“Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “homem cordial” . A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “ boas maneiras” , civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças. Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse este fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito. Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro”Holanda. S. B. Pg 146-7
Sabe-se que o primeiro cronista da nossa a história foi o Frei Vicente do Salvador, franciscano da Bahia. Seu “História do Brasil” data de 1627. Assim como ele, outros cronistas e viajantes deixaram relatos valiosos sobre o nosso passado colonial, nossa herança rural, patriarcal cuja opulência e hábitos de fidalguia herdados da tradição ibérica conviviam candidamente com o trabalho servil. Todavia àquela altura não se pode cogitar de uma História enquanto disciplina ou fonte de conhecimento autônomo, com seus próprios pressupostos teórico-metodológicos. A História, bem como a Sociologia e demais ciências humanas irão ter seus contornos e sentido de especialização só no séc. XIX com o alemão Von Ranke e aqui no Brasil com o fundador da historiografia brasileira propriamente dita, Varnhagen.
Pode-se aqui falar de uma primeira geração de historiadores positivistas cuja história acerca das coisas brasileiras não raro cae num certo ufanismo: uma história dos grandes eventos e das personalidades dos estadistas e demais notáveis. Influenciados pelo naturalismo francês, alguns destes pioneiros da nossa historiografia como um Euclides da Cunha ou um Capistrano de Abreu interpretam o Brasil influenciados pelas noções de raça, pelo determinismo geográfico, com certo protagonista do elemento Português – em seu Capítulos da História Colonial, Capistrano embaralha o índio com elementos paisagísticos, quase como um elemento irrelevante e acidental da nossa trajetória – quando se sabe que o índio, em especial os tupis da região litorâneo, jogaram um papel estratégico no desbravamento do interior, ou mesmo antes associando-se aos portugueses na exploração do Pau Brasil, além de miscigenação profunda envolvendo os mamelucos de modo que na São Paulo colonial os habitantes, incluindo os colonizadores, falam a língua tupi, inclusive no recinto doméstico.
Se a Semana da Arte Moderna de 1922 criou as condições para a edificação de uma arte genuinamente nacional, não só quanto à temática – considerando o “nacionalismo” dos românticos indianistas – mas quanto à forma, ao estilo e mesmo aos propósitos, anos depois a revolução de 1930 colocaria em marcha mudanças estruturais, com o desenvolvimento associado à intervenção decisiva do Estado na economia e na sociedade. Uma revolução modernista na historiografia brasileira ocorreria na década de 1930, com o advento de “Casa Grande e Senzala” (1933) de G. Freire, “Evolução Política do Brasil” (1933) de Caio Prado Júnior e este “Raízes do Brasil”[1] (1936) de Sérgio Buarque de Holanda.
Trata-se de um momento em que a História se aproxima das Ciências Sociais. Cada qual parte de pressupostos teóricos bastante distintos mas movimentam-se no mesmo sentido de busca da especificidade Brasileira. Num país donde o Estado antecedeu a Nação, cumpria a este grupo de intelectuais forjar uma identidade nacional ou buscar as especificidades do Brasileiro sempre a partir da reflexão acerca do nosso passado, de nossa herança colonial. “Raízes do Brasil” é um notável ensaio que traça as linhas gerais da psicologia brasileira, da cultura e da história das nossas ideias.
Para Sérgio Buarque o que há de mais essencial no povo brasileiro envolve por um lado nossas raízes ibéricas e por outro nossa herança rural, expresso no pessoalismo que se contrapõe à impessoalidade do Estado e da lei, o desleixo com que o colono aqui tratou a agricultura reproduzindo na lavoura de cana o métodos arcaicos dos índios sem o uso de arados, a nossa cordialidade que envolve não exatamente bondade, mas um sentimentalismo intimista que informa inclusive as relações comerciais para o espanto de viajantes estrangeiros no país. Nada mais avesso ao trabalho repetitivo, cotidiano, a longo prazo, em contraponto ao espírito de aventura que busca grandes fortunas no menor intervalo de tempo.
Ao contrário da tradicional historiografia positivista ou naturalista que interpreta o homem a partir das influências do meio, Sérgio Buarque segue uma orientação culturalista. Apropriação da dialética tratando de explicar nosso país a partir de oposições como cidade x campo, família x estado, aventureiro x trabalhador.
