalhando como servidora de sexo, não como garçonete. Diziam que “não estava ali à força”, porque ela saía e viajava a sua cidade para ver os filhos. Na verdade, ela estava incluída em uma modalidade de escravidão sexual bem comum no mundo.

Pergunto, o que faziam metidos em um bar como esse, homens pais de família e casados? E ainda alardeando com suas esposas, sobrinhos e filhos suas andanças noturnas nestes bares?

Um bom dia quando meu irmão começou a se desenvolver, chegou meu pai e lhe disse que o levaria a um bar para que virasse homem. Meu irmãozinho tinha uns 12 ou 13 anos. Meu pai lhe disse isso, sem nenhuma culpa, diante de suas filhas e esposa, como se estivesse falando de comida ou esportes. Minha mãe e minha irmã mais velha não disseram nada, a que brincou fui eu, “pois então me leve também, para que me façam mulher, sobre meu cadáver que levarás meu irmão a violar meninas!” Aquilo foi uma discussão na qual meus pais terminaram me chamando “louca de merda”. Não sei se meu pai levou, no curso dos anos, meu irmão a um bar para “tornar-se homem”, só eles sabem disso.

Os homens da minha família, contando desde o meu avô até mais primos (imagino que meu irmão também ainda que me negue aceitar isso) desde que tenho memória, visitam bares, e isso foi aceito como normal pelas mulheres da minha família que, sem exceção, dizem: o homem é uma coisa da porta pra dentro e outra da porta pra fora, desde que não passem doenças está tudo bem. É por isso que a maioria têm filhos fora do casamento, (há os que não reconhecem esses filhos, supostamente) um galã número de amantes em suas visitas habituais aos bares onde acabam por deixar boa parte do seu salário no fim do mês.

Não escrevo isso para satanizar minha família, mas como um exemplo da uma sociedade patriarcal da qual também somos parte. O tráfico de meninas, meninos, adolescentes e mulheres não existiria se os clientes não fossem nossos homens: pais, amigos, irmãos, companheiros de trabalho, chefes, filhos e avôs. E se nós, mulheres em banho de timidez e virgindade não tachássemos as outras de “putas” e as largássemos a sua própria sorte.

Outro dia estava em uma reunião social, conversava com um grupo de homens que se chamam de revolucionários e sabem da história política do continente de cor e salteado, e que mui Fidelistas, Chavistas e Guevaristas, ao finalizar a reunião se despediram depressa porque iam todos a um bar e não queriam chegar tarde, senão outros iriam ganhar deles as jovenzinhas que chegam cada sábado. É de vomitar, certo?

Quando estudava na universidade um bom grupo de companheiros, futuros profissionais (muitos deles agora docentes universitários) iam todas as sextas-feiras a um bar que ficava no final da quadra, diziam que “com as putas podiam fazer o que suas namoradas não permitiam”. O que pode fazer um homem com uma mulher que está em um lugar para ser maltratada e humilhada? Somos nós a sociedade de consumo.

Quando era árbitra na Guatemala e nos tocava dirigir nos departamentos (Estados, regiões) e nos tocava dormir ali, muitos dos meus companheiros na noite anterior ao jogo iam ao bar do povoado, a buscar jovenzinhas, e lá se juntavam aos jogadores. No domingo apareciam impecáveis na televisão, como juízes imparciais e dignos. Os jogadores como estrelas inalcançáveis. E isso sucede também a nível internacional, o primeiro que fazem como cortesia e boas-vindas é levar os árbitros a casas de suingue. Somos uma sociedade de consumo.

Poderia dar mil exemplos, e sei que vocês também como leitores têm milhares de exemplos, o tráfico existe porque somos uma sociedade que o consome. Neste artigo falo expressamente do tráfico humano com fins de exploração sexual, mas ele existe também com fins de exploração laboral (sem o sexo envolvido) e tráfico de órgãos.

E somos insensíveis diante disto que deveria ser nossa maior vergonha como humanidade, porque com as vítimas não existem laços de sangue. Porque não são nossas filhas, irmãs, amigas e mães. Porque somos egoístas e acreditamos que só é importante quem está dentro da nossa bolha e zona de conforto. Porque não temos entendido ainda que este mundo não vai mudar senão o mudarmos nós mesmos. Porque a indolência e a perversidade nos corrói. A presunção e a desumanização se apoderaram de nós, quando nos convém.

Que sociedade permite a existência de bares e casas de prostituição? Que sociedade permite a existência de redes de tráfico humano com fins de exploração sexual, laboral e tráfico de órgãos?

Somos nós que permitimos, somos nós a sociedade de consumo. Uns por fazer e outros por calar. O que faríamos se um dia em qualquer circunstância nos encontramos com um menino, menina, adolescente ou mulher que nos diga: me ajude, sou vítima de tráfico humano?

É o que mostra o documentário (4h55m de duração) Escúchame (Escute-me, em português). Criado para a conscientização da sociedade de consumo. Ou os filmes Evelyn, Trade, A Mosca nas Cinzas, A Jaula de Ouro, A vida precoce e breve de Sabina Rivas. E tantas outras...

Blog de la autora: https://cronicasdeunainquilina.com/

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