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Diário Liberdade
Sábado, 29 Outubro 2016 02:23

Sem Pedigree

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Ilka Oliva Corado

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[Ilka Oliva Corado; Tradução de Raphael Sanz] Cresci entre lamaçais, poeira e lâminas oxidadas. Minha infância foi um poema ferido e incrivelmente belo. Cresci no coração de um esgoto marginalizado que tinha um idílio com a aldeia e o zacatal. Rodei entre barrancos e trepei árvores frutíferas, corri entre plantações de milho e hortaliças e também caminhei no longo bulevar de meu grande amor, em tantíssimos amanheceres.


Minhas tardes foram povoadas por entardeceres cor de fogo e céus fulminantes que dormiam nos braços da montanha verde esmeralda, de San Lucas Sacatepéguez. Cresci pastoreando cabras e carroças. Me acompanharam na frágil idade da inocência: grilos, gafanhotos, vagalumes e chicharras. Galinhas caipiras, patos e os montes de maritacas verdes que alegravam cada manhã quando cantavam e gritavam aos céus, voando em liberdade. Foi poesia o musgo branco que crescia nos ciprestes e troncos de árvores durantes os tempos de frio na aldeia El Calvario.

Cresci com o tempo na contramão, nas urgências e penas do trabalho, da casa, a criança dos cumes e a escola. Amadureci ao susto em vários aspectos da minha vida, me fiz adulta enquanto carregava minha caixa nos ombros, longas horas sob o sol torrencial; em outros momentos como por rebeldia e sobrevivência fiquei sendo menina, para resguardar a magia da inocência na idade dos sonhos.

Minha brincadeiras infantis não tiveram nada a ver com bonecas, carros e nem eletrônicos. O meu foi o campo e o lamaçal. Chamuscas de futebol que me dava na telha pagar com coro vivo quando minha mãe me chicoteava por atrevimento, todos os dias. E se tornou a paixão da minha vida, pela intimidade e cumplicidade.

Bebedeiras intermináveis na idade da adolescência e uma cantina que foi o relógio do cipotal do subúrbio. As ruas abertas que abraçaram nossa frustração de párias, escape das limpezas sociais e defesa da alegria. Quando havia comida era luxo sopear as tortilhas com caldo de feijão, quando não, as dobrávamos com sal. Fazer malabares para que as 24 horas do dia nos alcançassem com tudo o que havia de fazer na casa.

Não me lembro de um só minuto sentada fazendo as tarefas escolares, as fazia caminhando enquanto ordenhava as cabras, limpava o chiqueiro, o galinheiro e varria o pátio. Em um pedaço de papel apontava o que acreditava ser importante do resumo da unidade e o levava para ler no caminho, enquanto carregava ao ombro a caixa até La Fresera, o mercado da aldeia. Ou quando íamos ao destacamento militar de El Calvario, atravessando a aldeia entre buracos de hortaliças e arvores frutíferas, para ir vender sorvetes, chocobananas, pupusas de chicharrón e atol.

A carência e os estragos da miséria despertaram minha imaginação e para a época de natal pedia um duplo litro de água com gás fiado na vendinha da esquina de casa, e fazia rifas no mercado entre os vendedores. Vendia o número a 25 centavos e com isso conseguia pagar o duplo litro e ainda sobrava para ir ajustando as compras escolares úteis em janeiro.

Para o natal fazia adornos natalinos com papel que me fiavam a miscelânea do mercado e os vendia junto com os sorvetes. Havia fome, carência de calçados, roupa e itens escolares. Dois meninos que começavam a caminhar e a angústia de que não lhes faltaram nada, para que eles não tivessem que viver a crueza que nos tocou a suas irmãs mais velhas. Fomos mães sem parir, sem querer, nos caiu de golpe na infância e a responsabilidade nos roubou a infância.

Quando a venda de sorvetes não caminhava, oferecia sorvetes aos vendedores do mercado, a maioria havia migrado de Sololá, Toconicapán, San Marcos e Huehuetenango, todos indígenas, viviam no assentamento, haviam ocupado lotes. Quando me compravam, repetiam olhando-me fixamente nos olhos: você tem que sair daqui, tem que ir para a escola e para a universidade, tem que fazer isso por você mesma e por nós. Nunca esqueci, e as longas manhãs nas que a rotina estava a esconder-me do cobrador porque me jogava os sorvetes no lixo, por não ter posto fixo e me parar no corredor. Viajava no tempo a lugares remotos e as nuvens eram meu transporte, eu ia longe, muito longe.

O vendedores de jornais foram os que me permitiram ler, todos os domingos me deixava fiada a imprensa livre por minha fascinação à Revista Domingo, devorava as folhas e sonhava com as historias que ali lia. Algumas vezes pagava e em outros dava sorvetes em troca e ele, fiel, pontual, arisco e paria, me deixava o jornal e se iluminavam os olhos quando via minha alegria ao recebê-los.

Nenhum letrado jamais pôs um livro em minhas mãos, em troca foi um vendedor de jornais, pai de cinco filhos que dias trabalhava de ajudante de caminhonete, de recolhedor de lixo, outros dias vendia frutas, em outros era ajudante de pedreiro e todas madrugadas foi vendedor de jornais.

Cresci com as carências da miséria e da exclusão social. Venho de uma das bocas mais profundas dos subúrbios guatemaltecos, onde se respira migração forçada, abuso policial e limpezas sociais. Onde a fome e o cheiro de morte rondam as noites e as madrugadas. Onde a água potável é um anseio. Onde a droga é a saída emergente. Onde abundam os meninos que cheiram cola, golpeados e feridos, mais no coração do que na carne.