Vejamos algumas passagens que revelam a propósito a orientação webberiana do nosso autor:
“É compreensível, assim, que jamais se tenha naturalizado entre gente hispânica a moderna religião do trabalho e o apreço à atividade utilitária. Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é uma vida de grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação. E assim, enquanto povos protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se ainda largamente no ponto de vista da Antigüidade clássica. O que entre elas predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais que o negócio e de que a atividade produtora é, em si, menos valiosa que a contemplação e o amor”. Pg. 38
“Se semelhantes característicos predominaram com notável constância entre os povos ibéricos, não vale isso dizer que provenham de alguma inelutável fatalidade biológica ou que, como as estrelas do céu, pudessem subsistir à margem e à distância das condições de vida terrena. Sabemos que, em determinadas fases de sua história, os povos da península deram provas de singular vitalidade, de surpreendente capacidade de adaptação a novas formas de existência. Que especialmente em fins do século xv puderam mesmo adiantar se aos demais Estados europeus, formando unidades políticas e econômicas de expressão moderna. Mas não terá sido o próprio bom êxito dessa transformação súbita, e talvez prematura, uma das razões da obstinada persistência, entre eles, de hábitos de vida tradicionais, que explicam em parte sua originalidade?”. Pg. 36
De uma certa maneira a incapacidade do português de desenvolver a colônia a partir de uma orientação bem delimitada e estratégica ao invés do furor, da anarquia, do retirar o máximo da terra com o menor dos esforços tem definitivamente explicações que envolvem a questão da cultura. Em Portugal como se sabe o feudalismo não deitou raízes profundas. Uma burguesia mercantil granjeou ascensão social e a independência nacional portuguesa foi consolidado já no séc. XIV com a Revolução de Avis, antes de qualquer outro país europeu. Por suposto, tal burguesia estava muito longe de se assemelhar aos seus pares franceses da Revolução de 1789 que constitui o Estado controlado pela lei e condições ótimas para o desenvolvimento do capitalismo – a burguesia mercantil portuguesa aspira não ao acúmulo de riquezas, mas à fidalguia, despreza o trabalho, em especial o trabalho manual, em detrimento da busca de títulos de nobreza, consoante a visão social de mundo medieval. O gosto pelo discurso rebarbativo, o bacharelismo e o desprezo pelo trabalho manual causou estranheza ao pintor francês Auguste F. Biard que nos trouxe belos quadros retratando o Brasil do séc. XIX. Aquela influência de cultura de fidalguia observou o pintor quando foi orientado a contratar um escravo para carregar seus instrumentos de trabalho, sendo mal visto pelos brasileiros quando pintava e carregava seus instrumentos por conta própria.
Todavia, uma análise restrita ao problema cultural se por um lado nos oferece retratos preciosos do passado, ainda possui limites nas questões mais fundamentais: por que o brasileiro é cordial? Por que da confusão entre o público e o privado que revela nosso patrimonialismo? Qual a base que engendra a nossa aversão natural à burocracia que remete a impessoalidade, à norma jurídica abstrata que contrasta com as vicissitudes da realidade – este último fato relacionado com a forma deturpada com que o liberalismo grassou entre nós. Ausente em Sérgio Buarque de Holanda uma análise mais materialista da história capaz de conferir-lhe sentidos que ultrapassem uma interpretação pessoal, ainda que muito bem feita. Ainda assim, além da riqueza de informações, este notável livro de história oferece interpretações pertinentes e de certa forma se soma ao marxista Caio Prado Júnior quando propugna uma revolução que dissipe nossas raízes ibéricas – até então, a respostas dadas pelos homens ilustrados deu-se em torno de sistemas em geral teleológicos e com suposta vocação de aplicabilidade universal, como o nosso positivismo, muito em voga em fins do XIX. Uma colônia agro-exportadora de poucos produtos suscetíveis às variações do mercado europeu, sob o predomínio dos Senhores de Engenho e dos Barões de Café e sob a base do modo de produção escravagista. De opinião semelhante ao de Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda:
“Se, conforme opinião sustentada em capítulo anterior, não foi a rigor uma civilização agrícola o que os portugueses instauraram no Brasil, foi, sem dúvida, uma civilização de raízes rurais. É efetivamente nas propriedades rústicas que toda a vida da colônia se concentra durante os séculos iniciais da ocupação européia: as cidades são virtualmente, se não de fato, simples dependências delas. Com pouco exagero pode dizer-se que tal situação não se modificou essencialmente até à Abolição. 1888 representa o marco divisório entre duas épocas; em nossa evolução nacional, essa data assume significado singular e incomparável”. Pg. 73
[1] Outra edição modificada de “Raízes do Brasil” foi publicada em 1947.