A universalização da propriedade privada e do trabalho assalariado, por exemplo, passa a constituir um tipo de relação a-histórica que ao se naturalizar passa a ser vista como o princípio fundador de toda e qualquer forma de organização social, ou seja, cai-se na falsa ideia de que propriedade privada e trabalho assalariado sempre existiram e, via de consequência, para sempre existirão!
Esta infeliz, mas correta constatação pode ser sentida nas mais hodiernas situações do dia a dia, quando (in)conscientemente proclamamos que tal situação “sempre foi assim” ou ainda quando de modo pessimista dizemos que tal ação “não adianta, pois nada mudará” não estamos mais que reproduzindo a ideal e falsa permanência imutável das coisas.
A naturalização da sociabilidade capitalista, que transpassa as manifestações materiais (trabalho, estudo) e espirituais (religião, arte, ciência), possui seu caráter fetichista solidificado na relação alienada e alienante dos homens com aquilo que produzem, isto é, com o processo de produção da mercadoria.
Isso porque o próprio processo de produção capitalista é marcado pela separação entre os produtores que apenas possuem a força de trabalho e realizam trabalho vivo e, do lado diametralmente oposto, aqueles que possuem os meios privados de produção, resultando daí uma mercadoria cuja objetivação de trabalho humano é fruto de um processo produtivo em que o trabalhador se encontra dominado pelo capitalista.
Quando estou na linha de montagem de fabricação de um aparelho celular, os meios técnicos para sua produção não me pertencem, mas sim a um individuo ou grupo de indivíduos; todavia, sem a incidência da minha força de trabalho sobre esses meios técnicos – atributo restrito ao humano – é inadmissível o próprio surgimento do celular.
Ampliado em escala global, esse processo de dominação do trabalho pelo capital resulta na perda, pelo produtor, do controle da mercadoria por ele produzida: o aparelho celular. Ocorre que o celular, como produto final, nada mais é que a cristalização da força de trabalho de inúmeros homens e mulheres envolvidas no seu processo de fabricação, e ao ser comprado, vendido, trocado no mercado global, assume o caráter de relação apenas entre coisas.
Essa relação “às avessas” oculta o fato inabalável de que a sociabilidade capitalista, sendo ela própria um processo histórico, somente é possível graças às relações humanas e, sendo assim, às relações entre pessoas, não obstante o seu caráter fetichizante que a cada segundo proclama e deixa se representar pelo contrário, ou seja, por relações entre coisas.
Desse modo, quando seguramos um aparelho telefônico, na verdade, temos em mãos um punhado de força de trabalho humano ali reunida. Aparente e imediatamente, tem-se instaurada uma relação entre coisas e pessoas. Contudo, a essência de dita relação se dá inegavelmente entre pessoas.
O mesmo ocorre com os meios técnicos e mecânicos de uma indústria para a produção de determinada mercadoria. Quando um torno mecânico entra em contato com uma peça cilíndrica a que se dará acabamento, essa relação aparentemente entre coisas é essencialmente uma relação entre produtos que cristalizam determinada quantidade de trabalho humano, logo, entre pessoas.
Sobre o que falamos até aqui, Marx se pronunciou da seguinte maneira: “não é outra coisa senão a rotina da vida cotidiana o que faz parecer trivial e óbvio o fato de uma relação social de produçãoassumir a forma de um objeto; de tal maneira que a relação das pessoas em seu trabalho se apresenta como sendo um relacionamento de coisas consigo mesmas e de coisas com pessoas”.
Decorre desse processo fetichizado a incapacidade de visualizarmos as relações sociais como relações mediadas pelo valor de troca. Em seu lugar, enxergamos tais relações como relações sociais entre coisas cuja propriedade assume um caráter meramente natural. As mercadorias deixam de ser vistas como um produto criado pela ação dos homens e assumem uma propriedade do tipo natural.
É dessa forma que os fenômenos históricos e sociais passam, igualmente, a ser encarados como fenômenos estrita e puramente naturais.
Por via de consequência, ao naturalizarmos os fenômenos sociais, naturalizamos o próprio capitalismo, a desigualdade, a propriedade privada, o assalariamento, a exploração, enfim, retiramos da vida social suas determinações históricas, resultando daí a universalização e a própria perpetuação da sociabilidade capitalista, afastando qualquer possibilidade de mudança.
A tomada de consciência desse processo de alienação constante, que está acompanhado de outros elementos objetivos e ideológicos, possibilita a abertura de um horizonte novo e no qual ele possa ser extinto, o que depende do compromisso com a luta pela superação do próprio capitalismo e da divisão antagônica entre trabalho e capital.
Nessa batalha, não existe remédio imediato ou curativo. Esse compromisso é árduo e exige sacrifícios. Por vezes, confrontados com as dificuldades objetivas inerentes à luta anticapitalista, pensaremos em abandonar o projeto de instauração de uma sociabilidade socialista. Contudo, a luta revolucionária organizada e em companhia dos camaradas sempre será fortalecida.
Se as dificuldades objetivas frustram, ao mesmo tempo, por expressarem as contradições desse sistema contra as quais nos indignamos também funcionam como motor que renova diariamente a necessidade de nos apresentar no quartel da vida como agentes da mudança, como pessoas que, de fato, fazem a história.
*João Guilherme é jornalista, estudante de Direito da PUC-SP, coordenador do Grupo de Pesquisa Marxismo e Direito (GPMD) e militante do PCB.