Traumático, sobretudo, é que, do belvedere da crise de representatividade política que boa parte do mundo civilizado atravessa, a escolha por Trump seja a mais racional, uma vez que, como disseram muitos e esclarecidos comentadores, “Hilary é o mal com máscara; Trump, o mal desmascarado”. Assim como, psicanaliticamente, não se supera um trauma sem atravessá-lo corajosamente, assim também, politicamente, a superação da atual crise de representatividade parece estar exigindo que se comece justamente pela má-representatividade, de forma assumida, cruelmente desnudada.
Se os políticos não conseguem mais representar os seus eleitores como estes esperam, mas, como cada vez mais se vê, asseguram prioritariamente os interesses daquilo que o Ocuppy Wall Street chamou de o 1%, é porque a relação política entre a massa de representados e seus representantes está corrompida. E como se ver livre do inimigo votando justamente nele? Trump foi a alternativa apolítica, e por isso mesmo trágica, para esse dilema. Como, entretanto, a tragédia trumpeana pode ajudar a resolve o problema da corrupção da representatividade política?
Nicolau Maquiavel dizia que para se combater a corrupção em uma república era necessário um retorno à origem dessa república. Um retorno lógico, e não cronológico; não farsesco, mas, autenticamente trágico. Para o filósofo italiano, Roma só era a maior e mais “eterna” porque tinha a virtude de retornar sistematicamente à sua origem trágica, qual seja, o fratricídio de Remo por Rômulo. Mutatis mutandis, não estão os americanos fazendo exatamente isso com a sua res públicaao elegerem Donald Trump, isto é, dando um maquiaveliano “passo para trás”, como quem toma distância para o salto necessário, passo retrógrado sem o qual não superarão o abismo da corrupção que percebem entre eles e os seus representantes políticos?
Para Maquiavel, uma república é virtuosa enquanto suas leis são capazes de serem sustentadas por suas instituições. O problema é que as leis são dinâmicas, mudam conforme a necessidade pública, mas as instituições, ao contrário, são estáticas. Desse modo, com o tempo, as instituições não conseguem mais fazer valer as leis. E é aí que cresce o vício da corrupção. Tentar resolver tal corrupção sem retornar à origem seria o mais abjeto reformismo; algo como dar uma demão de tinta nova sobre a velha casa carcomida. Retornar ao momento fundacional, em troca, é fazer a ruína ruir, fortuita e totalmente, para só então haver a oportunidade de se reconstruir a res pública desde seus alicerces.
E isso porque, segundo Maquiavel, é só no ato fundacional de um estado que lei e instituição coincidem. Somente nesse átimo não há espaço para a corrupção. No exemplo excelente do filósofo, Roma ressincronizava leis e instituições, e portanto se via livre da corrupção, sempre que retornava à sua raiz violenta/fratricida, recolocando-se a questão fundamental, qual seja: Rômulo não mataria Remo por quê? Como, porém, Rômulo cometeu o fratricídio, os romanos reencontravam nas respostas que davam dessa pergunta a razão de ser do seu estado. Por mais angustiosamente trágico que o fosse o “revival” lógico desse “momentum” violento fundacional, nele a “Cidade Eterna” refundava-se livre da corrupção.
Agora, como Trump presidente faz esse serviço aos norte-americanos? Obviamente, a razão fundacional dos Estados Unidos é outra que a de Roma. Foi para pôr fim ao despotismo colonizador do Império Britânico que os Estados Unidos se independizaram. Jaz aí a razão de ser da República Constitucional Federal dos Estados Unidos da América. E é a ela que, segundo a pragmática maquiaveliana, os sobrinhos do Tio Sam retornam a se sujeitarem democraticamente a um governo como o de Trump. O apolitismo declarado do magnata topetudo porventura não sujeita novamente os EUA a espécie de rei despótico todo-poderoso, algo como outrora estavam sujeito aos impérios da coroa britânica?
Elegendo Trump, os norte-americanos escolheram o protagonista perfeito para a tragédia que com sorte fará com que reencontrem – não se sabe todavia em que ato – a razão de ser do polités, e a civilizada vantagem deste sobre o despótes. Assim fizeram os antigos gregos quando inventaram a política. Assim também precisam fazer os americanos – mas não só eles! -, pois se a política perde o seu jaez virtuoso, é somente porque o despotismo, embora espetacularmente presente, mascara-se, e isso para poder ser tão ou mais despótico.
A razão de ser da política é ser a alternativa civilizada ao despotismo. No entanto, quando a civilização escolhe um déspota declarado, isso se dá não porque optaram entre este e um político stricto sensu, mas, antes, porque não havia político stricto sensu na jogada, somente déspotas, um com máscara, o outro sem. Mesmo que o que as pessoas menos desejem para si mesmas é estarem sujeitadas aos desígnios de um déspota, quando isso é inevitável ao menos hão de preferir um algoz que não dissimule o seu despotismo. Hilary seria tão ou mais despótica que Tump, mas os americanos estariam estrategicamente alienados disso. Por pior que seja, a verdade venceu, ainda que traumática.
O “White Trash”, isto é, a massa de eleitores bancos, homens e sem formação superior que elegeram Trump fizeram quiçá o maior favor ao futuro político daquele país. Como não tinham mais confiança nos representantes que há muito os decepciona; como a representatividade política é hoje uma instituição corrompida; agora ao menos os norte-americanos não vão se decepcionar em termos de representatividade. Elegeram o real em sua crueza desnudada. Mesmo que o “White Trash” americano desconheça Maquiavel, a sabedoria do italiano os atravessou intuitivamente nesse retorno trágico à origem despótica. E isso porque quando o polités está doente de corrupção, precisa de doses traumáticas de despotismo para civilizar-se novamente.