Venho da carne viva da exclusão social, bebi do mel da miséria e na minha pele habitam putrefatos duelos que nunca realizei; porque não tinha tempo de chorar os mortos quando se lutava pela vida na marginalização das periferias. Sempre fui intrusa, mal cheirosa e puta aidética para uma sociedade classista, racista e desumana que trata em tons criminais a infância e a adolescência suburbana.

Nos anos de miséria e intermináveis necessidades econômicas, em minha idade de menina débil e assustada e em minha adolescência difícil, o único que recebi dos letrados foram maus-tratos, insultos e apontamentos de minha origem suburbana, pela minha cor de pele e pelo meu ofício de vendedora de sorvetes.

Em troca aqueles que sabiam meu nome eram os meninos que cheiravam cola, as putas aidéticas, os motoristas de caminhonetes, os garotos que recolhiam o lixo e os vendedores do mercado. As meninas e mulheres que baixavam da aldeia a vender suas hortaliças. A Maria do Tomatal. O vendedor de jornais e os bêbados da cantina Las Galáxias; refúgio dos desajustados.

Para os letrados capitalinos sempre fui a sorveteira, que estorvava quando parada na saída da universidade de San Carlos, com meros 12 anos, a vender sorvetes. Com a ilusão e a promessa de que um dia sairia egressa desta mesma universidade. Essa mesma sorveteira que parava na saída da municipalidade e que estorvava os trabalhadores quando oferecia com anseio, fadigada e à força de um sorriso, seus sorvetes.

A mesma menina que para na entrada do Istra da avenida Petapa, a oferecer seus sorvetes enquanto via como outras crianças se divertiam lá dentro. Que corria atrás do ônibus para que a permitissem subir na avenida Bolívar e oferecer seus sorvetes. A menina inocente que caminhava com as costas entortadas pelo peso da caixa de sorvetes, que parava na saída das empresas e era tirada a empurrões porque estorvava.

Daí venho, da fome, da miséria, da carência e da exclusão. Da depressão profunda que chama o suicídio, a migração e o vício em drogas.

Não tive a oportunidade de ler livros e muito menos de fazer disso um habito. Ler é uma perda de tempo em um subúrbio no qual a infância trabalha para subsistir. Conheci os livros já grande, já mulher, quando estudava magistério de Educação Física. Tenho o habito da leitura mas leio muito pouco, porque ainda, e apesar dos anos, me segue custando manter a atenção em uma só coisa durante muito tempo. A única coisa que consegue manter minha atenção é escrever, e meus escritos são absolutamente catárticos. É uma viagem aos meus rincões interiores e à ansiedade de minhas emoções.

Por obra da vida e do destino, talvez quero crer, terminei escrevendo. E escrevo poesia que é minha expressão mais transparente. E escrevo relatos e artigos de opinião. Mas não sou jornalista e muito menos analista internacional, como muitas vezes me tratam. Apenas escrevo. Escrevo porque senão o faço, me afogo em meus próprios labirintos emocionais, porque por dentro sou um furacão.

Não pertenço a nenhum clube de poetas, jornalistas ou escritores. Não me dou com este tipo de personalidade Não gosto, e fujo deste mundo onde me sinto incomoda e fora de lugar. Não assisto a shows nem a exposições de nenhum tipo. Não aceito dar conferências nem nada parecido. Escrevo apenas. E solto minhas letras ao vento a partir da janela do meu quarto para que livres possam ir longe de mim e encontrem seu próprio destino.

Não gosto de escrever com palavras rebuscadas, não me interessa aparentar o que não sou, não me interessam os aplausos, as felicitações e muito menos as lisonjas. Não me interessam os contatos importantes. O importante para mim está em outro lugar, muito longe da academia e seus males.

Minha expressão é natural do subúrbio, do povo e da aldeia, é própria do mercado da minha vila e assim a manterei até o dia da minha morte. É meu, é o que protegeu minha infância, foi o abrigo em minha adolescência e a minha identidade. Não tenho que ocultar o que sou. Não tenho porque escrever para ficar bem com ninguém. Muito menos com a academia.

Quando escrevo, vem à minha mente a Maria do Tomatal, os vendedores do mercado falando comigo e comprando meus sorvetes. Repicam com ecos de nostalgia as suas palavras. Meus amigos recolhedores de lixo, as meninas maquiadoras, os meninos que cheiram cola. Vem a minha mente o cheiro próprio do meu subúrbio, a saudade da arada e o verde profundo das montanhas que embelezaram minha infância. E só isso necessito para saber qual é o meu lugar na vida e qual é a minha postura política quando escrevo e por quem vou a dar a cara a tapa e por o peito até o dia da minha morte.

E escrevo assim, natural, transparente para que um dia se minhas letras chegam às suas mãos, saibam que não os traí, mas que suas palavras ficaram no meu coração e para que entendam a linguagem própria, aquilo que os letrados escrevem com atavios de classe.

Para que saibam que uma deles está e está por eles. Para que o distribuidor de jornais saiba que sua semente floresceu. E que apenas escrevo com a dignidade de ser uma vendedora de mercado.

Para minha alma mater, o mercado da Ciudad Peronia e para meu grande amor.

https://cronicasdeunainquilina.com/

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